quarta-feira, 20 de junho de 2018

Incógnita com aviso



Tal como um dos comentadores de Teresa de SousaDarktintambém eu não me  canso de a ler, ciente de que as suas análises políticas contêm, para além do rigor fundamentado, a subjectividade suficiente que nos transmite as suas preocupações sobre a interligação e a evolução e rapidez dos casos, segundo um ponto de vista que parece isento, apesar da sua filiação partidária que a torna sujeita, por vezes a discordâncias, se não mesmo a chufas dos que preferem não reparar na inteligência, seriedade e humanismo dos seus raciocínios e apenas atentar no desconforto que a abertura democrática para a invasão migratória provocou no surgimento dos populismos nacionalistas reagindo ao desconforto assim criado, não raro gerador da barbárie terrorista, talvez imparável e justificativa da sua rejeição.
Vicente Jorge Silva historia idênticos acontecimentos da história recente universal, também com leveza e rigor, lançando igualmente o olhar sobre os casos “tristes e “indignos” de memória” passados no nosso futebol e mais especificamente no Sporting, que não há como aceitar tais escarros sobre as nossas caras indignadas com a roupa suja sintomática de uma burrice e um desrespeito  sem tréguas.
Mas há também a sua crónica sobre a eutanásia, um tanto absurda e desconcertante, pela aceitação para si de uma prática de que tem escrúpulos em promover a legalização. A menos que tal signifique a velha máxima de "uma no cravo e outra na ferradura", querendo aparentar, a todo o custo, modernidade de conceito, que é o que está na berra para nos safarmos na vida.

I - A Europa não é feita de “culturas”, umas melhores do que as outras
Há alguma coisa de profundo, uma ponta de angústia, que nos faz olhar para o futuro da Europa com grande preocupação.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 3 de Junho de 2018
1. Nos dias que correm escrever sobre o que se passa no mundo tornou-se um exercício arriscado. Os exemplos são muitos. Apenas os mais recentes. Num dia, elaboramos sobre a rejeição da coligação entre a Liga e o Cinco Estrelas pelo Presidente Matarella, por causa de um ministro das Finanças excessivamente eurocéptico. No outro, vemos o primeiro governo da Europa Ocidental resultante de uma coligação entre populistas e extrema-direita tomar posse em Roma. Os dois partidos têm sérias reservas contra o euro e a União Europeia e o seu programa eleitoral prevê a expulsão maciça de imigrantes ilegais (500 mil). Alargando horizontes, num dia temos de escrever sobre a decisão inesperada de Trump de cancelar a cimeira com o seu homólogo norte-coreano para, quinze dias depois, vê-lo anunciar que a cimeira está marcada para o mesmo dia e o mesmo local. A imprevisibilidade da Casa Branca começa a parecer-se com uma “estratégia”. Os europeus não estão preparados para ela.
2. Na Europa, a Itália é uma espécie de “lugar geométrico” do que pode vir a acontecer, fruto das consequências políticas de uma crise existencial que dura há demasiado tempo e que deixou marcas profundas. Já se disse quase tudo. Do peso da Itália na economia e na política europeia, às nuvens negras que se voltam a adensar sobre o euro. Não há que ter ilusões sobre as intenções do novo governo italiano e sobre quem está a beneficiar mais com a crise profunda dos partidos do sistema. Matteo Salvini é o grande vencedor. O seu partido é de extrema-direita, idêntico à Frente Nacional francesa, a mesma que pregou um enorme susto à Europa há apenas um ano, mas com o qual a Europa aprendeu pouco. O discurso oficial de Bruxelas é simples: a Itália tem de cumprir, como os outros, a regras do euro. O que é verdade. A União Europeia assenta na “partilha de soberania”, garantida por regras comuns. Sem esse compromisso livremente aceite, a integração europeia, pura e simplesmente, não existiria. Mas o problema já não é esse. E é a resposta política que falta à Europa para contrapor aos seus detractores, que diga alguma coisa aos europeus no seu conjunto e não apenas aos alemães ou aos holandeses.
