Só de vez em quando, agora, Maria João Avillez
nos brinda com as suas crónicas elegantes, de uma tessitura rendilhada e romanesca,
a condizer com os valores da sua ética e do seu estatuto social, passeando-se por
figuras gradas, mal aflorando os temas que certamente a desgostam, mas deixando
antever facilmente o seu ponto de vista, na surpresa ou comentário alheios - caso
da eutanásia. Eis a sua última crónica, hoje postada:
A visita ao bispo e outras histórias / premium
OBSERVADOR, 5/6/18
Duas Europas que se olham com azeda desconfiança cada uma combatendo
com as suas iradas tropas, em surdina ou com estrondo, o antagónico universo da
outra. Um combate entre dois desastres.
1. Uma casa branca, no alto da paisagem, corredores,
portas, silêncio. Esperamos.
“D. António costuma
descansar um pouco após o almoço” mas logo o Bispo aparece na pequena sala de
espera, imediatamente sorridente, coloquial, acolhedor. Alegre, diria eu. Quase
iludindo o extenuante alarido que sobre ele se abateu – correio, computador e
telefone a explodirem de felicitações — mal se conheceu a notícia: António
Marto, Bispo de Leiria – Fátima era um dos 14 Cardeais nomeados este ano pelo
Papa Francisco, uma escolha que será oficializada no final deste mês em Roma.
“Estava a paramentar-me
para a cerimónia do Crisma, aqui na Sé de Leiria, senti o zumbido do telemóvel
no bolso a anunciar nova mensagem. Tinha tempo, estava sozinho, resolvi olhar,
era o Núncio Apostólico: “não sei sabe que o Papa hoje…”
O Bispo não sabia, ficou
“aparvalhado”. Ocorreu-lhe a “emoção da surpresa” do mesmo modo que o
“serviço”: em partes iguais. Guardou para si a notícia (“mas de vez em quando,
na celebração, não podia deixar de me lembrar…”)
Nos dias seguintes
agradeceu mil mensagens, escreveu outras e agora, aguarda. Servindo e oficiando
como até aqui na sua diocese onde gostaria de poder permanecer mas o destino já
não lhe pertence: após esta extraordinária prova de confiança pessoal e
religiosa, o Papa Francisco dirá se o quer ou não perto de si no Vaticano, e
ele, com a disponibilidade pronta que sempre lhe foi caminho, cumprirá. Amanhã
vai a Roma “para provar as vestes de Cardeal” (suspiro resignado) enquanto no
coração acalenta a vontade de meter na cabeça do Papa (a expressão é minha,
como é óbvio) a “desnecessidade” de tais vestes e ornamentos. A seu tempo, bem
entendido.
2. António Marto não pode – adivinhação também
minha – ter deixado de voltar a impressionar (muito e bem) o Sumo Pontífice
quando ele por cá passou no centenário de Fátima: o bispo de quem um distraído
dirá muito superficialmente que é um “simplório”, tem o condão de tocar as
pessoas com a fé do pastor, a fecunda sabedoria do teólogo (foi aluno de Bento
XVI na Alemanha) e a jovial simplicidade do ser humano, transmitindo
incansavelmente uma e outras com um agudo dom de comunicação. Tratando-se dele
há ainda que evocar um singularíssimo sentido de humor carregado de poder de
observação: nada parece escapar ao seu olhar cruzado de sagacidade.
Homem de Deus operando no mundo, seguiu a questão da eutanásia espantado com a
flagrante falta de “preparação” em tão delicado processo (“decisões apressadas
sem ponderação do seu impacto e efeitos”; “equívoco de conceitos” como entre
morte assistida e eutanásia; discussão que “não chegou ao país nem envolveu a
sociedade”) como acompanha tudo o resto: com atenção e opinião. Falamos de
Marcelo, ele estima Marcelo.
Uma grande história de vida
a deste grande homem da Igreja (não sei se Deus já lhe agradeceu) que
reencontrei há dias nesse preciso e talvez indefinível intervalo que separa a
certeza do cardinalício, da expectativa “reformadora” com que ele pretende
ocupá-lo.
3. Por vezes
apetece demitir a “Europa”. Quantos mais sinais de borrasca se terão de
acender no seu céu para além dos já acesos para estancar o curso dos erros e
desdobrar o novelo da indecisão? Vista da janela do hoje parece quase
impossível e certamente inverosímil que tudo tenha começado por ser uma
história sedutora (ou assim me pareceu quando aqueles seis homens se sentaram a
uma mesa e pensaram em nós, europeus, de outra maneira.)
