terça-feira, 22 de abril de 2025

Tudo esclarecido


Não havia necessidade… A corrente que pretendeu modelar figuras humanas, como se fossem, tais modeladore/a/s, criadore/a/s de uma nova humanidade – (julgo que não se imiscuiram na vida das vacas e dos demais animais domésticos ou selvagens deste mundo, deixando em paz o resto da animalidade para mais tarde ou mais cedo poderem praticar nessa, a sua normalidade sexual talvez sedenta, própria da criação ditada por divindades mais sapientes e sérias, quais foram os deuses da Antiguidade, ou o Deus criador, em que alguns crêem, tirantes os tais da tal teoria do género que despreza o sexo, de uma forma orgiacamente presunçosa. Mas leiamos, sim, o excelente trabalho da Professora Patrícia Fernandes, porque tudo o que nos acode à cabeça é descomedida indignação, por uma sociedade que de vez em quando se deixa manipular por idiotias a merecer, apenas, varapau. Ou mesmo cadeira eléctrica.

A politização do género

É possível que as académicas que desenvolveram a teoria do género queiram tanto ter impacto que caiam na ilusão de que as suas ideias serão imortalizadas. Mas trata-se de habitual arrogância académica

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 21 abr. 2025, 00:2023

1Tudo é político

Da mesma forma que muitas pessoas se sentem atraídas por acidentes de carro, eu resisto dificilmente a livros radicais e argumentos aparentemente absurdos. Um bom exemplo aconteceu-me com o livro O direito ao sexo, de Amia Srinivasan, uma colecção de ensaios construídos em torno da seguinte premissa: O sexo é uma coisa cultural que se faz passar por uma natural.”

Há um duplo sentido nesta ideia que decorre do duplo sentido permitido pela palavra “sexo”: não só não existe algo como o sexo biológico, uma vez que “o sexo é já em si o próprio género camuflado”, como também “o sexo, que consideramos um dos actos mais privados é, na realidade, uma coisa pública.”

O subtítulo do livro é Feminismo no século XXI e isso ajuda-nos a enquadrar esta forma de pensar: o que uma certa corrente do feminismo fez nas últimas décadas foi uma radicalização dos dois princípios consagrados pela revolução feminista da década de 1960. Por um lado, absolutizar o conceito de género ao ponto de considerar que todos os aspectos que decorrem da pertença a um dos sexos estão culturalmente carregados (o mesmo é dizer, servem um propósito político): falar em sexo feminino significaria já a indicação de que esse grupo tem como função servir os homens.

Por outro lado, a autora considera que o próprio acto sexual é político: as emoções que sentimos, quem desejamos e quem é desejado são aspetos culturais e políticos – de acordo com “regras que se aplicam a tudo isto [e que] foram estabelecidas muito antes de termos chegado a este mundo”. E não, a autora não está a falar do Criador ou da Natureza, mas da “patriarquia”, que define as regras que determinam as dinâmicas de poder e exploração na sociedade. E se tudo é político, tudo pode ser reformulado, nomeadamente as nossas preferências sexuais, para atender a “um dever de transfigurar, o melhor que pudermos, os nossos desejos”.

É desejável reformular o desejo para termos uma sociedade com menos discriminação, pelo que a ideia de “body positivity” se revela fundamental: “Black is beautiful e Big is beautiful não são apenas slogans de emancipação, mas sim propostas de reavaliação dos nossos valores.” Recusar o desejo por estes corpos ou por corpos deficientes ou trans é, nesta medida, uma escolha política e que deve merecer a nossa autocrítica.

2O regresso da realidade

Amia Srinivasan assume as consequências do seu argumento: sabe que a luta pelos direitos LGB assentou na ideia de que se trata de uma condição natural – e não de uma preferência sexual – pelo que não faria sentido discriminar um homossexual por algo de que não era responsável. O mesmo valeria para o argumento trans, que veicula a ideia de que não foi uma escolha ter nascido no corpo errado. Mas, para a autora, se este tipo de argumentação teve utilidade política, ele deve agora ser abandonado no contexto das tendências construtivistas e antiessencialistas do feminismo. Afinal, não há nada de inato ou natural

Como Srinivasan reconhece, recorrer ao factor natural é colocar-nos no domínio da argumentação liberal. Já o reconhecimento de que tudo é político coloca-nos no plano da permanente modificação do mundo: se não há nada de natural ou inato e tudo é maleável, então tudo pode ser reconstruído. A heteronormatividade poderia ser afastada se escolhermos sentir atracção por outros corpos e a normatividade binária desaparece se deixarmos de olhar para o mundo como se só existissem dois sexos. É neste sentido que Judith/Jack Halberstam e Judith Butler, em conversa, chamam a atenção para o facto de a “direita” ter razão quando considera que a teoria do género está a transformar o mundo: a teoria do género tem realmente esse objectivo.

A honestidade de Halberstam e Butler transporta-nos para o domínio das lutas culturais: se tudo é maleável e se tudo é político, então tudo se resume a uma luta pelo poder. Mas a consequência deste argumento é que deixa de ser possível levantar objecções sensatas e racionais ao comportamento do outro lado. Se tudo é política e luta pelo poder, como denunciar como abusivas as decisões de Trump?

Uma forma de sair deste paradigma de conflito permanente é reintroduzir a natureza e a realidade e consagrar direitos a partir delas. Este mecanismo liberal não elimina a luta política, mas garante que os direitos individuais não se tornam o alvo da disputa política.

É claro que a linguagem importa, o vocabulário que usamos condiciona a forma como pensamos e não há consciência do mundo sem conceitos e os conceitos exigem palavras. Mas, como seres vivos, fazemos parte de um mundo material que contextualiza a nossa linguagem, o nosso vocabulário, os nossos conceitos e as nossas palavras. “Reality matters, sex matters”, como tem dito repetidamente Helen Joyce. E foi precisamente o que os juízes do Supreme Court of the United Kingdom reconheceram no dia 16 de abril, quando estipularam que há “caraterísticas biológicas que fazem de um indivíduo um homem ou uma mulher” e que tal não resulta de autodeterminação ou de uma qualquer declaração emitida por serviços públicos. Esta é a única forma de garantir os direitos individuais conquistados nas últimas décadas por mulheres e homossexuais.