3. A Espanha é outro caso, que não tem nada a ver com o italiano. O líder do PSOE, Pedro Sánchez, aproveitou uma conjuntura particular para derrubar o PP e tomar conta do Governo. Deixo de lado a conjuntura política e as transformações do sistema partidário espanhol. O essencial é que PP, PSOE e Cidadãos são partidos defensores da democracia liberal e da Europa, que não há um movimento xenófobo anti-imigrantes em Espanha (a Península Ibérica fica bastante bem nesta fotografia), que as contas públicas estão em ordem e a economia a crescer. O problema dos nacionalismos, exacerbado pela Catalunha, não quebrou a unidade entre PP, PSOE e Cidadãos.
4. Mas há alguma coisa de mais profundo, uma ponta de angústia, que nos faz olhar para o futuro da Europa com grande preocupação. A crise italiana provocou reacções intempestivas e desnecessárias em Bruxelas. Mas nada é comparável a algumas reacções a que assistimos na Alemanha. A forma como a prestigiada Der Spiegel reagiu ao que aconteceu em Roma provoca uma profunda inquietação. A fotografia escolhida é a de uma baía na maravilhosa Costa Amalfitana de Itália. A prova do delito são os iates ancorados junto à praia. As palavras sintetizam a mensagem: os “parasitas” italianos são “pobres e mal-agradecidos”. Ou seja, são pobres e compram iates à nossa custa.
A Itália não é um país pobre. A região de Milão é, ainda hoje, uma das mais ricas da Europa. A sul de Nápoles mantêm-se níveis de rendimento mais baixos e uma corrupção endémica, mas o país continua na média da riqueza europeia. Roma é, porventura, a cidade mais fascinante do mundo, onde ninguém respeita o sentido do trânsito mas não há acidentes. A Via Condotti é território reservado a chineses, japoneses, árabes, americanos, que valorizam tanto um fato italiano como um BMW. A Itália recebe fundos europeus, sobretudo para a sua agricultura, cujas marcas ainda são sinónimos de qualidade mundial, tal como a agricultura alemã recebe, já para não falar da francesa. A economia italiana tem um sério problema de competitividade porque não conseguiu adaptar um modelo que era dinâmico às novas condições da globalização. A elite política desprestigiou-se totalmente aos olhos de uma maioria de eleitores. Berlusconi já foi um sintoma. Mas convém recordar duas coisas: ao longo dos anos de crise, só num ano a Itália teve um saldo orçamental primário negativo. A dívida é enorme, mas está, numa parte significativa, em mãos de italianos.
O diário económico alemão Handelsblatt, conservador, publicava a 30 de Maio um artigo do seu correspondente em Roma com o seguinte título: “Nós, alemães, devíamos parar de nos armarmos em superiores perante a Itália”. “Como na Itália, a paisagem política alemã está fragmentada (…). A Alemanha deixou de ser um oásis de estabilidade.” O jornalista considera que Berlim não tem sido um bom “capitão” para a frota europeia, deixando muitos barcos à deriva à primeira tempestade. “As pessoas, na Grécia, Espanha, Portugal e na Itália não gostam de andar pela trela. Ninguém gosta de andar com trela.” Quando a crise da dívida colocou o euro à beira do precipício, Angela Merkel não reagiu da melhor maneira. Agarrou-se à cláusula de no bailout de Maastricht e declarou que não tencionava pagar a dívida dos outros. Deitou achas na fogueira. Não contrariou o discurso “punitivo” contra os indisciplinados, preguiçosos, irresponsáveis do Sul, que abriu as portas à mentalidade que hoje transparece nas reacções à crise italiana. Ela própria também foi vítima do preconceito, quando, em Lisboa ou em Atenas, foi recebida com cartazes que a identificavam com Hitler. Mas nunca foram mais do que pequenas manifestações de sectores radicais, que representam muito pouco.
5. Estamos a assistir ao regresso das “culturas”, umas melhores do que as outras, o que não é um bom sinal. A única coisa positiva é que os alemães, apesar da sua “cultura”, não são assim tão bons. Andam há 10 anos a construir um novo aeroporto de Berlim e ainda não conseguiram acertar. Foi preciso uma investigação nos EUA para ficarmos a saber que a VW, emblema da “technologie”, andava a enganar toda a gente com as emissões de carbono dos seus motores a Diesel. Os aviões de combate não voam e faltam peças aos blindados. Pelo menos dois ministros da chanceler abandonaram o governo por terem plagiado nas teses de doutoramento. A economia alemã continua a ser uma poderosa máquina exportadora graças à capacidade das suas PME e à produtividade da sua mão-de-obra. Foram as reformas de um governo social-democrata (com os Verdes) que a prepararam para tirar partido da globalização.