Não podemos demiti-la
porque as leis nos proíbem tal eventualidade mas por ser impossível exonerá-la
– ou sequer reformá-la – por não haver gente para isso, nem capaz disso. E
assim vamos ficando com duas Europas que se entreolham com azeda desconfiança,
cada uma combatendo com as suas iradas tropas, em surdina ou com estrondo, o
antagónico universo da outra. Duas Europas paralelas como aqueles caminhos
que nunca se cruzam nem se entendem ou… o combate entre dois desastres.
4. Sporting. Uma história negra. O pior é
continuar tudo igual: a degradação do espectáculo, o massacre televisivo, a
falta de solução, a falta de vergonha. E vão semanas disto.
5. José Manuel
de Melo tem uma história de vida que honra quem a
testemunhou de mais perto ou de mais longe. Escrita com palavras quase
banais mas que são afinal banalmente as essenciais: trabalho, mérito,
desinstalação, energia criadora. Duvido que ele alguma vez tenha conseguido
conjugar o verbo desistir e Deus sabe quanto a anti-desistência e a
desinstalação podem, com algum suor á mistura, explicar quase tudo sobre a
excelência.
Deu-me uma vez uma tão
notável entrevista que a selecionei para surgir em livro ao lado de outras, mas
sobretudo era alguém a quem sempre admirei, aprecio fazedores sobre quase todas
as coisas. Era muito mais que um empresário, que um empreendedor, que um
fazedor de empresas, que um “rico”: tinha centelha. E tinha visão, vontade,
iniciativa, antecipava o futuro e amava Portugal. De vez em quando seduzia-se
pela aventura, o que só foi bom. E o que ele fez com tudo isso, antes e
depois de Abril de 74, foi servir bem o país. Por alguma razão Mário Soares,
que nunca se distraía sobre coisas sérias, mal tomou posse do seu primeiro
governo em Maio de 1976 convidou-o para almoçar em S. Bento com um recado
muito simples: que voltasse para Portugal, fazia cá falta. E ele, veio.
Felizmente, alguém se
lembrou do óbvio e o historiador Miguel Figueira de Faria concretizou o óbvio:
uma biografia. Em Portugal há pouco registo e pouca vontade de o deixar.
Entra-se em livrarias de outras capitais europeias e tropeça se em seis ou sete
biografias de toda a gente, de secretários de estado a médias figuras da
política, desporto ou show bizz. Em Portugal, não,
é quase ferros mesmo para os indiscutíveis. José Manuel de Mello, que teve
vida e deixou obra, tem agora biografia.
Eis a boa notícia que
uma boa história reclamava.
6. Era cedo, não estava quase ninguém, sentei-me, olhei,
lembrei: quanto lhe devo? Por entre o silêncio, vestindo a luz velada da
imensa, perfeita geometria do Teatro Thalia, uma grande tela frente ao caixão
de pinho, “é o auto-retrato dele”, sussurrou alguém ao meu lado enquanto
a vibração daquele jorro de cor me avivava a dúvida: terei dito a Júlio
Pomar o quanto lhe agradeço?
Não terei. Nunca há pressa,
não contamos com a morte, mesmo a anunciada, um dia destes havemos de conversar
e de repente já não há mais “dias destes”.
E no entanto… se há alguém
perante quem a minha condição tivesse sido sempre – nunca houve outra – a de um
grato reconhecimento, foi Júlio Pomar. Aprendi com o sussurro inspirado
com que me decifrava as suas telas e papeis, a mudez eloquente com que
depois se quedava a contemplá-las, a mestria com que organizava o arrebatamento
do seu próprio talento, a versatilidade vertiginosa que era capaz de projectar
sobre o seu ofício, incessantemente aberto á experimentação. Tanta coisa e
ainda essa a fulgurante intuição com que captava a natureza humana, a
generosidade que praticava como um mandamento, o riso e o sorriso.
Disse-me “venha” de cada
vez que lhe batia a porta para entrevistas, encontros, diálogos e eram momentos
dulcíssimos; perdeu tempo comigo, jornalista ignorante sobre o pintar, nunca
regateando detalhes e histórias e fazia tudo isto com o mesmo percutante
brilhozinho de malícias e finas ironias no olhar sempre aceso.
Nunca consegui apurar o que
me mais me ia interpelando neste Amigo-Pintor, se o sopro do génio com que
foi abençoado pelas fadas do seu berço, se a sua cultíssima inteligência
tingida por uma ironia quase torrencial, se afinal essa doçura silenciosa,
porventura o seu mais tocante ex-libris.
Tinha que lhe dizer tudo
isto, tinha que lhe dizer na solidão parada deste silêncio, antes que parta de
vez, antes da despedida, antes da minha, nossa, saudade.
Tinha lhe dizer baixinho
o quanto lhe devo por me ter tocado assim.
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