Embora a decisão tenha sido recebida em êxtase por tantas pessoas, Brendan O’Neill captou bem a ambiguidade dessa recepção:

 “Estou encantado com o facto de o Supremo Tribunal ter decidido que uma mulher é legalmente definida como uma pessoa com caraterísticas biológicas femininas. Mas estou chocado com o facto de, aparentemente, termos precisado de cinco juízes para nos dizerem algo que a nossa espécie sabe desde que descemos das árvores.

3As vítimas do género

Regressemos a Judith Butler. Naquela conversa, Butler afirma: “O género binário nunca mais será o mesmo. É possível que as académicas que desenvolvem o seu trabalho em torno da teoria do género queiram de tal forma ter um impacto relevante no mundo que lhes seja fácil cair na ilusão de que as suas ideias serão imortalizadas. Mas trata-se da habitual arrogância académica, particularmente engraçada por conter laivos da arrogância “ocidental” que as teorias críticas tanto gostam de denunciar: na verdade, a ideia de que o sexo é não binário é não só profundamente excêntrica no mundo ocidental, como tem um impacto quase nulo nas restantes partes do mundo.

Mas também se trata de um sintoma curioso da doença provocada pela torre de marfim: a que leva a que uma minoria intelectual que desenvolve ideias completamente afastadas da realidade e das quais a vasta maioria das pessoas discorda reclame para si a posição de defensores da democracia (mais sobre isto em breve).

Curioso, mas não divertido uma vez que toda esta insanidade provocada por excentricidades académicas tem deixado atrás de si um lastro de vítimas, apanhadas no meio desta loucura. Em novembro, Louise Perry defendeu, a partir da notícia de que Alexandria Ocasio-Cortez tinha eliminado a indicação dos pronomes da sua biografia no X, que a “onda trans” estaria a perder força. O problema é que esta não foi uma tendência política qualquer:

“ao contrário de uma tendência de moda tola, o movimento trans infligiu um custo humano terrível. As pessoas que fizeram a transição médica – muitas delas jovens mulheres muito vulneráveis – ficarão permanentemente desfiguradas e, provavelmente, não chegarão a envelhecer. Neste momento, a maioria delas não tem consciência de que está prestes a ser abandonada pelos seus aliados progressistas [que avançarão] para outra tendência, e não haverá qualquer pedido de desculpas. As vítimas do transgenderismo nunca serão curadas, serão apenas esquecidas.”

Afinal, talvez seja verdade que ideias académicas desenvolvidas em gabinetes das Humanidades podem mudar o mundo. Mas dificilmente isso acontecerá com um sentido positivo.

PS: Mais informações sobre o curso Wokismo: Teoria e Prática e o lançamento do curso Introdução à Cultura Ocidental (para jovens) aqui: https://pensamentolento.com/.

IDENTIDADE DE GÉNERO      SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (de 23)

João Carlos: Finalmente vejo o princípio do fim desta loucura. Ficaram bastantes vítimas de uma moda que apareceu e vai desaparecer como tantas outras. Agora devíamos responsabilizar não digo criminalmente mas a nível académico os promotores, influencers e outros que tais que levaram milhares de pessoas a darem cabo da vida. Mas não vai acontecer nada. Estes pensadores vão continuar nas suas vidas a afirmarem que eles é que estão certos e o resto do mundo está errado. É triste.                Rui Lima: Como escreve com dimensão e conhecimento e coragem para afrontar com saber os radicais do género! Mas fiquei deliciado com este parágrafo: ““Estou encantado com o facto de o Supremo Tribunal ter decidido que uma mulher é legalmente definida como uma pessoa com caraterísticas biológicas femininas. Mas estou chocado com o facto de, aparentemente, termos precisado de cinco juízes para nos dizerem algo que a nossa espécie sabe desde que descemos das árvores.”                   Glorioso SLB: Só existem dois sexos ou géneros. O normal é um homem ter relações c/ uma mulher. Tudo o contrário leva ao fim da espécie humana logo ñ é normal. É como um cancro. Mudar de sexo? Pq ñ mudar de espécie? Ñ faz sentido.              Futari Gake: Pois, ainda há pouco Sanchez colocou um "trans", com ar de mulher e voz de homem, a anunciar o árabe como língua oficial em Espanha. Alguém me enviou o vídeo e ficava admirado como era possível e logo ser anunciado por um representante LGBT que seguindo as regras de alguns ditos aliados do Ocidente, (não digo os nomes para não ser censurado), a primeira coisa que farão será a lapidação ou apedrejamento desta pobre gente até à morte, coisa que muitas vezes não é instantânea tal a nobreza de tal gente.                Tim do A > Futari Gake: Sanchez é um nojento socialista.       Tim do A: Muito bom artigo. Felizmente Trump está a atacar essa religião decadente e está a fazer o mundo voltar à normalidade e à realidade.               Futari Gake: Alexandria Ocasio-Cortez ou Mortágua abandonarão tudo o que lhes retira o poder sobre gente de cabeça tonta e fraca e muito está explicado nesta frase que explica bem as consequências desta nova orientação dos neo-comunistas: “ao contrário de uma tendência de moda tola, o movimento trans infligiu um custo humano terrível. As pessoas que fizeram a transição médica – muitas delas jovens mulheres muito vulneráveis – ficarão permanentemente desfiguradas e, provavelmente, não chegarão a envelhecer. Neste momento, a maioria delas não tem consciência de que está prestes a ser abandonada pelos seus aliados progressistas [que avançarão] para outra tendência, e não haverá qualquer pedido de desculpas. As vítimas do transgenderismo nunca serão curadas, serão apenas esquecidas.”       Maria Alva: Bom artigo. Bem podemos agradecer ao Trump o início do fim da teoria de género, materializada na directiva presidencial de que só há 2 géneros, o masculino e o feminino.       Coxinho: Mais um belíssimo artigo da Patrícia. Proponho que estes académicos (?) idiotas que -- muito provavelmente -- defendem a sua própria condição de LGBs sem o confessarem sejam convidados a viver na floresta. Veremos então se a espécie se multiplica e sobrevive.            Sergio Alves: Mais um texto brilhante, obrigado             Futari Gake > Tim do A: Pois é, mas é PM de Espanha e conta com o apoio de Bruxelas, ao contrário do que sucede com o PM da Hungria, de Itália ou Suécia ou de quem se opõe à agenda globalista que é alimentada e subornada pelo PCC e RPC e pelos Soros deste mundo. Ab

