Tal
como um dos comentadores de Teresa de Sousa, Darktin, também eu não me canso de a ler, ciente de que
as suas análises políticas contêm, para além do rigor fundamentado, a
subjectividade suficiente que nos transmite as suas preocupações sobre a
interligação e a evolução e rapidez dos casos, segundo um ponto de vista que
parece isento, apesar da sua filiação partidária que a torna sujeita, por vezes
a discordâncias, se não mesmo a chufas dos que preferem não reparar na
inteligência, seriedade e humanismo dos seus raciocínios e apenas atentar no
desconforto que a abertura democrática para a invasão migratória provocou no
surgimento dos populismos nacionalistas reagindo ao desconforto assim criado,
não raro gerador da barbárie terrorista, talvez imparável e justificativa da
sua rejeição.
Vicente
Jorge Silva historia idênticos
acontecimentos da história recente universal, também com leveza e rigor,
lançando igualmente o olhar sobre os casos “tristes e “indignos” de memória” passados
no nosso futebol e mais especificamente no Sporting, que não há como aceitar
tais escarros sobre as nossas caras indignadas com a roupa suja sintomática de
uma burrice e um desrespeito sem tréguas.
Mas
há também a sua crónica sobre a eutanásia, um tanto absurda e desconcertante,
pela aceitação para si de uma prática de que tem escrúpulos em promover a
legalização. A menos que tal signifique a velha máxima de "uma no cravo e
outra na ferradura", querendo aparentar, a todo o custo, modernidade de
conceito, que é o que está na berra para nos safarmos na vida.
I - A Europa não é feita de “culturas”, umas melhores do que as outras
Há alguma coisa de profundo, uma ponta de angústia, que nos faz olhar
para o futuro da Europa com grande preocupação.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 3 de Junho de 2018
1. Nos dias que correm escrever sobre o
que se passa no mundo tornou-se um exercício arriscado. Os exemplos
são muitos. Apenas os mais recentes. Num dia, elaboramos sobre a rejeição da
coligação entre a Liga e o Cinco Estrelas pelo Presidente Matarella, por causa
de um ministro das Finanças excessivamente eurocéptico. No outro, vemos o
primeiro governo da Europa Ocidental resultante de uma coligação entre
populistas e extrema-direita tomar posse em Roma. Os dois partidos têm sérias
reservas contra o euro e a União Europeia e o seu programa eleitoral prevê a expulsão
maciça de imigrantes ilegais (500 mil). Alargando horizontes, num dia temos de
escrever sobre a decisão inesperada de Trump de cancelar a cimeira com o seu
homólogo norte-coreano para, quinze dias depois, vê-lo anunciar que a cimeira
está marcada para o mesmo dia e o mesmo local. A imprevisibilidade da Casa
Branca começa a parecer-se com uma “estratégia”. Os europeus não estão
preparados para ela.
2. Na Europa, a
Itália é uma espécie de “lugar geométrico” do que pode vir a acontecer, fruto
das consequências políticas de uma crise existencial que dura há demasiado
tempo e que deixou marcas profundas. Já se disse quase tudo. Do
peso da Itália na economia e na política europeia, às nuvens negras que se
voltam a adensar sobre o euro. Não há que ter ilusões sobre as intenções do
novo governo italiano e sobre quem está a beneficiar mais com a crise profunda
dos partidos do sistema. Matteo Salvini é o grande vencedor. O seu
partido é de extrema-direita, idêntico à Frente Nacional francesa, a mesma que
pregou um enorme susto à Europa há apenas um ano, mas com o qual a Europa
aprendeu pouco. O discurso oficial de Bruxelas é simples: a Itália tem
de cumprir, como os outros, a regras do euro. O que é verdade. A União Europeia
assenta na “partilha de soberania”, garantida por regras comuns. Sem esse
compromisso livremente aceite, a integração europeia, pura e simplesmente, não
existiria. Mas o problema já não é esse. E é a resposta política que falta à
Europa para contrapor aos seus detractores, que diga alguma coisa aos europeus
no seu conjunto e não apenas aos alemães ou aos holandeses.
