Concordo em absoluto com os dizeres do comentador de Bagão Félix,
Fernando.rebelo.simoes,
que reproduzo: «Independentemente do
conteúdo, que não discuto, nunca me canso
de apreciar o incomparável Dr. Bagão Félix.»
OPINIÃO
Ética à la carte
Claro que toda a
gente tem lapsos, mas desvalorizar de um modo tão ligeiro e amoral situações
ocorridas em altos cargos de soberania é, no mínimo, censurável.
PÚBLICO, 8 de Junho de
2018,
A cindibilidade de
certas categorias de pessoas está muito em voga, na conveniência de separar a
pessoa da função e a função da pessoa, como se o carácter fosse divisível. Um
político fala como ministro agora e, de seguida, como dirigente partidário ou
vice-versa; um deputado disserta agora enquanto tal, como advogado depois, ou
comentador, nos intervalos; um gestor explica o sucesso nessa qualidade e
justifica o fracasso como um sacrificado mártir do contexto. Etc., etc.
De manhã, numa
qualidade; à tarde, noutro atributo. Cá dentro, deste modo; lá
fora, daquele jeito. Mormente na coisa pública adensa-se a prática de não
havendo responsabilidade pessoal, também não haver lugar a responsabilidade
política ou institucional.
Depois e se necessário
vem a justificação: “Não, eu não disse isso
nessa qualidade... Falei antes nesta outra posição.” E
tudo fica conforme ao desdobramento que notabiliza parte da “elite” portuguesa.
Mal-aventurados os portugueses que não se conseguem desdobrar com tanta
desenvoltura...
É como os lapsos, agora
em moda, na política e no Governo. Não ouso pronunciar-me sobre a substância
dos mesmos, mas não deixam de ser reveladores de uma visível erosão da ética
(republicana, não é?). Não se cumpriu a lei? Foi um lapso de que ninguém está livre, dizem-nos.
Desconhecia-se a lei (mesmo sendo-se douto profissional delas)? Foi percalço administrativo e burocrático. Há
sobreposição ou fingimento de moradas para efeitos de subsídios oficiais pagos
por nós. Qual é o problema?
Há incorrecções ou falsidades em currículos? Não, apenas enganos involuntários e lapsos de memória
inventiva. Há excesso de subsidiação das despesas com
viagens para os deputados das regiões autónomas? É eticamente irrepreensível, o procedimento
sempre foi usado ou fazem todos a mesma coisa.
Cria-se uma empresa na véspera de uma nomeação? É puro acaso ou coincidência. Não
se cumpriu a palavra dada e aprovada com força de lei? Fomos nós que entendemos tudo mal.
Há violações éticas e deontológicas (mesmo que não ilegais) na porta giratória
entre público e privado? Dir-nos-ão que é tudo experiência acumulada esinergias.
Já agora, que percalços
estamos nós autorizados a ter com igual compreensão das autoridades?
Claro que toda a gente tem lapsos, mas desvalorizar de um modo tão ligeiro e
amoral situações ocorridas em altos cargos de soberania é, no mínimo,
censurável. No fundo, a táctica é sempre a mesma: transformar o lapso ou
a omissão num mero problema formal ou processual, ignorando o seu substantivo
significado no exercício de cargos que exigem exemplaridade.
Ficámos a saber como
responsáveis e titulares de cargos políticos desvalorizam como simples
burocracia o cumprimento escrupuloso da lei que, directa ou indirectamente,
está relacionada com o controlo do desempenho de cargos políticos e públicos. E
depois com tão “virtuosos exemplos” querem fazer-nos crer que a primazia do
combate político vai para a luta contra a corrupção...
A verdadeira virtude e a
liderança advêm da autoridade do exemplo. Não são os cargos que fazem as
pessoas, são as pessoas que fazem os cargos. No entanto, a perspectiva
axiológica do uso do poder como poder-dever é cada vez mais a excepção. No
frenesim de micro, pequenas e médias éticas, certas “elites” vêm-se tornando
mais amnésicas.