Só as modas mundanas


Ou espalhafatosas, se impõem com a prontidão da imediatez espectacular. Tudo o mais se faz ao retardador, e sobretudo as lições de lógica interpretativa, como as sugeridas pelo DR. SALLES neste texto, têm tendência a arrastar-se, no nosso país, por desapego, estreiteza, ou mesmo pretensiosismo, indiferentes, os seus defensores, à lógica argumentativa aqui expressa. Mas não creio que tal lógica de bom senso correspondente à verdade, penetre nos espíritos daqueles a quem cabe impor a continuidade ou a mudança, segundo o acaso dos acontecimentos históricos. Cá por mim, nunca tinha pensado nisso, julgo que aos governos também não, outras sendo as suas prioridades de governança, mas sobretudo as do interesse habitual pelo voto desses, que preferem talvez manter os títulos rebuscados das suas siglas, e que levariam a mal a intrusão nos seus domínios de importância…

SUGESTÃO AO GOVERNO – 10

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO21.04.25

Filosoficamente republicano, penso, no entanto, que a sigla GNR para Guarda Nacional Republicana faz supor que exista a RGN para Real Guarda Nacional; a sigla NRP para Navio Republicano Português faz supor que exista um RNP para Real Navio Português;

O nome oficial do nosso país sendo República Portuguesa faz supor que exista uma Monarquia Portuguesa.

Tema ridículo num país em que a questão do regime é um não-tema.

Eis por que SUGIRO AO nosso GOVERNO que:

Determine o desaparecimento das pertenças a um Regime passando os navios a ostentar a sigla NP, o Corpo Militar de Segurança a designar-se por GN para Guarda Nacional e o nome oficial do nosso país seja apenas PORTUGAL.

E, já que tratamos de nomes, tratemos de conteúdos também. Assim, sugiro que se extingam as actuais GNR e a PSP constituindo, a partir dos seus efectivos humanos e materiais a Guarda Nacional que inclua uma Brigada Costeira que absorva a Polícia Marítima.

COMENTÁRIOS (2)

A P MACHADO 21.04.2025 14:53: Subscrevo.

ADRIANO MIRANDA LIMA 21.04.2025 16:13: Subscrevo inteiramente a sugestão de juntar a GNR e a PSP numa única instituição - a GN. A GNR foi criada pelas razões conhecidas, para defesa da República. Com todo o tempo que passou e com a República mais que consolidada, creio que seria institucionalmente recomendável essa junção. Abraço ADRIANO LIMA

segunda-feira, 21 de abril de 2025

CONCLUSÃO


Da entrevista a MIGUEL ESTEVES CARDOSO: Uma “voz” simples, natural, arguta, sensível, falsamente pueril, a pretender ser espirituosa, de “pedrada raiando, no charco simplista do seu subjectivismo de “parti pris” habitual…

A sua voz como escritor mudou com o tempo? Ao ler estas cartas, sente algum embaraço?
Não, não. Agora já estou perto da morte portanto já não tenho qualquer… Quando era novo tinha imenso medo de partir assim e assado. Já não tenho esse medo. O que noto é que estava a aprender a escrever. O meu sonho era escrever e viver do que escrevia. Era o meu sonho: viver do que escrevesse, pronto.

Conseguiu.
Consegui. Aquilo sou eu a começar a escrever a prosa. Mas pronto, eu lia muito. Acho que até fico muito vaidoso com aquela idade, porque aquela idade não é uma idade normal de estar a escrever assim. Sei que tinha muita prática porque o primeiro livrinho que escrevi foi com cinco anos e depois com 10, 11, 12. Escrevi sempre muito, mas poesia. Mas é escrever, escrever é escrever. Com 19, 20 anos já me considerava… Abri agora há bocado enquanto esperava o livro, a partir de 71 considerava-me já um escritor estabelecido. A minha cabeça desde os 14 até os 20 era a minha primeira obra, já tinha muitos livros. Encadernados com títulos, tudo.

E, portanto, essa prática de escrever e de ler, aos 20 anos, já tinha escrito e lido muito, muito, muito. E o tom… Leio um tom de falso velho, de pessoa que aos 20 anos escreve como se soubesse tudo e como tivesse uma atitude muito blasée perante o mundo. É engraçado e cómico também. Muitas das cartas são escritas para fazer rir. Acho que é um livro muito risonho, muito enérgico, sobretudo com entusiasmo. Mas é um livro, do que li, em que me reconheço absolutamente. Acho que não mudei absolutamente nada. O entusiasmo pelas coisas, aquela loucura de um lado para o outro. O entusiasmo da coisa, a energia de ver um mundo tão grande e tão rico e tão bom. Como é que eu vou meter isso tudo cá dentro? Só saltando de uma coisa para a outra. Como é que eu vou pôr esta maravilha toda cá dentro? Falo como se já soubesse tudo o que havia para saber. Mas claro que sabia que não sabia nada, só tinha um pouquinho de nada dos livros, um bocadinho de nada e agora também é a mesma coisa. Mesmo depois de uma vida inteira a ler e a escrever, mesmo assim é só uma pontinha de nada que nós apanhamos.

Acha mesmo isso?

Acho, acho. Só a descobrir aqueles de quem gostamos uma pessoa perde tanto tempo… A pegar em livros, a dizer: este não presta, este não presta, ah, este sim. É uma pontinha. Porque há tanta coisa para descobrir que todos os meses descubro coisas novas, coisas que nunca vou ter tempo agora. O tempo falta sempre. O tempo falta sempre.

Este livro tem um cenário muito urbano, sente-se o fervilhar da cidade. Agora o Miguel está ao telefone comigo a partir da aldeia de Almoçageme e escreve sobre coisas muito diferentes.

Sim. É que uma pessoa tem que ir mudando. Os entusiasmos vão mudando. Eu odiava o campo. Odiava. Durante toda a minha vida só a ideia da pasmaceira do campo, de não ter acesso… A internet alterou tudo. A internet e sobretudo as transportadoras. Porque, agora, uma pessoa pode ter os livros todos, as revistas todas, tudo em casa, morando na Cochinchina. Portanto, as pessoas estão na internet, mas também é muito importante as empresas de transportes, são importantíssimas. Há agora a UPS, a DHL, a SEUR, há pelo menos nove muito boas. E essas trazem a casa. Mesmo que uma pessoa more no campo, que é o meu caso, trazem tudo a casa, os livros. Portugal é tão pequenino que uma pessoa está no campo, mas daqui a meia hora está em Lisboa. São 30 minutos. Não é um grande sacrifício. E Portugal é uma coisa maravilhosa porque o caminho também é maravilhoso. Saio daqui de Colares, passo pelo Cabo da Roca, o Guincho, Cascais, por-aí fora até chegar a Lisboa e não é uma viagem normal. É que em Portugal uma pessoa diz: “Olha, vou para o Alentejo”. Uma filha minha, a Sara, está a viver agora no Alentejo e diz “vou para o Alentejo”. E depois, passada uma hora, “já cheguei ao Alentejo”. Pronto, isto é um país de brincar, parece o país do Noddy. “Bolas, já estou farta de Lisboa, vou para o Alentejo”. Passada uma hora, “já cá estou”, pronto.