3. A Espanha é outro
caso, que não tem nada a ver com o italiano. O líder do PSOE, Pedro
Sánchez, aproveitou uma conjuntura particular para derrubar o PP e tomar conta
do Governo. Deixo de lado a conjuntura política e as transformações do sistema
partidário espanhol. O essencial é que PP, PSOE e Cidadãos são partidos
defensores da democracia liberal e da Europa, que não há um movimento xenófobo
anti-imigrantes em Espanha (a Península Ibérica fica bastante bem nesta
fotografia), que as contas públicas estão em ordem e a economia a
crescer. O problema dos nacionalismos, exacerbado pela Catalunha, não quebrou a
unidade entre PP, PSOE e Cidadãos.
4. Mas há alguma coisa de mais profundo, uma
ponta de angústia, que nos faz olhar para o futuro da Europa com grande
preocupação. A crise italiana provocou reacções intempestivas e desnecessárias
em Bruxelas. Mas nada é comparável a algumas reacções a que assistimos na
Alemanha. A forma como a prestigiada Der Spiegel reagiu ao
que aconteceu em Roma provoca uma profunda inquietação. A fotografia escolhida
é a de uma baía na maravilhosa Costa Amalfitana de Itália. A prova do delito
são os iates ancorados junto à praia. As palavras sintetizam a mensagem: os
“parasitas” italianos são “pobres e mal-agradecidos”. Ou seja, são pobres e
compram iates à nossa custa.
A Itália não é um país
pobre. A região de Milão é, ainda hoje, uma das mais ricas da Europa. A sul de
Nápoles mantêm-se níveis de rendimento mais baixos e uma corrupção endémica,
mas o país continua na média da riqueza europeia. Roma é, porventura, a cidade
mais fascinante do mundo, onde ninguém respeita o sentido do trânsito mas não
há acidentes. A Via Condotti é território reservado a chineses, japoneses,
árabes, americanos, que valorizam tanto um fato italiano como um BMW. A Itália
recebe fundos europeus, sobretudo para a sua agricultura, cujas marcas ainda
são sinónimos de qualidade mundial, tal como a agricultura alemã recebe, já
para não falar da francesa. A economia italiana tem um sério problema de
competitividade porque não conseguiu adaptar um modelo que era dinâmico às
novas condições da globalização. A elite política desprestigiou-se totalmente
aos olhos de uma maioria de eleitores. Berlusconi já foi um sintoma. Mas
convém recordar duas coisas: ao longo dos anos de crise, só num ano a Itália
teve um saldo orçamental primário negativo. A dívida é enorme, mas está, numa
parte significativa, em mãos de italianos.
O diário económico
alemão Handelsblatt, conservador,
publicava a 30 de Maio um artigo do seu correspondente em Roma com o seguinte
título: “Nós, alemães, devíamos parar de nos armarmos em superiores perante
a Itália”. “Como na Itália, a paisagem política alemã está fragmentada
(…). A Alemanha deixou de ser um oásis de estabilidade.” O jornalista considera
que Berlim não tem sido um bom “capitão” para a frota europeia, deixando muitos
barcos à deriva à primeira tempestade. “As pessoas, na Grécia, Espanha,
Portugal e na Itália não gostam de andar pela trela. Ninguém gosta de andar com
trela.” Quando a crise da dívida colocou o euro à beira do precipício, Angela
Merkel não reagiu da melhor maneira. Agarrou-se à cláusula de no bailout de Maastricht e declarou que não
tencionava pagar a dívida dos outros. Deitou achas na fogueira. Não contrariou
o discurso “punitivo” contra os indisciplinados, preguiçosos, irresponsáveis do
Sul, que abriu as portas à mentalidade que hoje transparece nas reacções à
crise italiana. Ela própria também foi vítima do preconceito, quando, em Lisboa
ou em Atenas, foi recebida com cartazes que a identificavam com Hitler. Mas
nunca foram mais do que pequenas manifestações de sectores radicais, que
representam muito pouco.
5. Estamos a
assistir ao regresso das “culturas”, umas melhores do que as outras, o que não
é um bom sinal. A única coisa positiva é que os alemães, apesar da sua
“cultura”, não são assim tão bons. Andam há 10 anos a construir
um novo aeroporto de Berlim e ainda não conseguiram acertar. Foi preciso uma
investigação nos EUA para ficarmos a saber que a VW, emblema da “technologie”,
andava a enganar toda a gente com as emissões de carbono dos seus motores a
Diesel. Os aviões de combate não voam e faltam peças aos blindados. Pelo menos
dois ministros da chanceler abandonaram o governo por terem plagiado nas teses
de doutoramento. A economia alemã continua a ser uma poderosa máquina
exportadora graças à capacidade das suas PME e à produtividade da sua
mão-de-obra. Foram as reformas de um governo social-democrata (com os Verdes)
que a prepararam para tirar partido da globalização.