Recentemente, o mesmo Handelsblatt lembrava que o novo ministro-presidente da Baviera, Markus Soeder, que enfrenta eleições no final do ano, tinha decidido tornar obrigatória a cruz de Cristo em todos os edifícios públicos. As reacções foram muito negativas, incluindo a do arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx. Cinquenta e oito por cento dos votantes bávaros apoiaram a sua medida. O líder bávaro elegeu a defesa da “cultura alemã” como bandeira eleitoral, visando os imigrantes islâmicos. Diz que quer tirar votos ao partido de extrema-direita AfD.
6. Merkel tem conseguido evitar uma catástrofe europeia. Talvez porque veio do Leste, valoriza a Europa e os seus valores. Mas há uma nova geração que vê a União com outros olhos, muito distintos de Kohl, da geração da II Guerra, ou de Joschka Fischer, a primeira geração que desafiou o que restava do espírito nacionalista dos alemães, durante a crise estudantil de 1968. Parece mais longe de entender que a Europa não sobreviverá, se as “culturas” regressarem ou se se perpetuar uma situação em que, citando António Vitorino, são sempre os mesmos que perdem e os mesmos que ganham.
Comentários:
Darktin:  Anti Comunistas da Extrema-Direita 03.06.2018 : Sei que já um cliché mas: mais um brilhante ponto de situação de Teresa de Sousa. Não me canso de a ler. Uma das melhores da Europa. Quanto aos pontos que tocou, de facto vivemos uma crise de soberba misturada mais, um vez, com o medo dos imigrantes. No passado era o medo dos imigrantes do sul e agora, os imigrantes islâmicos. Como todas as crises, temos duas direcções. Pode ser passageira ou pode ser fracturante. Tenho certeza que a UE continuará a existir. O que não tenho a certeza é quantas Uniões Europeias teremos. É inegável que para Portugal a UE foi um sucesso. Contudo, nunca sofremos o problema da imigração. Muitos pontos vão ter de ser revistos. O problema da UE não é económico mas é o medo.  A extrema direita e pessoas estúpidas como Trump ganham poder neste sentimento. São os mexicanos e são os islâmicos. Vamos ter de rever alguns mecanismos de fronteiras. Já é notório que uma grande parte dos europeus não estão contentes com ela. Assim como os americanos. Os problemas foram exacerbados para escamotear a corrupção de muitos políticos. Contudo, como não há alternativas, pessoas ainda mais corruptas chegam ao poder porque citam discursos de xenofobia e de racismo. Faz-me lembrar o lema da Área 51 dos EUA: "uma pessoa é inteligente e racional mas a mole é estúpida e facilmente enganada.
4a República, República Bananeira da Tugalândia 04.06.2018 : Será que há quem ainda não tenha compreendido a ameaça islâmica na sua verdadeira proporção?! O problema não são as pessoas em si, e não duvido que haja uma esmagadora maioria de excelentes indivíduos que partilham essa religião. O problema põe-se relativamente aos valores e mandamentos do Islão que em absolutamente nada garantem que de um casal exemplar não surja um filho que adopte literalmente as mensagens de ódio do Corão. Das grandes religiões o Islão possui os mais explícitos apelos à violência. Degolações, violações, genocídio está lá tudo às claras. Os Taliban e o EI não inventaram nada. Apenas fizeram o que é ordenado. E quem se atreve a criticar a mensagem de Alá e Maomé é morto. Isto é intolerável. Há ideologias proibidas há dezenas de anos por apelarem aos mesmos actos!
Alforreca Passista,  Anti-liberal fascista 03.06.2018. Porque é que a "dona" Teresa Europeísta não pergunta à Europeísta Merkel pelas suas responsabilidades na destruição das economias do sul da Europa para salvar os bancos alemães? Porque é que os corruptos alemães merecem ser salvos e os outros corruptos do sul da Europa não, será que a Merkel acha que faz parte de uma raça superior.?
