segunda-feira, 4 de junho de 2018

Trata-se de um dever



Quando se conquistou a democracia, falou-se muito por cá nos direitos humanos, entre os quais se prezava o direito de se ser livre. Os deveres e o respeito por valores que antes se prezavam – respeito pela pátria e a bandeira e a honra e a velhice e os valores da ética, tudo isso foi ofuscado em prol da liberdade, que cada um reivindica como direito absoluto, de que se não prescinde. Até estranho que ainda haja prisões, a revelar a falácia dessa conquista. Nas escolas, dantes, havia liberdade, brincadeiras normais, zangas e reconciliações normais, saudáveis e propícias ao crescimento. Hoje, nas escolas, há palavrões e bullying, segundo a lei do mais forte, ou seja, da selva, e permite-se tal em nome da liberdade.
E de repente, ouve-se falar em «poderosas máquinas, das multinacionais maléficas e do capitalismo internacional», com intervenção abusiva nos dados pessoais dos cidadãos. Tudo isso António Barreto esclarece, e tudo se passou por conta do finca-pé nas liberdades que fizeram que muitos cidadãos de aparência nobre se apoderassem de dinheiros indevidamente,  e outras anomalias de procedimentos, o que faz que as tais organizações se imiscuam e intervenham e tramem todos.
António Barreto explica. Parece abjecto, mas foi no que deu a liberdade: temos o dever de revelar os dados da nossa conta bancária, em troca da liberdade assinalada na Constituição para todos os cidadãos. Mesmo os incendiários.

Dados e cidadãos
ANTÓNIO BARRETO
DN, 3/6/18
O debate público sobre a protecção de dados prossegue. Os mails cruzados a este propósito, diariamente, por pessoas e organizações, são às dezenas e às centenas. Todos tentam proteger-se ou adoptar os novos procedimentos legais. A pressão vinha de trás, a União Europeia ocupava-se do assunto há muito, mas as aldrabices do Facebook e as intrusões russas e americanas aceleraram tudo. Ficámos com receio legítimo dessas poderosas máquinas, das multinacionais maléficas e do capitalismo internacional. Assim como de todos os serviços de espionagem e similares, americanos, pois claro, ingleses, os mais inteligentes, israelitas, os mais eficientes, russos, os mais selvagens, chineses, os mais não se sabe bem o quê. Verdade é que a desconfiança aumenta. Com a ideia de que estamos a proteger os dados, corre-se o risco de passar ao lado do essencial. Na verdade, aquilo de que deveria tratar-se era de proteger os cidadãos. Evidentemente, uma coisa leva à outra e vice-versa. Mas é mais interessante colocar a tónica no cidadão. É por ele que se devem proteger os dados. Não o contrário.
As dívidas dos ricos à banca, designadamente à Caixa Geral de Depósitos, estão também no centro dos debates. As razões são especiais, mas estamos novamente no domínio da protecção de dados e de cidadãos. Como se trata de ricos, ninguém parece incomodar-se muito. Mas estamos a entrar em zonas perigosas. É difícil perceber por que razão é moralmente aceitável publicitar as dívidas dos ricos e não as de toda a gente. Ou porque será razoável divulgar qualquer dívida que seja. Como, além de ricos, estão em causa alguns aldrabões, não só ninguém se importa como é crescente o número dos que aplaudem. Mas o certo é que os aldrabões também são cidadãos. O tema é mesmo muito sério.
Outro assunto que diz respeito ao cidadão e aos dados e vem mesmo a propósito é o das facilidades que o multibanco e os terminais do comércio de retalho oferecem à devassa. E quem sabe se ao roubo e à chantagem. Esta semana, num restaurante, um indivíduo entregou o seu cartão para pagamento da factura que lhe foi apresentada. O mesmo aconteceu a uma senhora, sem relações com o anterior, que ia pagar o que comprou numa loja do centro comercial. Em ambos os casos, as pessoas em questão não sabiam se tinham dinheiro que chegasse. Para evitar vergonhas, disseram qualquer coisa como "Não sei se há saldo disponível. Se não houver, diga-me para eu mudar de cartão. Ou pagar em notas". Solícitos, os empregados disseram mais ou menos o mesmo: "Mas olhe que eu posso ver o saldo." Os clientes ficaram surpreendidos e acederam. Depois de digitar o PIN, como se fosse para pagar normalmente, os empregados mostram, a um, o saldo que tem no banco (não apenas dos movimentos do multibanco, mas sim em toda a conta bancária); à outra, oferecem-lhe uma longa tira de papel impressa na qual estão enumerados, com nomes e montantes, todas as receitas e despesas na sua conta, incluindo renda de casa, serviços domésticos, débitos directos, levantamentos, vencimento, prestações, aforros, etc. Não é possível imaginar maior devassa!
Dá para pensar no que acontece ou pode acontecer cada vez que num comércio o funcionário diz, com ar desolado, "Pode por favor digitar outra vez o seu PIN? É que houve uma anomalia...". Com que direito, com que autorização, um serviço fornece os dados pessoais de uma conta bancária? Compreender-se-ia, provavelmente, que esses serviços dissessem ao comerciante que aquele cliente, naquele momento, tinha saldo para cobrir aquela quantia. Mas desvendar os movimentos, os saldos, as entidades que pagaram ou receberam, com datas e montantes, tanto do serviço de multibanco como da conta bancária... Não lembra ao diabo!
Os bancos sabem o que se passa? Como se defendem? As autoridades reguladoras e outras conhecem estes mecanismos? E permitem? A Comissão Nacional de Protecção de Dados está ao corrente desta situação? Fez alguma coisa? A União Europeia e o BCE sabem e permitem? Nos outros países europeus também é assim? Os nossos governantes e os deputados sabem disto? E aceitam? E não se importam?
Os contentores e a cidade, Lisboa
Poucas pessoas se passeiam hoje pelo rio Tejo. Se o fizessem, é o que veriam em vários pontos da cidade e dos cais. É o que vêem os passageiros dos cruzeiros e os que atravessam o rio, todos os dias, para trabalhar. A imagem é curiosa, presta-se a exercícios fotográficos. Mas não se pode dizer que seja o mais belo ponto de vista urbano que se imagina. Os contentores prolongam-se na cidade, o casario mergulha nos contentores. Seria preferível vermos Lisboa ribeirinha asseada, de bairros e colinas, de árvores e parques, de avenidas e pérgulas. Também ficaríamos felizes se, em vez de contentores, que deveriam estar em Sines, tivéssemos a alegria de ver grandes planos bem abertos do novo terminal de cruzeiros, de Carrilho da Graça, da nova torre de controlo, de Gonçalo Byrne, ou ainda o MAAT, de Amanda Levete, e a Fundação Champalimaud, de Charles Correa. Para já não falar da Torre de Belém, de Francisco Arruda! Mas enfim... Tejo é Tejo e Lisboa é Lisboa!





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