Recentemente, o mesmo Handelsblatt lembrava que o novo
ministro-presidente da Baviera, Markus Soeder, que enfrenta eleições no final
do ano, tinha decidido tornar obrigatória a cruz de Cristo em todos os
edifícios públicos. As reacções foram muito negativas, incluindo a do arcebispo
de Munique, cardeal Reinhard Marx. Cinquenta e oito por cento dos votantes
bávaros apoiaram a sua medida. O líder bávaro elegeu a defesa da “cultura alemã”
como bandeira eleitoral, visando os imigrantes islâmicos. Diz que quer tirar
votos ao partido de extrema-direita AfD.
6. Merkel tem
conseguido evitar uma catástrofe europeia. Talvez porque veio do Leste,
valoriza a Europa e os seus valores. Mas há uma nova geração que vê a
União com outros olhos, muito distintos de Kohl, da geração da II Guerra, ou de
Joschka Fischer, a primeira geração que desafiou o que restava do espírito
nacionalista dos alemães, durante a crise estudantil de 1968. Parece mais longe
de entender que a Europa não sobreviverá, se as “culturas” regressarem ou se se
perpetuar uma situação em que, citando António Vitorino, são sempre os mesmos
que perdem e os mesmos que ganham.
Comentários:
Darktin:
Anti Comunistas da Extrema-Direita 03.06.2018
: Sei que já um cliché mas: mais um brilhante ponto de situação de
Teresa de Sousa. Não me canso de a ler. Uma das melhores da Europa.
Quanto aos pontos que tocou, de facto vivemos uma crise de soberba misturada
mais, um vez, com o medo dos imigrantes. No passado era o medo dos imigrantes
do sul e agora, os imigrantes islâmicos. Como todas as crises, temos duas
direcções. Pode ser passageira ou pode ser fracturante. Tenho certeza que a UE
continuará a existir. O que não tenho a certeza é quantas Uniões Europeias
teremos. É inegável que para Portugal a UE foi um sucesso. Contudo, nunca
sofremos o problema da imigração. Muitos pontos vão ter de ser revistos. O
problema da UE não é económico mas é o medo. A
extrema direita e pessoas estúpidas como Trump ganham poder neste sentimento.
São os mexicanos e são os islâmicos. Vamos ter de rever alguns mecanismos de
fronteiras. Já é notório que uma grande parte dos europeus não estão contentes
com ela. Assim como os americanos. Os problemas foram exacerbados para
escamotear a corrupção de muitos políticos. Contudo, como não há alternativas,
pessoas ainda mais corruptas chegam ao poder porque citam discursos de
xenofobia e de racismo. Faz-me lembrar o lema da Área 51 dos EUA: "uma
pessoa é inteligente e racional mas a mole é estúpida e facilmente enganada.
4a República,
República Bananeira da Tugalândia 04.06.2018
: Será que há quem ainda não tenha compreendido a ameaça islâmica na
sua verdadeira proporção?! O problema não são as pessoas em si, e não duvido
que haja uma esmagadora maioria de excelentes indivíduos que partilham essa
religião. O problema põe-se relativamente aos valores e mandamentos do Islão
que em absolutamente nada garantem que de um casal exemplar não surja um filho
que adopte literalmente as mensagens de ódio do Corão. Das grandes religiões o
Islão possui os mais explícitos apelos à violência. Degolações, violações,
genocídio está lá tudo às claras. Os Taliban e o EI não inventaram nada. Apenas
fizeram o que é ordenado. E quem se atreve a criticar a mensagem de Alá e Maomé
é morto. Isto é intolerável. Há ideologias proibidas há dezenas de anos por
apelarem aos mesmos actos!
Alforreca
Passista, Anti-liberal fascista 03.06.2018. Porque é que a
"dona" Teresa Europeísta não pergunta à Europeísta Merkel pelas suas
responsabilidades na destruição das economias do sul da Europa para salvar os
bancos alemães? Porque é que os corruptos alemães merecem ser salvos e os
outros corruptos do sul da Europa não, será que a Merkel acha que faz parte de
uma raça superior.?