Jonas Almeida Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 03.06.2018: Tem razão, Alforreca, ela acha com certeza, foi para isso que foi eleita. Se não podemos culpar completamente uma governante alemã por defender a superioridade dos interesses do seu povo, a questão é muito diferente sobre porque nos escravizam os nossos pseudo-representantes a interesses alheios. Não é difícil descobrir que este clientelismo de roçado lhes é muito benéfico em trocas e baldrocas em paraísos fiscais e gabinetes alcatifados. Como vimos na Itália, já nem 2/3 da vontade expressa do povo vale mais do que o comando de um eurocrata.

II- OPINIÃO
Das “fake news” às “mad news”: o tempo dos charlatães
Corremos o risco de, face à impotência de reformar a Europa, nos tornarmos reféns dos demagogos e charlatães que tudo prometem e nos arrastam para o abismo
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 3 de Junho de 2018
O que diríamos ser impossível pode tornar-se real no curto espaço de uma semana, como aquela que passou – e que talvez não seja equiparável a nenhuma outra em tempos recentes. O facto, porém, é que estávamos prevenidos e vacinados e nada deveria já surpreender-nos, incluindo uma sucessão dos mais improváveis golpes de teatro. Ora, esses não faltaram.
Trump declara uma guerra comercial à Europa, Canadá e México quase ao mesmo tempo que confirma o seu encontro com Kim Jong-Un, anulado poucos dias antes; a dupla populista Liga-5 Estrelas acede finalmente ao poder em Itália depois de uma reviravolta suscitada pelas reservas do Presidente Mattarella ao nome de um ministro eurocéptico na pasta da Economia do Governo Conte (o mesmo ministro foi entretanto deslocado para os Assuntos Europeus…); o Governo do PP cai em Madrid após uma moção de censura promovida pelo PSOE e em seu lugar é investido um Governo socialista minoritário (o mais minoritário de sempre da democracia espanhola) com o apoio de uma constelação de partidos com as orientações mais variadas e contraditórias (incluindo os nacionalistas bascos e os independentistas catalães).
Finalmente, a culminar esta semana em que também víramos a chanceler Merkel em Portugal confraternizando muito amistosamente com António Costa, qual é a notícia com que, na sexta-feira à noite, abrem os telejornais da RTP, SIC e TVI? Pois com o último episódio da telenovela do Sporting, ou seja, as primeiras rescisões de contrato de jogadores e um “golpe de Estado” do ainda seu presidente, dissolvendo a Assembleia-geral do clube. Não temos Trump ou Salvini, no campeonato do populismo mais frenético, mas temos, para já, Bruno de Carvalho. É para ele que correm as televisões.
Passámos das “fake news” às “mad news”? Pelo menos, à falta de um charlatão político recorremos a um charlatão futebolístico como figurante mais apetecível no império de charlatães em que o mundo, pelos vistos, ameaça converter-se. De Trump já nada pode vir que nos surpreenda, mas o inquietante é que se trata do presidente da maior potência do mundo e, não por acaso, o seu sósia mais próximo é o congénere norte-coreano – daí o jogo de atracção cultivado por ambos. Ora as referências internacionais mais queridas dos populistas italianos são precisamente Trump e… Putin.
Entretanto, se o caso espanhol é obviamente diverso, não deixa também de ser sintomático das disfuncionalidades democráticas actuais que a sucessão de um Governo minado pela corrupção como era o de Rajoy seja ocupada por uma solução tão frágil e periclitante como é a de Sanchez (para mais, num momento em que a Espanha se vê agitada por convulsões graves como a da Catalunha).
Já se sabe como Trump chegou ao poder – e o mantém, apesar de tudo o que já se sabe e se adivinha – mas o advento dos seus admiradores italianos é a consequência inevitável da onda populista que atravessa a Europa, tendo como álibi a vaga migratória, a burocracia de Bruxelas e o diktat alemão. António Costa teve razão ao dizer perante a sra. Merkel que “quando não respondemos atempadamente aos factores de crise” surgem fenómenos como o populismo, o nacionalismo e o extremismo. Mas a chanceler está demasiado fragilizada no seu país – onde a extrema-direita parlamentar já equipara o nazismo a uma “caganita” da História … – para poder ouvir as vozes da sensatez e assumir a urgência das reformas de que a União Europeia necessita para sobreviver.