 

"Só a descobrir aqueles de quem gostamos uma pessoa perde tanto tempo. A pegar em livros, a dizer: 'Este não presta, este não presta, ah, este sim'. Há tanta coisa para descobrir que todos os meses descubro coisas novas, coisas que nunca vou ter tempo agora. O tempo falta sempre."

 

A cidade não lhe faz falta?

Não, claro que faz falta, sou ultra, ultra, Lisboa. Não é a questão de fazer falta. Faz-me muita impressão, tenho muita dor do que está a acontecer à cidade por causa do turismo, a descaracterização. Está a ficar desfigurada, Lisboa, cidade que eu amo, e uma pessoa só sente isso por causa do amor. As pessoas vêm para o campo para fugir a Lisboa, eu sempre quis viver em Lisboa ou no Porto. As cidades são maravilhosas, mas Lisboa tem aquela coisa que, em Lisboa, há pequenas aldeias. Lisboa em si, a parte que não existe, não é? Tem aqueles cantinhos. Lisboa é linda porque as pessoas que estão em Lisboa, nos sítios, também vêm de Trás-os-Montes, ou do Minho. A pessoa em Lisboa consegue viver a vida que vive numa aldeia, mas está em Lisboa. Ou seja, Lisboa é grande, é maravilhosa, é deslumbrante. E os lisboetas são muito engraçados. Pronto, uma pessoa encontra tudo em Lisboa. Era incapaz de viver longe de Lisboa, estou a meia hora, passo a vida em Lisboa.

Mas já observa a mudança da cidade.

É aquele queixume à portuguesa, que é um falso queixume. Eh pá, tenho muitas saudades de Lisboa. Mas não é uma verdadeira saudade. Verdadeira saudade é estar em Manchester, no norte de Inglaterra, com aquela idade, sem conhecer ninguém. Isso é que é exílio. Agora, Almoçageme é linda, fica a dois passos, é um dos sítios mais bonitos de Portugal, é tudo bonito aqui, as pessoas são bonitas.

Está a vender tão bem Almoçageme que não tarda também terá aí turistas.
Já há turistas aqui. Mas gosto muito de turistas, sempre gostei muito de turistas e gosto muito de estrangeiros. E a minha mãe é estrangeira, gosto do contacto com estrangeiros. O que estou a dizer é, quando partes grandes da cidade, como o Chiado, em que os sítios estão completamente virados para chegar uma população nova todos os dias, que depois vai embora… Fica uma espécie de falsidade. E a falsidade é horrível, não é nem português, nem lisboeta, nem francês, não é nada. E é um problema não é só em Lisboa ou Porto, em Portugal, é um problema terrível em que as pessoas vão passar uma semana a um sítio… Não interessa, pronto. Mas o verdadeiro exílio já não existe, graças a Deus. A internet foi a melhor coisa de sempre. E o telemóvel, uma pessoa consegue ter todos os livros no telemóvel, uma pessoa que tenha acesso às bases de dados da universidade consegue ter tudo no telemóvel, todos os livros, todas as poesias do mundo, todos os cinemas do mundo, tudo.

Ler no ecrã não o incomoda?

Nada, é maravilhoso. Prefiro ler num livro, porque o ecrã é pequenino e faz mal aos olhos. Mas nós temos a escolha. Ninguém nos tirou os livros, nem as revistas ou os jornais, continua lá a escolha, não é assim tão difícil comprar um jornal ou uma revista. E os livros são baratos, nunca se venderam tantos livros como agora.

Há dois anos, no Festival Escritaria, dizia que para escrever uma crónica engraçada há pelo menos 20 que falham, que são “fracassos”. Como é que aprendeu a lidar com os fracassos?
É terrível isso. Na vida, em tudo, não é como cozinhar. Na escrita, sai sempre quase mal. O que acontece geralmente é que eu acho muita graça, mas as pessoas odeiam, ou não acham graça, ficam aborrecidas. É muito difícil fazer coincidir entusiasmos. Agora descobri um escritor, não sei quê, e a pessoa que está a ler quer lá saber. A coisa importante, mais difícil, é a ligação com o leitor. Uma pessoa tem que encantar o leitor. Isso é muito difícil, engatar um leitor.

Quando é que aprendeu a fazê-lo?

É ao calhas. Tento sempre, só que falho sempre. De vez em quando acerto, e as pessoas gostam e ficam muito contentes. Acho que é mais um para cinquenta do que um para vinte.

A ideia de fracasso não muda ao longo do tempo?

Sim, sim, muda imenso. Tenho fracassos enormes da minha vida, constantes. Um fracasso enorme é, por exemplo, tudo o que escrevi sobre comida — ligo imenso à cozinha — foi sempre um fracasso gigantesco. Há dois ou três anos, uma editora disse: “E se juntássemos todos os textos que escreve sobre comida para o Público, no Fugas?”. Fiz um livro giríssimo, com uma capa giríssima, vendeu pr’aí dois exemplares. Teve de ser tudo queimado. Ninguém sabe como é que se faz um Martini. É um fracasso absoluto. Não sei explicar porquê, mas é um fracasso. Uma pessoa escreve sobre comida e é uma coisa a que os portugueses ligam muito até e, no entanto, é um fracasso retumbante. Como outros livros, outras coisas da minha vida. Um fracasso é bom porque dá a oportunidade de experimentar outra coisa. Faz rir um bocadinho. É muito engraçado as pessoas não ligarem, é uma coisa humorística. Gostaste? “Nem por isso”. Isso é muito engraçado porque é a liberdade. A pessoa tem a liberdade de dizer: “Olha, não gostei”. Ouve o Beethoven, o que é que achaste? “Olha, não gostei nada”. É maravilhosa essa liberdade de a pessoa dizer que não gosta.

Lê as críticas dos seus livros?