Esta questão é
politicamente transversal, embora haja uns mais iguais do que outros (a
excepção mais visível parece ser o PCP). Por isso, depois da gritaria
mediática dos primeiros momentos, o tempo encarrega-se de amnistiar a memória
perdida na cultura proeminente do descarte.
E sempre se invoca a
ética republicana. Como se a palavra ética não valesse por si. Como se o
adjectivo a valorizasse ou a aumentasse. Como se o mesmo atributo lhe desse um
estatuto de uma qualquer superioridade.
Como já tivemos três
Repúblicas, o que quer dizer essa adjectivação da ética? É que já houve de tudo
no plano ético e político. Uma coisa e o seu contrário. De positivo e de
negativo. De construtivo e de destrutivo. De seguidismo e de persecutório. De
direitos e de míngua deles. De verdade e de mentira. De carácter e da sua
falta. De serviço probo e de aproveitamento criminoso.
Diz-se que a ética
republicana consiste em cumprir escrupulosamente a lei. Acontece
que o conjunto das normas jurídicas e o conjunto das normas éticas jamais
coincidem. A lei é o limite inferior da ética. A ética não se estrutura
na dicotomia legal/ilegal, mas radica na consciência. O conjunto do
que é moralmente aceitável (o legítimo) é mais restrito e exigente do que é
juridicamente aceitável (o legal). Nem tudo o que a lei permite se nos deve
impor, e há coisas que a lei não impõe, mas que se nos podem e devem impor. Nenhuma
lei proíbe em absoluto a mentira, a desonestidade, a deslealdade, a malvadez, o
ódio, o desprezo, a vilanagem... Como nenhuma lei só por si assegura a decência,
a verdade, a amizade, a generosidade, a solidariedade...
A consciência de uma
pessoa honesta é mais exigente do que o produto de um legislador. A legitimação
democrática de umas eleições é politicamente relevante, mas não se vota sobre o
que é verdadeiro ou falso, nem sobre as categorias éticas de bem e de mal.
Por isso, não faz
sentido adjectivar ou catalogar a ética. Há simplesmente a ética. Pura e, não
raro, dura. Onde não há lugar para essa “terceira categoria” ética dos actos
indiferentes entre os actos bons e maus, uma espécie de silenciosa amiba onde
se acolhem as maiores perversidades. E onde não cabe o elogio da ética da
quantidade e da ética condicional, pelas quais o carácter e a decência passaram
a andar de mãos dadas com um qualquer “se”, “não obstante”, “mas”, “talvez” ou
“mais ou menos”. Ouve-se frequentemente dizer que certa pessoa é muito honesta.
Ou pouco honesta. Como se a honestidade tivesse um medidor. Para quê o muito ou
o pouco? Ou o quase sempre, ou o às vezes? Pode-se ser decente de manhã e
indecente à tarde ou à noite?
A linguagem tem sido
sujeita a uma anestesia ou mudez moral que favorece o relativismo ético. Hoje
os mentirosos já não mentem. Dizem inverdades. Certas fraudes já não o são.
Foram promovidas tecnocraticamente a imparidades que nós todos pagamos. Um
conflito de interesses pode não o ser. Depende do próprio interesse envolto em
labirintos hermenêuticos. A desonestidade às vezes é apelidada de virtuosa
flexibilidade. Assuntos públicos disfarçam-se de privados e vice-versa, em
função de tudo excepto do bem-comum. O falsário cá dentro pode ser impoluto lá
fora e vice-versa. A batota pode não o ser. Depende do pedigree do batoteiro.
O trabalho decente conta menos. Vale mais a esperteza arrivista. O valor ético
da exactidão esvazia-se. O que conta é o calculismo da inexactidão. A própria
prudência é agora imprudente. Foi substituída por sinais exteriores de ousadia
bacoca. A iconografia do sucesso mesmo que aparente substitui a iconografia dos
valores mesmo que imprescindíveis.
Assistimos a uma
ética à la carte,
onde a fronteira entre o bem e o mal se erodiu fortemente, onde a verdade
definha, a autenticidade escasseia, o exemplo desaparece. Chamem-lhe
republicana ou não.
Nenhum comentário:
Postar um comentário