A Europa está hoje perante a “quadratura do círculo” como reconhece a própria Merkel, sendo que ela é a protagonista principal dessa quadratura enquanto corremos todos o risco de, face à impotência de reformar a Europa, nos tornarmos reféns dos demagogos e charlatães que tudo prometem e nos arrastam para o abismo. Para nossa pobre consolação, resta-nos Bruno de Carvalho…

III- Vida e morte: as fronteiras da liberdade
Sei o que quero para mim se porventura for confrontado com a hipótese de não morrer com dignidade, mas considero abusivo legislar à pressa para ficar confortado com uma opinião e uma opção de natureza pessoal.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 27 de Maio de 2018
Confesso-me profundamente dividido sobre a questão da eutanásia que o Parlamento irá votar na próxima terça-feira. Por um lado, não tenho qualquer dúvida de que quero morrer com dignidade e, se não tiver alternativa ou não for capaz de o fazer sozinho, antecipar a minha morte com ajuda médica em caso de sofrimento insuportável ou degradação irreversível das minhas condições de vida. Mas, por outro lado, não consigo generalizar e tornar objecto de uma lei o que tenho certo para mim próprio, porque não consigo antever todas as circunstâncias concretas em que, supostamente, a escolha de uma morte assistida se fará segundo a vontade de cada um. Mais: receio que essa generalização banalize aquilo que, de todo, não o deveria ser e possa prestar-se a abusos macabros por parte de terceiros, como já terá acontecido noutros países onde a prática de eutanásia é legalmente autorizada.
Apesar de todos os cuidados e escrúpulos dos projectos apresentados no Parlamento pelo PS, Bloco, Os Verdes (numa excepcional atitude de autonomia face ao PCP) ou PAN, que eu de resto poderia subscrever para mim próprio, há qualquer coisa que me deixa profundamente incomodado: o de uma banalização perigosa e eventualmente aproveitada por outrem do desejo de morrer com dignidade mas não em verdadeira liberdade. É uma dúvida que, porventura, não será ultrapassada apenas por via de um testamento vital (como me proponho fazer oportunamente para mim mesmo). Por outras palavras, sei o que quero para mim mas tenho uma imensa dificuldade em pôr-me no lugar dos outros.
Ora, face à minha divisão interior, confunde-me a ligeireza com que uns pretendem fazer aprovar apressadamente, sem um prévio debate aprofundado, uma lei tão delicada sobre as fronteiras entre a vida e a morte. Tal como me desgosta a argumentação, de uma intolerância maniqueísta, exibida por outros e que ultrapassa a esfera das convicções religiosas, como se a eutanásia pudesse equivaler, em qualquer circunstância, a um homicídio puro e simples (atitude essa reflectida na tomada de posição, com laivos de chantagem política, pelo anterior Presidente da República, Cavaco Silva).
A este respeito, tenho dificuldade em perceber com clareza a fronteira que alguns ferozes opositores da eutanásia estabelecem entre a interrupção do tratamento dos doentes em fase terminal, considerada legítima, e o recurso a uma morte assistida para obviar, precisamente, a essa situação considerada irreversível. Há aqui, parece-me, uma certa hipocrisia ideológica que cuida mais das aparências dos rituais do que do efeito final dos procedimentos.
Sendo assim, que me leva então às dúvidas que me dividem sobre a oportunidade da legislação que o parlamento irá ser chamado a votar na terça-feira? Precisamente, o facto de o processo apressado que marcou as várias iniciativas partidárias ser pouco condizente com a gravidade da questão e de, com excepção do PAN, nenhum partido a ter inscrito no seu programa eleitoral. Receio que um certo oportunismo de posicionamento político se tenha sobreposto à serenidade e sensatez que uma questão desta natureza deveria inspirar, aconselhando, portanto, o adiamento da votação para depois das próximas eleições, com a inscrição da eutanásia nos programas partidários, e suscitando o tal debate nacional que ainda está por fazer (ou se limitou, desta vez, a tomadas de posição extremadas e por vezes caricaturais em cima do acontecimento).
Não se trata de ficar no meio onde residiria falsamente a virtude, mas de interiorizar a complexidade de um debate que não ganha nada em decorrer de forma precipitada. Sei o que quero para mim se porventura for confrontado com a hipótese de não morrer com dignidade, mas considero abusivo legislar à pressa para ficar confortado com uma opinião e uma opção de natureza pessoal. Estão em causa as fronteiras da liberdade.




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