É claro que a reacção dos intelectuais
de hoje à intervenção de um estadista contra um rapazinho que, em vez de se
orgulhar da sua História e respeitar a coragem dos que fizeram a Resistência
contra a ocupação do seu país, conspurca provocatoriamente um acto oficial, cuspindo
o seu pequeno mundo de má criação arrogante, fruto das liberdades que os tempos democráticos aparentemente favorecem
e que as famílias não deixam de incutir, elas próprias libertas desses valores do
respeito que, pese embora o convencionalismo dos actos oficiais, contribui
ainda para lembrar sofrimentos e valentias que fizeram a coesão nacional. Por
cá, Miguel Esteves Cardoso, que não ama Macron, deturpa hipocritamente a
intenção malcriada do rapaz convertendo a sua grosseria em à-vontade amistoso não
aceite, naturalmente, pelo presidente francês, razoavelmente orgulhoso, o que é
defeito de vaidade inaceitável, quando exibido publicamente. Quanto a Pedro
Mexia, ele próprio senhor de um domínio intelectual distante e sobranceiro,
remete, também hipocritamente, para a família, o sermão educativo, sabendo quanto
tal atitude pedagógica, hoje em dia essencialmente dialogante, de uma liberdade
favorecedora do desenvolvimento da personalidade, de que “La Maison de papier” de
Françoise Mallet-Joris é
exemplo, em registo simpático mas utópico, é irrelevante. E falsa.
Por isso, admiro Macron,
como homem corajoso que não se coibiu de oferecer a lição, mau grado o risco
que correu, perante uma assembleia de muitos “Mexias” e “Cardosos” jactanciosos,
na sua pseudo-simpatia pela juventude livre, conferindo esse dado, a eles
próprios que o defendem, o mesmo estatuto de “homens livres”, para que fique
registado, como seguidores da “inteligência”. Ou do pedantismo intelectual, como se lhe queira chamar.
Igualmente, é claro, admiro João
Miguel Tavares, pela sua coragem em defender Macron, sabendo bem o risco
que corre perante os seus detractores progressistas. E cito novamente a sua
argumentação, como exemplo de coragem e nobreza, tão distantes já deste nosso
universo de fatuidade inócua:
«Em primeiro lugar, e talvez por já estar demasiado calejado quanto
a adolescentes insolentes, o que vi foi um miúdo armado em chico-esperto a
querer exibir o seu atrevimento à frente dos amigos – não um jovem amistoso com
défice protocolar. Ora, existe uma enorme diferença entre “respeito” e
“respeitinho” e entre “irreverência” e “insolência”. Dinamitar o respeitinho e
cultivar a irreverência é uma forma de cada um exercer a sua liberdade
individual de uma forma tão lata quanto possível, recusando pactuar com o
silenciamento de ideias ou com os argumentos de autoridade. É, nesse sentido,
uma forma de enriquecimento do espaço público. A insolência não é nada disso: é
um modo de desrespeitar regras de cortesia e protocolos de comunicação,
indispensáveis à realização de qualquer conversa. Não é um ataque a ideias, mas
sim um ataque gratuito a pessoas.
É nesse sentido – e este é o meu segundo argumento – que Macron fez bem
em criticar o miúdo. Não o vejo como uma humilhação. Bem pelo contrário: Macron
levou-o a sério e deu-lhe importância. Um bom sermão tem sempre grandes
vantagens, e não deve estar reservado aos pais, sobretudo quando os pais não
estão lá. Aquele rapaz ouviu o que precisava: que as revoluções não se fazem a
trautear A Internacional e que há coisas que existiam antes de nós e continuarão depois de
nós: os heróis, a história de um país, o sistema político que criámos para
viver em liberdade e em paz. Respeitar isso não é subserviência – é apenas
inteligência, sensatez e boa educação.»
OPINIÃO
O sermão de Macron a um
adolescente francês
Um bom sermão tem sempre grandes vantagens, e não deve
estar reservado aos pais, sobretudo quando os pais não estão lá.
PÚBLICO, 26 de Junho de 2018
Por esta altura já quase
toda a gente viu as imagens: numa cerimónia de homenagem à resistência francesa
durante a Segunda Guerra Mundial, um jovem de 14 anos dirigiu-se a Emmanuel
Macron com um coloquial “ça va, Manu?”, logo depois de ter trauteado A Internacional. Macron ouviu, não
gostou e pregou: “Não, não, não, não, não... Estás numa cerimónia oficial e,
por isso, comportas-te como deve ser. Podes armar-te em imbecil, mas hoje é dia
de cantar A Marselhesa e O Canto dos Partisans [hino
da resistência à ocupação alemã]. A mim chamas-me senhor Presidente da
República, ou senhor, de acordo?” E depois, não inteiramente satisfeito,
voltou atrás para uma segunda dose de sermão: “No dia em que quiseres fazer
a revolução tira primeiro um diploma e aprende a sustentar-te. Então poderás
dar lições aos outros.”
Houve quem não gostasse, e
são basicamente dois os tipos de reacção a criticar o comportamento de Macron.
O primeiro considera que o jovem estava apenas a ser simpático, e que a
resposta do Presidente francês foi estupidamente arrogante. Miguel Esteves Cardoso escreveu que
o cumprimento amistoso do rapaz recebeu em troca uma resposta digna de
“um bullyzinho todo franciú” e “emproado”.
O segundo tipo de reacção admite que o miúdo foi insolente, mas entende –
opinião de Pedro Mexia – que os sermões estão reservados para os pais, e que
não compete a um Presidente da República responder com artilharia pesada à
provocação de um adolescente.
Discordo tanto de
Esteves Cardoso como de Pedro Mexia, e estou inteiramente ao lado de Macron –
ele fez muito bem em responder daquela maneira. Explico porquê. Sendo eu um
liberal com uma coluna chamada “o respeitinho não é bonito”, que odeia o país
dos senhores doutores e que entende que padecemos de um défice tremendo de
irreverência, este meu posicionamento pró-Macron é uma coisa que à primeira
vista pode parecer que não faz sentido. Mas faz, por duas razões.
Em primeiro lugar, e talvez
por já estar demasiado calejado quanto a adolescentes insolentes, o que vi foi
um miúdo armado em chico-esperto a querer exibir o seu atrevimento à frente dos
amigos – não um jovem amistoso com défice protocolar. Ora, existe uma enorme
diferença entre “respeito” e “respeitinho” e entre “irreverência” e
“insolência”. Dinamitar o respeitinho e cultivar a irreverência é uma forma de
cada um exercer a sua liberdade individual de uma forma tão lata quanto
possível, recusando pactuar com o silenciamento de ideias ou com os argumentos
de autoridade. É, nesse sentido, uma forma de enriquecimento do espaço público.
A insolência não é nada disso: é um modo de desrespeitar regras de cortesia e
protocolos de comunicação, indispensáveis à realização de qualquer conversa.
Não é um ataque a ideias, mas sim um ataque gratuito a pessoas.
É nesse sentido – e este é
o meu segundo argumento – que Macron fez bem em criticar o miúdo. Não o vejo
como uma humilhação. Bem pelo contrário: Macron levou-o a sério e deu-lhe
importância. Um bom sermão tem sempre grandes vantagens, e não deve estar
reservado aos pais, sobretudo quando os pais não estão lá. Aquele rapaz ouviu o
que precisava: que as revoluções não se fazem a trautear A Internacional e que
há coisas que existiam antes de nós e continuarão depois de nós: os heróis, a
história de um país, o sistema político que criámos para viver em liberdade e
em paz. Respeitar isso não é subserviência – é apenas inteligência, sensatez e
boa educação.
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