Dois artigos
de diferente dimensão e alcance, mas ambos provenientes de conceitos sem
preconceito, feitos, pois, de estudo e ponderação, não toldados de radicalismo que
tantas vezes a inércia justifica. Alberto Gonçalves, verrinoso como
sempre, e infelizmente certeiro na aplicação da sua sociologia que desmascara
infatigavelmente a nossa pobreza e fatuidade. Frei Bento Domingues, ao
que leio, grande teólogo, e que se aventura desempoeiradamente nas suas
leituras bíblicas, com seriedade mas humor, sem assumir o carisma de falsa
unção que tão tacanho se torna por vezes, entre nós, devotamente seguidores dos
princípios maniqueístas do Bem e do Mal, do Sol e das Trevas, do Céu e do
Inferno.
Uma pretensão incansável, em Alberto
Gonçalves, de condenar, ao que parece, inutilmente, a bacoquice das nossas
exaltações festivaleiras, que o próprio PR protagoniza. Um aventurar-se de Frei
Bento Domingues, pela hermética linguagem das parábolas bíblicas, e
justificando, com isso, a preferência do povo pelos santos festivaleiros mais
próximos e mediadores, transportadores,
como afirma com graça, para o palco das “relações entre o divino e o humano”,
do “sistema das cunhas”.
I- CRÓNICA
A lobotomia nasceu aqui /premium
Observador, 23/6/2018
Quando não estão a pagar
impostos ou a ver a CMTV, as vítimas vão tirar “selfies” com os carrascos e
prometem-lhes devoção e votos. Os portugueses apreciam ser humilhados ou não
percebem o que são?
Conhecem aquela em que um
marroquino, um brasileiro e um português aparecem na “flash interview” a
comentar um jogo da bola? O português é Presidente da República. O maior
problema desta anedota não é não ter graça: é ser verdadeira. Durante uma
viagem ao “Mundial” da Rússia paga pelos contribuintes, e com os logotipos dos
patrocinadores da coisa em fundo, o prof. Marcelo teceu considerações sobre os
adversários, o “sistema de jogo”, a “atitude” e, suponho, a “transição”. A
rematar (piadinha), anunciou que na próxima partida o primeiro-ministro estará
presente. O prof. Marcelo voltará a Moscovo – “em princípio” – nos “oitavos de
final”. Entretanto, naturalmente, subirá ao palco do Rock in Rio com os Xutos e
Pontapés. Depois, por fim, rumará para merecidas férias em Pedrógão, de modo a
evitar incêndios e curar a desertificação rural.
Não sei que diga. Literalmente,
é difícil dizer o que quer que seja, já que isto começa a entrar em territórios
nos quais as palavras perdem serventia. O prof. Marcelo é apenas um exemplo,
piorado pela circunstância de desempenhar um papel a que, talvez com exagero,
se costumava atribuir certa “gravitas”. Hoje, pulverizada por sorrisos e
“afectos”, essa gravidade é menor que a da lua. Devagarinho, um país que nunca
foi um modelo de ponderação lançou-se desvairadamente para os braços da pura
toleima. Os oligarcas, ou funcionários de oligarcas, que nos tocaram em sorte
não se satisfazem com o sequestro da nossa vida material e “simbólica”: porque
querem, e porque os deixam, insistem em gozar com o pagode. E o
impressionante é que o pagode gosta. Não é inédito que, em nações menos
exóticas, um estadista ultrapasse as restrições e os privilégios do cargo para
ridicularizar descaradamente os cidadãos. Sucede é que se arrisca a cair na
prisão ou, no mínimo, nas sondagens. Mesmo em nações exóticas, acontece que o
estadista caia na estrada, em fuga de uma multidão aborrecida.
Aqui, não acontece nada,
excepto sucessivas paródias dos americanos, essa cáfila de pategos que
depositou o ridículo sr. Trump na Casa Branca. Em simultâneo, a “nomenklatura”
em peso (não raramente excessivo) saltita com belos cachecóis verdes-rubros a
cada golo de Cristiano Ronaldo. Ou homenageia mortos cuja responsabilidade
nunca assumiu. Ou manda o fisco torcer os rendimentos alheios enquanto celebra
uma “prosperidade” sem paralelo. E o povo, perdão, as vítimas não demonstram
pingo de revolta ou sequer desconforto. Pelo contrário, quando não estão a
pagar impostos ou a ver a CMTV, as vítimas acorrem a tirar “selfies” com os
carrascos e a prometer-lhes devoção eterna. E votos. Os portugueses apreciam
ser humilhados ou não percebem que o são?