Jonas Almeida
Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 03.06.2018:
Tem razão, Alforreca, ela acha com certeza, foi para isso que foi eleita. Se
não podemos culpar completamente uma governante alemã por defender a
superioridade dos interesses do seu povo, a questão é muito diferente sobre
porque nos escravizam os nossos pseudo-representantes a interesses alheios. Não
é difícil descobrir que este clientelismo de roçado lhes é muito benéfico em
trocas e baldrocas em paraísos fiscais e gabinetes alcatifados. Como vimos na
Itália, já nem 2/3 da vontade expressa do povo vale mais do que o comando de um
eurocrata.
II- OPINIÃO
Das “fake news” às “mad news”: o tempo dos charlatães
Corremos o risco de, face à impotência de reformar a Europa, nos
tornarmos reféns dos demagogos e charlatães que tudo prometem e nos arrastam
para o abismo
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 3 de Junho de 2018
O que diríamos ser
impossível pode tornar-se real no curto espaço de uma semana, como aquela que
passou – e que talvez não seja equiparável a nenhuma outra em tempos recentes.
O facto, porém, é que estávamos prevenidos e vacinados e nada deveria já
surpreender-nos, incluindo uma sucessão dos mais improváveis golpes de teatro.
Ora, esses não faltaram.
Trump declara uma guerra
comercial à Europa, Canadá e México quase ao mesmo tempo que confirma o seu
encontro com Kim Jong-Un, anulado poucos dias antes; a dupla populista Liga-5
Estrelas acede finalmente ao poder em Itália depois de uma reviravolta
suscitada pelas reservas do Presidente Mattarella ao nome de um ministro
eurocéptico na pasta da Economia do Governo Conte (o mesmo ministro foi
entretanto deslocado para os Assuntos Europeus…); o Governo do PP cai em Madrid
após uma moção de censura promovida pelo PSOE e em seu lugar é investido um
Governo socialista minoritário (o mais minoritário de sempre da democracia
espanhola) com o apoio de uma constelação de partidos com as orientações mais
variadas e contraditórias (incluindo os nacionalistas bascos e os
independentistas catalães).
Finalmente, a culminar
esta semana em que também víramos a chanceler Merkel em Portugal
confraternizando muito amistosamente com António Costa, qual é a notícia com
que, na sexta-feira à noite, abrem os telejornais da RTP, SIC e TVI? Pois com o
último episódio da telenovela do Sporting, ou seja, as primeiras rescisões de
contrato de jogadores e um “golpe de Estado” do ainda seu presidente,
dissolvendo a Assembleia-geral do clube. Não temos Trump ou Salvini, no
campeonato do populismo mais frenético, mas temos, para já, Bruno de Carvalho.
É para ele que correm as televisões.
Passámos das “fake news”
às “mad news”? Pelo menos, à falta de um charlatão político
recorremos a um charlatão futebolístico como figurante mais apetecível no
império de charlatães em que o mundo, pelos vistos, ameaça converter-se. De
Trump já nada pode vir que nos surpreenda, mas o inquietante é que se trata do
presidente da maior potência do mundo e, não por acaso, o seu sósia mais
próximo é o congénere norte-coreano – daí o jogo de atracção cultivado por
ambos. Ora as referências internacionais mais queridas dos
populistas italianos são precisamente Trump e… Putin.
Entretanto, se o caso
espanhol é obviamente diverso, não deixa também de ser sintomático das
disfuncionalidades democráticas actuais que a sucessão de um Governo minado
pela corrupção como era o de Rajoy seja ocupada por uma solução tão frágil e
periclitante como é a de Sanchez (para mais, num momento em que a Espanha se vê
agitada por convulsões graves como a da Catalunha).
Já se sabe como Trump
chegou ao poder – e o mantém, apesar de tudo o que já se sabe e se adivinha – mas
o advento dos seus admiradores italianos é a consequência inevitável da onda
populista que atravessa a Europa, tendo como álibi a vaga migratória, a
burocracia de Bruxelas e o diktat alemão. António
Costa teve razão ao dizer perante a sra. Merkel que “quando não respondemos
atempadamente aos factores de crise” surgem fenómenos como o populismo, o
nacionalismo e o extremismo. Mas a chanceler está demasiado fragilizada no seu
país – onde a extrema-direita parlamentar já equipara o nazismo a uma
“caganita” da História … – para poder ouvir as vozes da sensatez e assumir a
urgência das reformas de que a União Europeia necessita para sobreviver.
