sexta-feira, 1 de junho de 2018

A voz da minha prima Celeste

Falou-se na eutanásia lá por Pinheiro, no dia da votação para a sua despenalização, caso fosse aprovada, em 29/5, votação feita cá por Lisboa, mais especificamente, no espaço “entre a Arcada e S. Bento”, onde, segundo Ega no capítulo VI d´OS MAIAS, é onde se localiza o país. E reproduzo o passo, atida ao objectivo de não desvirtuar as referências, esta, de resto, puro lugar comum entre nós, os snobes da capital: «- Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...»
A minha irmã, que foi a Pinheiro de Lafões ver a nossa prima Celeste, tão próxima das nossas infâncias por cá e adolescências por lá, por Moçambique - no tempo em que Moçambique pertencia ainda ao campo referencial dos nossos advérbios de lugar – informou, pois, que também todos ficaram contentes, lá em Pinheiro – tal como nós cá, na Parede - e sobretudo a Celeste, cujos 91 anos estão actualmente ligados a uma cadeira de rodas, mas lucidamente presos à casa onde sempre viveu, desde que chegou de África, embora dependente da dedicação da irmã e família. E logo a sua voz se fez ouvir, repetidamente, em versos da sua infância, a lembrar-me o espaço geográfico onde a minha mãe aprendera tanto do seu saber - o Carregal, terra da Celeste também - e que tivera larga ocasião de desbobinar, ao longo do seu percurso dos anos finais, igualmente limitados à cama e à cadeira de rodas, e que gravei neste meu blog ao sabor das suas evocações, com a admiração e o encanto próprios.
Repetiu, pois, a Celeste, várias vezes, após a votação, a quadra do seu saber, destruidora das demagogias dos que, “entre a arcada e S Bento”, pretendem impor a nova lei, não por real sensibilidade ao sofrimento alheio, mas para atacar conservadorismos e desestabilizar as certezas fundadas num bom senso de tradição e efectiva sensibilidade, próprias dos humanos.
Foi, pois, esta a quadra que a minha prima Celeste pronunciou repetidas vezes, nesse dia 29, após a votação da assembleia, de escassos 5 votos de diferença, favoráveis à recusa à tal proposta de lei, exiguidade promissora de um “Pasará” futuro.
Eis os versos que a nossa prima disparou, tantas vezes, e que a minha irmã anotou:

Eu pedi a morte a Deus
E Ele disse que m’a não dava,
Que lhe pedisse antes a vida,

Que a morte certa estava.

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