Sim, sempre. São muito poucas, não é? Lêem-se um instantinho. Leio, que remédio, tenho tão poucas. Quem me dera ter muitas, mas são tão poucas que leio e pronto. Também leio todos os comentários que fazem no jornal. Todos.

Porquê?
É um grande privilégio poder ler. Antigamente era quase impossível saber a opinião. Quando comecei a escrever no Expresso só por carta é que se sabia. Só escreviam as pessoas que tinham gostado muito ou odiado muito. É muito bom apanhar aquelas opiniões que são: “Ah, tem coisas boas e coisas más”. A verdade. É muito raro poder saber a verdade dos leitores. O que chamam de feedback, não é?

 

"Em Portugal, quando ameaçam o sistema de saúde, enquanto não houver um mínimo de dignidade para as pessoas pobres, não podemos dar-nos ao luxo de ser elitistas."

 

O retorno.

Sim, o retorno é fascinante, não é? Porque há sempre uma verdade em tudo o que dizem. Aquela pessoa deu-se ao esforço de escrever uma coisa e há ali uma verdade. Uma pessoa consegue pôr de lado a vaidade, isso é muito importante e ver que há ali qualquer coisa, há sempre uma liçãozinha para tirar, sempre. Mesmo as pessoas que parece que estão sempre a dizer mal, tenho aprendido imenso com elas. Parece mentira, mas é verdade. Porque é sempre bom ter alguém sempre a dizer mal porque o facto de ler já chega. Leu, está sempre a dizer mal, mas lê. Isso, ler é uma grande dádiva. Lê.

Mas para saber ouvir isso é preciso ter uma relação especial com o ego.

Um relação especial com o ego, como?

Para conseguir ouvir e encaixar a crítica.

Ah, não, mas também sou leitor das minhas coisas. Há coisas que quando escrevo e gosto muito não há ninguém que me diga “olha que isso é uma merda”. Eu também sou um leitor.

Qual foi a melhor coisa que escreveu?

Não sei, ainda é um bocado cedo para isso, não? Toda a gente diz sempre: “Ah, foi a última”. Mas acho que o escrever é uma prática, acho mesmo que quanto mais se escreve melhor se fica. Porque aprende-se a escrever com mais depuração, aprende-se a manipular melhor. Escrever é uma coisa muito difícil, muito difícil. E aprende-se a depurar mais e a fazer mais com a língua. Uma pessoa aprende a manejar a língua, e a língua é dificílima. Uma pessoa, com o tempo, à força bruta de tanto experimentar, acaba por aprender. Tenho esperança que uma pessoa possa utilizar a língua para mostrar como é que somos e o que é que pensamos. Porque há pessoas que são horríveis, pessoas horrendas, que aprendem a escrever e também só mostram ainda melhor o horror que são. Há pessoas com jeito para escrever e isso não tem nada a ver com ser interessante ou ser uma boa pessoa, ser fascinante. Para cada hora que escrevo, leio 10 horas. Leio, leio, leio, leio, leio. O que os outros escrevem. Isso é importante. Vou à procura das coisas de que mais gosto, depois abandono, sou terrível. As pessoas que gostam de me ler, é muito bom, mas… É giro é ver pessoas que dizem: “A melhor coisa que escreveste foi em 1979”. Uma pessoa tem que aceitar e agradecer isso. A maior parte das pessoas diz: “Lia muito tudo o que escrevia quando era novo, nos anos 80, no Expresso, 81, 82, 83″. O meu primeiro livro foi o mais vendido. Muita gente diz: “Achava imensa graça, mas pronto, depois não”. E isso parece uma coisa de “então e agora?” Mas é uma grande dádiva. Gostavam de mim quando era novo. Eu acho que isso é a mesma coisa com as mulheres muito bonitas ou artistas de cinema. Quando dizem: “Ah, gostava dela quando ela era muito boa”. Eu também era muito bom quando era muito novo. Quando uma pessoa aparece nova, as pessoas dizem: “Ah, quem é este gajo? Tão novinho, não sei o quê, com os óculos, quem é ele? Ah, ele é muito vaidoso. Ele escreve bem”. Nós temos o nosso tempo também, o nosso coiso pop, quando somos novidade. E as pessoas gostam nessa altura e depois passam para o próximo. Que mal é que isso tem? O que é bom é ser lido. Não interessa quando, se é quando éramos novos se é agora.

É um erro perguntar “qual é a melhor coisa?”, quem decide isso é a pessoa que lê. É terrível isto, mas isso é o que ensinou Duchamp. É o espectador que decide a obra de arte. É verdade. O leitor, se fica aborrecido com uma coisa, aquilo é aborrecido. É aborrecido para ele. Se ele lê o princípio e depois abandona, é um fracasso. O livro, para ele. E continua a ser um fracasso.

 

Se lhe dizem que antes é que tinha graça…

Dizem imenso isso, porque as pessoas achavam graça ao que eu escrevia naquela altura. Já é muito bom, não? Dizer assim: “Sabes que eu estive apaixonado por ti”. Olha, obrigado. “Agora já não estou. Estás velho e gordo”. Pronto, não faz mal.

 

Mas este livro é uma óptima resposta, não? É o MEC há 50 anos.

Sim, é uma óptima resposta para as pessoas que dizem “ele está velho”. Ai queres novo? Então vou-te dar. Se a pessoa gosta de novo… Quantos jovens de 20 anos escrevem sobre o que lhes vai na alma? Quantos? Eu não conheço. Em prosa. Se as pessoas querem juventude. Depois gosto porque tenho amigos meus que são muito mais novos e que dizem: “Tu agora estás um bocadinho chato e velho, a falar dos livros e das plantas e do raio da primavera e das andorinhas”. E eu agora ultrapasso-os por dentro. Eles começaram com 35. E eu digo: “Ai é? Toma lá, eu com 20. Ah, pois, estás a ver?” Se tivesse ficado em Portugal nunca tinha escrito aquilo. Porque tinha a minha vida para viver, os amores e as amizades. Só numa situação de crueldade, de saudade terrível, de solidão terrível, é que uma pessoa é forçada a escrever cartas em vez de viver. Porque os meus 19, 20, 21, onde é que estão esses anos? Os meus anos de juventude não os vivi. Agora não me venham a dizer “quando era novo”. Então toma lá o novo.

