sábado, 2 de junho de 2018

«O CONTRABAIXO» de Patrick Süskind, uma lição musical



Pertence à colecção “Biblioteca de Verão”, livro, pelo seu volume ínfimo, bom para praia ou cabeceira, nº 8 entre os 27 da escolha do DN, entre os quais se contam alguns autores portugueses – Herculano, Fialho, Eça, Eduardo Pitta, todos eles de leitura expressiva, a par de outros nomes consagrados.
Este – de Patrick Süskind era-me totalmente estranho, e a surpresa foi grande, pela originalidade, riqueza temática e psicológica, que se vai impondo gradualmente através do discurso da personagem, despretensioso e entusiasta, mas uma enriquecedora lição de música, e de conceitos de vida, na vulgaridade da semelhança entre os homens de todas as esferas, afinal, de sonhos que se concretizam ou não, de penúrias, de amores e paixões e raivas e entusiasmos e decepções, e angústia, na banalidade das vidas.
Trata-se de uma peça dramática, com uma só personagem – um contrabaixista de uma orquestra - num só espaço – um quarto – num monólogo em discurso directo, dirigido a possíveis interlocutores subentendidos – o público do espaço teatral, no caso da sua representação, os múltiplos leitores que se limitam a lê-la. As didascálias constam de breves anotações cenaristas ou sobre a movimentação da personagem, que vai abrindo garrafas e bebendo cervejas e escutando do gramofone música clássica, ou tocando-a no seu contrabaixo, ao sabor das suas explicações.
Uma figura um tanto azougada e bastante sincera, que se lhe nota na expressão corrente da linguagem, despretensiosa e directa, de quem não tem papas na língua a respeito da sociedade em que se integra, nem puritanismos sobre as suas intimidades de ocasião, no espaço do quarto, que denuncia uma vida de solteirão, que a música ocupa com entusiasmo.
É vasto o leque dos assuntos do seu monólogo, em que o contrabaixo ocupa a fase inicial e recorrente sempre, denunciando uma perfeita junção de afectos, de paixão e desprezo, o pesado instrumento ganhando caricatural configuração humana - objecto de estorvo a merecer temporário azedume, por avassalador de espaço e assistente mudo de amores clandestinos, mas instrumento de arte bem-amado, que lhe merece constante carinho e protecção, chegando a cobri-lo com o seu casaco para aquele não empenar com a chuva, e colhendo, em resultado, forte constipação. Além das calosidades que, por ser pesado, provocou nas mãos deformadas do contrabaixista, pretexto para uma invasão entrecortada no campo da música clássica, quer a respeito dos compositores, quer a respeito do posicionamento dos músicos na orquestra - o do contrabaixista  renegado sempre para os lugares de sombra, aparentemente sem classe e, no entanto, imprescindível, podendo até substituir o maestro na orientação dos músicos. E o monólogo directo ganha divertida frescura, na componente irónica da visão humana hierárquica sempre, até mesmo ao nível do posicionamento orquestral.
Os amores e ciúmes por uma cantora de ópera, mulher e voz de sonho, contrastando com o tosco som roufenho do seu contrabaixo, e o sonho caricato de lhe oferecer o mesmo prato de peixe caro num restaurante caro, como fez um director musical que a lá levou. E as suas reservas por uma infância de desamor e de ódio ao pai, e os sonhos por uma estabilidade no trabalho, e os conceitos sobre os compositores desmistificados, mas vivamente admirados e bem seus conhecidos por os tocar e estudar.
Uma obra em que se mistura, afinal, o cómico de farsa à seriedade analítica, desprovida, por vezes, do preconceito admirativo. Uma personagem que se poderá tomar como um genérico social, recolhido entre aqueles que se prezam e têm consciência do seu valor, geralmente menosprezado por uma sociedade com outros parâmetros de avaliação, afinal uma personagem representante de todo o ser humano, com as suas experiências, complexos, expectativas, e esforços de mediana ou superior ambição. Uma linguagem despretensiosa, ao sabor dos copos que vai bebendo, rica de referências culturais mas logo interrompidas por quem atribui aos outros iguais saberes. Uma obra de leitura fácil, de um discurso que segue ao sabor das evocações ou entusiasmos do protagonista, sem o pedantismo, tão comum, de rebuscada e tortuosa complexidade na mistura de planos.  E no entanto rica e esclarecedora sobre a psicologia humana, nos seus sonhos e rancores e afectos e angústias e complexos, que quase poderíamos simbolizar na expressão de “O Grito” de Edvard Munch.
Um breve excerto exemplificativo:

«Espero que não estejam a pensar que eu sou invejoso. A inveja é um sentimento que me é estranho, pois eu sei o que valho. Eu, de qualquer forma, sou uma pessoa justa e acho que há qualquer coisa que não vai bem no mundo da música. O solista é abafado pelo aplauso do público, facto que este assume hoje em dia como uma autopunição, caso não lhe seja permitido bater palmas à vontade. O maestro recebe ovações, cumprimenta o primeiro violino pelo menos duas vezes; às vezes toda a orquestra é convidada a pôr-se de pé…enquanto que, como contrabaixista, uma pessoa nem tem ocasião de estar de pé a sério. Como contrabaixistas, perdoem-me a expressão, somos, deste ponto de vista, uma autêntica merda!»


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