Não faço ideia. De
resto, qualquer das hipóteses, a da tara ou a da idiotia, concorre para
resultados idênticos. Ao longo de séculos, regimes sortidos oprimiram
populações através do monopólio da força, ocasionalmente temperado com a ilusão
de uma benesse. No Portugal de 2018, que parece a cobaia de uma gigantesca
experiência de psicologia social, a força é completamente dispensável à
opressão. Por uma vez na História, uma sociedade inteira entrega-se voluntária
– e alegremente, convém notar – aos caprichos dos seus senhores, sem
contrapartidas excepto a garantia de uma opressão maior e de um regozijo
proporcional. Maquiavel, que previu muito, não previu isto. E nisto, como na
lobotomia, somos precursores.
Podia perguntar-se se
tamanha inovação é mérito dos senhores ou demérito da plebe. Porém, uma
panorâmica fugaz por inúmeras figuras do Estado, da economia, dos “media” e do
que calha revela a resposta: não é o brilhantismo desses vultos que lhes
permite converter dez milhões de criaturas no capacho onde esfregam os sapatos.
O capacho, que reza “Bem-vindo”, é que é particularmente exímio na função. A
propaganda turística jura que os portugueses sabem receber. Sobretudo ordens. E
enxovalhos. E beijinhos, imensos beijinhos. Na terra do respeitinho, ninguém se
dá ao respeito.
Nota de rodapé:
O problema das migrações em
massa nunca esclarece um enigma: porque é que as pessoas abandonam lugares
aprazíveis e procuram fatalmente sociedades “fascistas” e empenhadas em
tratá-las mal? A acreditar nos comentários dominantes, o expectável seria que os
espanhóis fugissem para Marrocos, os alemães para a Turquia, os húngaros para a
Síria e os americanos para Cuba. Misteriosamente, a realidade está de pernas
para o ar e não é isso que sucede. Por motivos que ninguém compreende, uma
quantidade desmesurada de mexicanos larga o conforto do mezcal e tenta
regularmente atravessar a fronteira a norte a fim de se sujeitar ao jugo
capitalista. Os capitalistas, que também são fascistas, não apreciam a proeza e
procuram intermitentemente dificultá-la. E os “media” relatam o drama
subsequente, por acaso misturando mentiras, meias-verdades e o ocasional facto.
Sem brincadeiras, o assunto é complexo. Com brincadeiras, pode ser resumido na
frase da dona Catarina Martins, roubada ao “activista”/sindicalista David
Bacon: “no mundo não há pessoas ilegais”. Mas desonestas não faltam.
II- OPINIÃO
Cristo não desempregou
os santos (1)
Os
santos populares sabem mais de Deus e de nós do que se julga. Veremos.
FREI BENTO DOMINGUES, 0.P.
PÚBLICO, 17 de Junho de 2018
1. Não tenho muito apego às definições de
religião. Uso essa palavra para significar, na tradição latina, a redobrada
atenção às diversas dimensões do devir misterioso do ser humano que escapam à
linguagem unívoca da ciência e da técnica. Exprime-se melhor na linguagem
metafórica. Como escreveu Ésquilo, em Agamémnon, "Sufocando no
galinheiro da razão, dediquei-me a defender a causa dos sonhos".
Na história das
religiões existe de tudo, do melhor e do pior. A religião dos místicos,
mesmo quando louca, é a suprema sabedoria. O místico não é capaz de parar, de
fixar um limite, de se tornar idolátrico, pois, como diz o muçulmano, E.
Hallaj, do século X: "Vi o meu Senhor com o olhar do coração,/
e disse-lhe: 'Quem és tu?' Ele disse-me: 'Tu!'/ Mas para Ti, o 'onde' já não
tem lugar,/ o 'onde' não existe quando se trata de Ti!." A
religião de Jesus não cabe em nenhuma classificação conhecida.
No domingo passado, S.
Marcos apresentava Jesus como o doido da família e possesso de Belzebu. Neste,
Jesus surge, na versão do mesmo evangelista [1], como um pregador surrealista. Jesus queria ser entendido ou
não? A sua palavra era só para agitar o vento? Pela referência que faz ao
profeta Isaías [2], até parece que só queria baralhar os seus ouvintes: vendo, vejam e não percebam; ouvindo, ouçam e não entendam para que
não se convertam e não sejam perdoados.
A citação recorre a um
pregador cujos lábios foram purificados por um anjo, um serafim, com uma brasa
viva. Ouviu, então, a voz do Senhor que dizia: Quem
enviarei? Quem será o nosso mensageiro? Ele respondeu: Eis-me aqui, envia-me. E foi enviado: Vai e diz ao meu
povo: ouvi, tornai a ouvir, mas não compreendereis.
Vede, tornai a ver, mas não percebereis. Endurece o coração deste povo,
ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos. Que os seus olhos não vejam, que
os seus ouvidos não ouçam, que o seu coração não entenda, que não se converta e
Eu o cure.
S. Marcos começa pela
muito conhecida parábola da sementeira para falar do misterioso Reino de Deus.