LIVROS      LITERATURA      CULTURA

 

COMENTÁRIOS (de14)

M L: A qualidade não abunda é um facto. Mas entre pp e um camarada que ainda vive no passado, ou uma lésbica de esquerda, a opção é óbvia. Quanto a MEC, eu e muitos, já estamos verdadeiramente fartos do snobismo dos intelectuais de esquerda que poluem, há décadas, quase toda a cs do país.               João: Só de pensar que andei a distribuir propaganda a favor da eleição deste gajo, em 1988 ou 1989, já não sei, até fico doente. Mas pronto, era jovem, não pensava...       Carlos Jeronimo: Só quem não tem noção do país em que vive é que pode achar que PP poderia ser eleito PR…              Alexandre Barreira: Pois. Calma, "rapaz". O "irrevogável" está a preparar. O "periscópio"....!              Jorge Tavares > Nuno Borges: Se isso interessa, está errado. Não devia interessar.

ENTREVISTA


A MIGUEL ESTEVES CARDOSO, que conheci em tempos passados como participante de um programa televisivo, com várias outras figuras que se destacavam então, MEC um pouco à margem, talvez por um defeito qualquer de desempenho oral, mas vejo, na Internet, que tem uma intensa vivência literária, para além dos seus artigos diários nos PÚBLICOS que a minha irmã me passa, e que religiosamente leio, pelo seu humor crítico, admirando simultaneamente a variedade dos seus temas breves, mas sempre impregnados de um crítica bastante altiva contra os portugueses e o seu país, temática da sua ironia contínua, conquanto breve, nesse jornal – o que, reconhecendo-lhe o jeito crítico, me incomodou sempre ao sentir a distanciação superior relativamente a este país que lhe merece tantas vezes orgulhosa troça, talvez pelas suas origens estrangeiradas e estudos fora, que dele vaidosamente o distanciam, pese embora a pertinência sagaz do seu sentido crítico.

Eis a entrevista, que extraio do OBSERVADOR e que nos dá traços das suas experiências biográficas:

 “Quantos jovens de 20 anos escrevem sobre o que lhes vai na alma?”, pergunta agora o escritor, confrontado com a sua então evidente obsessão com a foleirice, opiniões políticas controversas (de Salazar a Mussolini), uma ignorância típica da juventude e até algum (para não dizer muito) show-off. “Se tivesse ficado em Portugal nunca tinha escrito aquilo”, confessa. Foi a solidão que o levou “a escrever cartas em vez de viver”, diz ao Observador, por telefone, a partir de Almoçageme, aldeia perto de Colares, Sintra, numa conversa que foi da vida no campo ao elogio à cidade, da comicidade e perigo de Salazar até ao desejo para o próximo Presidente de República (“Gostava que fosse o Paulo Portas”, admite), passando pela irrefreável paixão por Portugal que o assomou desde que foi para terras inglesas. “Pensava que era uma pessoa do mundo, queria ir para Nova Iorque, Paris, mas em Manchester tive uma conversão física e percebi que era portuguesíssimo”.

Capa do livro "Cartas para a Vila Berta", de Miguel Esteves Cardoso (Bertrand Editora)

 

Onde estiveram estas cartas este tempo todo?

Tinha as cópias em papel químico. Vivi em Portugal toda a minha vida e depois, de repente, fui para Inglaterra estudar. Aqui tinha uma vida completa, alegre e, de repente, vi-me lá pobre e sem dinheiro, mas com a minha máquina de escrever. Dantes só escrevia programas de rádio e poemas, mas porque estava muito solitário, não tinha os meus amigos… De repente, fico sozinho no norte de Inglaterra, não conhecia ninguém, não tinha ninguém com quem falar português. Comecei a escrever as cartas ao Vilela, que era o meu melhor amigo.

 

E ficou com uma cópia das cartas.

Ficava com o papel químico, ficava com uma cópia. Porque orgulhava-me daquilo que escrevia também. Punha-me bastante naquelas cartas. Estava a escrever prosa pela primeira vez na vida. Punha o papel químico e guardei as cartas, ficou tudo numa pasta durante muitos anos. O Vilela ainda por cima não respondia às cartas, e eu continuava a escrever. Estiveram sempre numa pasta. Depois, muitos anos mais tarde, parece quase História agora, fui viver para o Estoril com uns amigos, houve alguém que saiu daquela casa e entrou o Pedro Paixão. Sabe quem é o Pedro Paixão?

 

Claro [escritor e amigo de Miguel Esteves Cardoso].

Ele é que pegou nessas cartas, andou a ver as coisas todas que havia lá em casa, começou a ler e ficou fascinado. “Ah, isto é muito bom…” Nunca mais tinha pensado naquilo. Para mim eram só cópias de cartas, cópias de cartas escritas ao Vilela. Foi a primeira vez que alguém disse que as leu. A primeira vez que alguém leu, porque também não sei se o Vilela as leu.

Isso foi quando?

Deve ter sido em 1989, 1990. E a partir daí, pronto, fiquei com a ideia de “se calhar está lá qualquer coisa”. Foi a primeira vez que escrevi prosa. Quando reli agora mesmo percebi também que pela primeira vez estava a contar qualquer coisa. Porque estava completamente sozinho, não tinha ninguém com quem falar português, não tinha amigos, não tinha nada. Não tinha paisagem, não tinha dinheiro. Percebi que Portugal era a coisa mais bonita, tive uma conversão terrível. Como a minha mãe é inglesa, eu lia imensos livros ingleses e lia poucos livros portugueses. Pensava que era uma pessoa do mundo, queria ir para Nova Iorque, Paris… Mas em Manchester tive uma conversão física e percebi que era portuguesíssimo. Tive imensas saudades. Foi mesmo uma conversão física, ao passar em frente de umas portas lá na universidade ouvi português. Não ouvia português há seis ou sete meses, porque não havia internet, não havia nada, não conseguia apanhar a rádio. Era um silêncio… Ouvi alguém: “Amanhã tenho que ir com o guarda-chuva porque vai chover”. Comecei a chorar. Quase que me esqueci de falar inglês, bolas. Durante 15 dias. Foi uma coisa terrível. Percebi que Portugal era o meu país, como era lindo, desprezado e esquecido, essas coisas todas.

 

Diz que punha muito de si nas cartas, mas nos primeiros textos que escreveu em jornais, pouco depois, assumiu sempre o ponto de vista de espectador, tanto nas críticas musicais e de cinema, mas também nas crónicas no Expresso, no início dos anos 80. Só nos últimos anos, já no Público, é que o vemos a assumir o sujeito da escrita. Afinal já o tinha sido aqui, nós é que ainda não o havíamos lido.