A Europa está hoje
perante a “quadratura do círculo” como reconhece a própria Merkel, sendo que
ela é a protagonista principal dessa quadratura enquanto corremos todos o risco
de, face à impotência de reformar a Europa, nos tornarmos reféns dos demagogos
e charlatães que tudo prometem e nos arrastam para o abismo. Para nossa pobre
consolação, resta-nos Bruno de Carvalho…
III- Vida e morte: as fronteiras da liberdade
Sei o que quero para mim se
porventura for confrontado com a hipótese de não morrer com dignidade, mas
considero abusivo legislar à pressa para ficar confortado com uma opinião e uma
opção de natureza pessoal.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 27 de Maio de 2018
Confesso-me profundamente
dividido sobre a questão da eutanásia que o Parlamento irá votar na próxima
terça-feira. Por um lado, não tenho qualquer dúvida de que quero morrer com
dignidade e, se não tiver alternativa ou não for capaz de o fazer sozinho,
antecipar a minha morte com ajuda médica em caso de sofrimento insuportável ou
degradação irreversível das minhas condições de vida. Mas, por outro lado, não
consigo generalizar e tornar objecto de uma lei o que tenho certo para mim próprio,
porque não consigo antever todas as circunstâncias concretas em que,
supostamente, a escolha de uma morte assistida se fará segundo a vontade de
cada um. Mais: receio que essa generalização banalize aquilo que, de todo,
não o deveria ser e possa prestar-se a abusos macabros por parte de terceiros,
como já terá acontecido noutros países onde a prática de eutanásia é legalmente
autorizada.
Apesar de todos os cuidados
e escrúpulos dos projectos apresentados no Parlamento pelo PS, Bloco, Os Verdes
(numa excepcional atitude de autonomia face ao PCP) ou PAN, que eu de resto
poderia subscrever para mim próprio, há qualquer coisa que me deixa
profundamente incomodado: o de uma banalização perigosa e eventualmente
aproveitada por outrem do desejo de morrer com dignidade mas não em verdadeira
liberdade. É uma dúvida que, porventura, não será ultrapassada apenas
por via de um testamento vital (como me proponho fazer oportunamente para mim
mesmo). Por outras palavras, sei o que quero para mim mas tenho uma imensa
dificuldade em pôr-me no lugar dos outros.
Ora, face à minha
divisão interior, confunde-me a ligeireza com que uns pretendem fazer aprovar
apressadamente, sem um prévio debate aprofundado, uma lei tão delicada sobre as
fronteiras entre a vida e a morte. Tal como me desgosta a argumentação, de uma
intolerância maniqueísta, exibida por outros e que ultrapassa a esfera das
convicções religiosas, como se a eutanásia pudesse equivaler, em qualquer
circunstância, a um homicídio puro e simples (atitude essa reflectida na tomada
de posição, com laivos de chantagem política, pelo anterior Presidente da
República, Cavaco Silva).
A este respeito, tenho
dificuldade em perceber com clareza a fronteira que alguns ferozes opositores
da eutanásia estabelecem entre a interrupção do tratamento dos doentes em fase
terminal, considerada legítima, e o recurso a uma morte assistida para obviar,
precisamente, a essa situação considerada irreversível. Há aqui, parece-me, uma
certa hipocrisia ideológica que cuida mais das aparências dos rituais do que do
efeito final dos procedimentos.
Sendo assim, que me leva
então às dúvidas que me dividem sobre a oportunidade da legislação que o
parlamento irá ser chamado a votar na terça-feira? Precisamente, o facto de o
processo apressado que marcou as várias iniciativas partidárias ser pouco
condizente com a gravidade da questão e de, com excepção do PAN, nenhum partido
a ter inscrito no seu programa eleitoral. Receio que um certo oportunismo de
posicionamento político se tenha sobreposto à serenidade e sensatez que uma
questão desta natureza deveria inspirar, aconselhando, portanto, o adiamento da
votação para depois das próximas eleições, com a inscrição da eutanásia nos
programas partidários, e suscitando o tal debate nacional que ainda está por
fazer (ou se limitou, desta vez, a tomadas de posição extremadas e por vezes
caricaturais em cima do acontecimento).
Não se trata de ficar no
meio onde residiria falsamente a virtude, mas de interiorizar a complexidade de
um debate que não ganha nada em decorrer de forma precipitada. Sei o que quero
para mim se porventura for confrontado com a hipótese de não morrer com
dignidade, mas considero abusivo legislar à pressa para ficar confortado com
uma opinião e uma opção de natureza pessoal. Estão em causa as fronteiras da
liberdade.
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