Esta não apresenta nenhuma dificuldade especial, mas os discípulos ficaram sem
perceber nada.
Jesus fica espantado com
discípulos tão pouco dotados: se não compreendeis esta parábola, como
podereis entender todas as outras?
Mais uma vez, teve
paciência e explicou tudo muito bem. O narrador sublinha que a maior
dificuldade em acolher a palavra do Reino é o mundanismo, a sedução das
riquezas e outras ambições. Quando encontra bons ouvidos, os frutos são de 30,
de 60 e até de 100%.
A parábola seguinte
contradiz o começo: quem traz uma lâmpada acesa é para a esconder? Mas não será
esse o defeito das parábolas em relação ao discurso directo?
Não há nada a ocultar.
Quer tudo na luz do dia. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça. Mas cuidado
com o que ouvis. Com a medida que medirdes sereis medidos e até vos será
acrescentado mais. E regressa ao paradoxo escandaloso: ao que tem, será dado e
ao que não tem, mesmo o que tem, lhe será tirado.
De repente, muda de
registo. O crescimento do Reino de Deus não é fruto do esforço humano: o
semeador lançou a semente à terra e foi dormir e, depois, quando o fruto está
no ponto, vai colher. Também não há que desesperar com a lentidão do
crescimento da comunidade. Os começos nem sempre são gloriosos e vem a parábola
do grão de mostarda, pequena semente que
chega a ter grandes ramos, onde as aves do céu se abrigam à sua sombra.
No final do capítulo, volta
a insistir que Jesus anunciava-lhes a palavra por meio de muitas parábolas como
estas, conforme podiam entender e nada lhes falava a não ser em parábolas.
Remata, dizendo que as explicações eram assunto privado para os discípulos. O
narrador deixa-nos sem podermos concluir se Jesus falava para ser entendido ou
não.
2. A pergunta
fundamental, perante esta paixão pela linguagem parabólica, talvez seja esta: porque
não fez Jesus um catecismo, bem explicadinho, com perguntas e respostas bem
definidas, para não deixar os seus seguidores continuamente sem saber bem o que
pensar, o que está certo e o que está errado? Se, assim, tivesse feito,
dispensava as dificuldades da exegese histórico-crítica e as múltiplas
abordagens reconhecidas pela Comissão Pontifícia Bíblica [3]. Teria dispensado
séculos e séculos de escolas teológicas, de heresias e de conflitos.
A linguagem universal é
a da ciência e da técnica, incompatível com emoções e estados de alma. Jesus
poderia ter feito uma ciência exacta da verdadeira religião e tinha, como
fruto, um sossego eterno. Donde lhe veio a mania das parábolas e de falar só em
parábolas?
Esquecemos que Jesus era e
é um ser humano nascido e educado dentro de uma cultura e de uma religião que,
hoje, é possível identificar. Jesus não sabia todas as línguas, não conhecia
todas as religiões e nunca procurou impor apenas uma versão do valor divino do
humano e do valor humano do divino. Não escreveu um livro inspirado que tivesse
o condão de substituir todos os livros de sabedoria religiosa. A falar
verdade, nem sequer temos o que Jesus escreveu na areia. Os seus gestos e
palavras foram contados por outros. São eles a grande obra de Jesus de Nazaré.
Tudo no tempo, tudo efémero. Ninguém fez o filme do que aconteceu.
As parábolas permitem
resistir ao tempo pela necessidade de serem sempre lidas e interpretadas sem
sentido pré fixado.
3. As
comunidades cristãs, boas, más e assim-assim, são as únicas relíquias de Jesus
Cristo e não estão todas em Jerusalém. Não o substituem. Os santos,
aqueles que, sabendo ou não, o anteciparam e o seguiram não estão arquivados no
céu nem se devem confundir com as suas posições nos altares. Estão vivos e
activos. De vez em quando, na vida dos cristãos são evocados e respondem
sempre, umas vezes no sentido da pergunta, outras vezes complicando-a. Não
perderam o estilo das parábolas.
Houve muita confusão em
torno da “vida dos santos”. Algumas tornavam a “santidade” detestável. Eram
instrumentos de desumanização de Deus e da Igreja. Outras eram auto referentes,
idolátricas: Deus tinha de contar com elas ou não sabia o que fazer. Deus
estava longe e mal informado das peripécias da vida humana. Os santos eram
os mediadores, pontes, entre o Deus distante e a nossa condição. Ao fim e ao
cabo, os cristãos entendiam-se mais com eles do que com Deus. Transportavam,
para as relações entre o divino e o humano, o sistema das cunhas.
1] Mc 4, 1-34
[2] Is 6
[3] A interpretação da Bíblia na Igreja, Secretariado Geral do Episcopado, 1994.
[2] Is 6
[3] A interpretação da Bíblia na Igreja, Secretariado Geral do Episcopado, 1994.
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