Agora em maio faz 50 anos que saiu a primeira coisa minha publicada num jornal. 50 anos de colaboração nos jornais, não é pouco. Foi em 75 que um jornal publicou umas críticas de cinema que tinha escrito. Isso foi exactamente há 50 anos. Mas, claro, uma pessoa para escrever… Comecei a escrever muito cedo, não é? Mas escrevia em inglês, e depois escrevia umas coisas de poemas, imensos poemas em português. Quando escrevia as cartas, pensava assim: este sacana não me responde às cartas. Mas depois percebi que ele não respondendo até me estava a ajudar. Porque ainda escrevia mais. Precisava de escrever, não tinha ninguém com quem falar. Escrevia os meus poemas, continuava a escrever, escrevia mais poemas do que nunca. Mas a prosa… Nunca tinha percebido a prosa, a prosa para contar, a prosa jornalística de contar o que se está a passar. Uma pessoa pode mentir. A solidão é terrível, aquilo tem muitas mentiras. Podia inventar, já que estava a contar… Em vez de dizer que saí e fui comprar o jornal podia dizer que saí e passou por mim uma mulher linda ou um velhote. Percebi que podia inventar e que a diferença entre a ficção e as cartas é a liberdade de escrever para ter graça. Acho que isso é muito importante.

 

"Não tinha noção nenhuma da sorte que tinha, dos privilégios todos que tinha, na minha adolescência, em tudo. Era um menino rico, vivia numa casa com imensos livros, não fazia ideia[...]"

 

Ter graça?

Quando uma pessoa escreve poemas e julga que é um poeta está a escrever para as pessoas que gostam de ler poesia ou para a posteridade. Uma pessoa imagina quando é muito nova que vai morrer e que só depois de morrer é que vão ver os meus poemas e ver que sou um génio. É típico das crianças, isso. Mas lá em Manchester, a escrever ao Vilela, percebi o que é escrever para alguém, para o leitor, propositadamente. Tem que interessar a pessoa, é uma carta, tem que ter graça. Há muita gente em Portugal que continua a escrever como se fosse para ninguém, num português incompreensível, não faz o mínimo esforço para interessar, para fascinar ou para ter graça. Não há esforço. Há aquela ideia de: “Agora vou despejar a minha alma, vou-me exprimir e que se fodam os leitores”. Nessas cartas, estava a escrever para uma pessoa que conhecia bem, sabia o que é que interessava.

Essa coisa linda que é uma carta, para já, é um luxo. Escrever tanto, estar 10 horas a escrever uma carta que outra pessoa lê em 10 minutos? É um luxo. Nos jornais uma pessoa escreve para a multidão, qualquer pessoa pode ler. Mas escrever só para uma pessoa, só quando uma pessoa tem muito tempo e é muito nova. São quase cartas de amor, as cartas de amor fazem a mesma coisa. Quando uma pessoa escreve uma carta de amor a outra pessoa tem que acreditar que é uma carta para ela, para ela, Joana, ou para ele, Miguel, e não uma carta genérica para homens ou mulheres. O genérico, o abstracto, não move ninguém. Tem que ser dirigido à pessoa que lê. A pessoa quando lê diz assim: “Isto sou eu”, não são os homens em geral, ou as mulheres em geral, ou whatever.

 

Como a primeira carta que escreveu à Maria João [sua mulher], para se conhecerem.

Como as cartas que escrevia à Maria João tinham de ser para a Maria João, só para a Maria João, não para as mulheres da idade dela ou as mulheres bonitas. Isso falha, está mal escrito. Uma coisa que diz assim: “Os teus olhos são não sei quanto”. Isso nota-se muito nas coisas de engate. Só conheço os anos 80, em que as pessoas diziam: “Então os anjos desceram à Terra?”. Tudo o que se aplica a toda a gente não funciona. Quando a pessoa quer escrever uma carta, ou seduzir, que é a mesma coisa, tem de ser específico à pessoa. A pessoa tem de dizer: “Então, para onde é que tu vais? Vais beber o teu iced tea com o duplo limão?” E a pessoa diz: “Ah, sim, isso sou eu, duplo limão sou eu”. Por isso é que é tão bom escrever cartas, a carta é dirigida àquela pessoa.

 

A falta de resposta não mudou o destinatário das cartas? Nunca sentiu que as cartas que escrevia passaram a ser, a dada altura, para o Miguel?

Sim, é isso mesmo. Porque não havendo resposta, torna-se perfeitamente literário. Uma pessoa não tendo resposta continua a escrever. Não estou a escrever para ele saber o que estou a fazer, estou a escrever também para passar o tempo, para me sentir menos sozinho, para evocar o que me falta. Aquilo é uma saudade maciça, a saudade da amizade, dos rituais da amizade, do riso, mas também dos sítios, onde isso se passa, que é Portugal, que é um país maravilhoso comparado com o norte da Inglaterra. Ou comparado com tudo. Não tinha noção nenhuma da sorte que tinha, não tinha noção dos privilégios todos que tinha, na minha adolescência, em tudo. Era um menino rico, vivia numa casa com imensos livros, não fazia ideia. Uma pessoa não fazia ideia nesses tempos.

 

Escreve: “Portugal é o único país em que só se pode estar, estando fora dele”.

Sim, porque a maneira como se mitifica… Levei muito tempo para que me passasse aquela coisa de comer tudo, andava à procura de tudo. Uma pessoa à distância, ainda em Portugal, com a coisa das saudades, uma pessoa só se lembra das coisas… Uma pessoa constrói, mesmo os desenhos que se faz, de lembranças, de viagens, de coisas, torna-se tudo maravilhoso…

 

Gostava de lhe perguntar pelo que não é maravilhoso, até porque um dos temas mais presentes neste livro é uma certa obsessão com a foleirice, com o que é foleiro.

Naquela idade uma pessoa diz sempre: “É pena que os jovens não escrevam”. Mas, por um lado, é muito bom que não escrevam, porque ser jovem é ter um excesso de energia, e naquela idade uma pessoa é insuportável. Como é ignorante, uma pessoa é insuportável. Aquela coisa infantil do horror do foleiro… Mas é engraçado que, com o tempo, estou a voltar a essas coisas.

