Quando se conquistou a
democracia, falou-se muito por cá nos direitos humanos, entre os quais se
prezava o direito de se ser livre. Os deveres e o respeito por valores que
antes se prezavam – respeito pela pátria e a bandeira e a honra e a velhice e os
valores da ética, tudo isso foi ofuscado em prol da liberdade, que cada um
reivindica como direito absoluto, de que se não prescinde. Até estranho que
ainda haja prisões, a revelar a falácia dessa conquista. Nas escolas, dantes,
havia liberdade, brincadeiras normais, zangas e reconciliações normais, saudáveis
e propícias ao crescimento. Hoje, nas escolas, há palavrões e bullying, segundo
a lei do mais forte, ou seja, da selva, e permite-se tal em nome da liberdade.
E de repente, ouve-se falar em
«poderosas máquinas, das multinacionais maléficas e do capitalismo
internacional», com intervenção abusiva nos dados pessoais dos
cidadãos. Tudo isso António Barreto esclarece, e tudo se passou por conta do
finca-pé nas liberdades que fizeram que muitos cidadãos de aparência nobre se
apoderassem de dinheiros indevidamente, e outras anomalias de procedimentos, o que faz
que as tais organizações se imiscuam e intervenham e tramem todos.
António Barreto explica.
Parece abjecto, mas foi no que deu a liberdade: temos o dever de revelar os
dados da nossa conta bancária, em troca da liberdade assinalada na Constituição
para todos os cidadãos. Mesmo os incendiários.
Dados e cidadãos
ANTÓNIO BARRETO
DN, 3/6/18
O debate público sobre a
protecção de dados prossegue. Os mails cruzados a este
propósito, diariamente, por pessoas e organizações, são às dezenas e às centenas.
Todos tentam proteger-se ou adoptar os novos procedimentos legais. A pressão
vinha de trás, a União Europeia ocupava-se do assunto há muito, mas as
aldrabices do Facebook e as intrusões russas e americanas aceleraram tudo.
Ficámos com receio legítimo dessas poderosas máquinas, das multinacionais
maléficas e do capitalismo internacional. Assim como de todos os
serviços de espionagem e similares, americanos, pois claro, ingleses, os mais
inteligentes, israelitas, os mais eficientes, russos, os mais selvagens,
chineses, os mais não se sabe bem o quê. Verdade é que a desconfiança aumenta.
Com a ideia de que estamos a proteger os dados, corre-se o risco de passar ao
lado do essencial. Na verdade, aquilo de que deveria tratar-se era de
proteger os cidadãos. Evidentemente, uma coisa leva à outra e vice-versa. Mas é
mais interessante colocar a tónica no cidadão. É por ele que se devem proteger
os dados. Não o contrário.
As dívidas dos ricos à
banca, designadamente à Caixa Geral de Depósitos, estão também no centro dos
debates. As razões são especiais, mas estamos novamente no
domínio da protecção de dados e de cidadãos. Como se trata de ricos,
ninguém parece incomodar-se muito. Mas estamos a entrar em zonas perigosas.
É difícil perceber por que razão é moralmente aceitável publicitar as
dívidas dos ricos e não as de toda a gente. Ou porque será razoável divulgar
qualquer dívida que seja. Como, além de ricos, estão em causa alguns aldrabões,
não só ninguém se importa como é crescente o número dos que aplaudem. Mas o
certo é que os aldrabões também são cidadãos. O tema é mesmo muito sério.
Outro assunto que diz
respeito ao cidadão e aos dados e vem mesmo a propósito é o das facilidades que
o multibanco e os terminais do comércio de retalho oferecem à devassa.
E quem sabe se ao roubo e à chantagem. Esta semana, num restaurante, um
indivíduo entregou o seu cartão para pagamento da factura que lhe foi
apresentada. O mesmo aconteceu a uma senhora, sem relações com o anterior, que
ia pagar o que comprou numa loja do centro comercial. Em ambos os casos, as
pessoas em questão não sabiam se tinham dinheiro que chegasse. Para evitar
vergonhas, disseram qualquer coisa como "Não sei se há saldo disponível.
Se não houver, diga-me para eu mudar de cartão. Ou pagar em notas". Solícitos,
os empregados disseram mais ou menos o mesmo: "Mas olhe que eu posso ver o
saldo." Os clientes ficaram surpreendidos e acederam. Depois de
digitar o PIN, como se fosse para pagar normalmente, os empregados mostram, a
um, o saldo que tem no banco (não apenas dos movimentos do multibanco, mas sim
em toda a conta bancária); à outra, oferecem-lhe uma longa tira de papel
impressa na qual estão enumerados, com nomes e montantes, todas as receitas e
despesas na sua conta, incluindo renda de casa, serviços domésticos, débitos
directos, levantamentos, vencimento, prestações, aforros, etc. Não é
possível imaginar maior devassa!
Dá para pensar no que
acontece ou pode acontecer cada vez que num comércio o funcionário diz, com ar
desolado, "Pode por favor digitar outra vez o seu PIN? É que houve uma
anomalia...". Com que direito, com que autorização, um serviço
fornece os dados pessoais de uma conta bancária? Compreender-se-ia,
provavelmente, que esses serviços dissessem ao comerciante que aquele cliente,
naquele momento, tinha saldo para cobrir aquela quantia. Mas desvendar os
movimentos, os saldos, as entidades que pagaram ou receberam, com datas e
montantes, tanto do serviço de multibanco como da conta bancária... Não
lembra ao diabo!
Os bancos sabem o que se passa?
Como se defendem? As autoridades reguladoras e outras
conhecem estes mecanismos? E permitem? A Comissão Nacional de
Protecção de Dados está ao corrente desta situação? Fez alguma coisa?
A União Europeia e o BCE sabem e permitem? Nos outros países europeus
também é assim? Os nossos governantes e os deputados sabem disto? E aceitam? E
não se importam?
Os contentores e a cidade, Lisboa
Poucas pessoas se
passeiam hoje pelo rio Tejo. Se o fizessem, é o que veriam em vários pontos da
cidade e dos cais. É o que vêem os passageiros dos cruzeiros e os que
atravessam o rio, todos os dias, para trabalhar. A imagem é curiosa, presta-se
a exercícios fotográficos. Mas não se pode dizer que seja o mais belo ponto de
vista urbano que se imagina. Os contentores prolongam-se na cidade, o casario
mergulha nos contentores. Seria preferível vermos Lisboa ribeirinha asseada, de
bairros e colinas, de árvores e parques, de avenidas e pérgulas. Também
ficaríamos felizes se, em vez de contentores, que deveriam estar em
Sines, tivéssemos a alegria de ver grandes planos bem abertos do novo terminal
de cruzeiros, de Carrilho da Graça, da nova torre de controlo, de Gonçalo
Byrne, ou ainda o MAAT, de Amanda Levete, e a Fundação Champalimaud, de Charles
Correa. Para já não falar da Torre de Belém, de Francisco Arruda! Mas enfim...
Tejo é Tejo e Lisboa é Lisboa!
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