Quando vejo, por exemplo, na música, a dizerem bem dos ABBA: “Agora tudo vale, o que interessa é gostar e curtir, guilty pleasures!” Percebo que o foleiro está mais ameaçado do que sempre porque tomou conta de tudo, agora vale tudo! Já não há nenhuma distinção. Uma pessoa vai ver a música dos anos 1980 que ficou e é só merda. Os Duran Duran, os Depeche Mode, são uma grande merda. E eles são os melhores da merda, mas então a merda, os Modern Talking… Pessoas super cultas — que não são, claro, super cultas, porque senão não diziam isso — que dizem: ah, os ABBA e os Modern Talking, é muito bom. Não é nada muito bom, é muito mau!

Agora dei uma volta, porque passei uma grande fase em que dizia: “Não interessa, o foleiro está no olho de quem vê”. Mas não. Assim como há pessoas maldosas, pessoas malvadas — não nos dá jeito de dizer, mas há pessoas que são más, e há pessoas que são boas, e a maior parte das pessoas são assim-assim — também há o feio, também há pessoas feias. Há pessoas muito foleiras. As festas que há no verão em Portugal, uma pessoa que viva essas festas, ou que não tenha alternativa, que se ponha a ouvir a música, a chamada música pimba. Aquilo é a mesma coisa que uma doença. O que faz mal faz mal. Faz mal ao nosso sentido estético, ataca-nos o cérebro. Faz ao nosso cérebro o que fazem aos pepinos quando fazem pickles. Aos pepinos põem vinagre, aquilo empapa-nos a cabeça. Aquilo é mau. É mesmo o mal, devia ser preso.

 

"É um livro em que me reconheço absolutamente. Acho que não mudei absolutamente nada. O entusiasmo pelas coisas, aquela loucura de um lado para o outro. A energia de ver um mundo tão grande e tão rico e tão bom. Como é que eu vou meter isso tudo cá dentro? Falo como se já soubesse tudo o que havia para saber. Mas claro que sabia que não sabia nada"

 

Em mais uma passagem sobre o conceito de foleiro escreve que “a literatura portuguesa é, na generalidade, a literatura da foleirice”. Ainda concorda?

Não, já não concordo nada. É preciso ver que não conhecia nada, era tão novo, estava a conhecer tudo pela primeira vez. Uma das coisas principais, talvez a coisa principal, quando cheguei lá foi encontrar a biblioteca John Rylands, a biblioteca de Manchester. Maravilhosa biblioteca, uma pessoa podia andar pela biblioteca fora, não era preciso requisitar os livros. Andava pelos corredores todo o dia. Toda a literatura portuguesa li lá, todos os livros, assim todos encadernados, a poesia toda portuguesa, milhares de livros, ainda por cima todos novos. Fui tirando um a um. É impossível fazer isso na internet. Ia tirando os livros, abria, lia uns poemas para ver se gostava e punha logo outra vez e tirava outros. Numa tarde com oito horas lia praí uns 50 poetas, rejeitava quase todos.

 

Neste livro faz uma lista dos bons escritores portugueses, distingue os “enormes” e os “bonzitos”.
Sim, continuo a achar que aqueles de que gostei continuam a ser aqueles que são bons.

 

50 anos depois, há alguém que gostasse de ter incluído nesta lista?

Não me lembro da lista. Sei que está lá o Herberto Hélder, o João Miguel Fernandes Jorge, a Maria Teresa Horta, mas pronto, há muitos que faltam. Muitos grandes.

 

Disse-me que não releu estas cartas.

Não. Fico horrorizado. A energia, a intensidade é tão… É muito show-off. Com 20 anos dizer: “Eu li isto, fiz aquilo e depois”… É uma coisa de show-off, é a coisa da ignorância de estar a aprender. Podia dizer que trazia 20 livros por dia para casa e lia tudo. E no dia seguinte ia lá buscar mais. Era uma riqueza, tipo Gruta de Aladdin. Embora, pronto, a minha casa já tinha muitos livros. Mas eram livros do meu pai e livros da minha mãe. Ali era eu que decidia: a literatura francesa, a portuguesa, a italiana. Podia fazer o que quisesse. É a maior sensação de riqueza de sempre a de poder mexer nos livros todos. Todos os livros. Aquilo eram infinitos livros! Uma biblioteca lindíssima onde podia ler só um bocadinho. Ah, o luxo de ler só um poema e depois fechar um livro e dizer: dá cá outro.

 

Voltando às cartas e à verdade.

Há muita coisa acrescentada. Há coisas que eu inventava, personagens inventadas. É uma coisa ultra-literária, mas o Vilela sabia disso. A verdade em si é muito chata. Uma pessoa contar a verdade: “Vim para aqui, não sei o quê, estive a ler até às duas da manhã. Depois deitei-me.” É muito chato. Uma pessoa para escrever, para contar uma coisa, tem que acrescentar um ponto. Não é fazer como os portugueses que dizem assim: “Aposto que aí acrescentaste um ponto”. Ó, pois claro que acrescentei. Tive que acrescentar, está tudo mudado para se tornar giro, olha que porra. “Eu fui ao médico, não sei o quê, ver do joelho, voltei, doeu-me”. É isso que queres ouvir? Pronto. Então fica contente com essa história. Uma pessoa tem que dizer que conheceu, mas claro que não conheci. Essa é a essência da escrita: a liberdade que temos de mentir, de inventar. De dizer: “Fui e levei uma chapada”. Não levei chapada nenhuma. Mas tem graça ler. Porque o que se escreve é destinado a ler. E ler tem de ser divertido, tem de ter graça, tem de ser bonito. Todos os dias uma pessoa tem de pegar nas coisas bonitas e fixá-las. Torná-las interessantes, torná-las bonitas para quem lê. A pessoa que lê tem de ser compensada. Porque ler, ainda-por cima hoje em dia, uma pessoa que se disponha a ler, só a atitude de se sentar com o telemóvel ou com um livro é uma dádiva. Uma pessoa que se predispõe a ler hoje em dia, em que há tanta coisa, tem que ser acarinhada. O que lê tem de ser rico e denso. O texto tem de fazer coisas que nenhum filme pode fazer. O filme não pode nunca saltar como salta um texto. Podemos saltar de Paris para Viena, para aqui e para ali, para o gato, para o cão, para o céu, para Deus nosso Senhor. Desce e vem, tudo ao mesmo tempo.

Com 20 anos, Miguel Esteves Cardoso foi estudar Estudos Políticos, em Inglaterra. Para combater a solidão, agarrava-se à máquina de escrever e escrevia cartas ao melhor amigo, que vivia em Lisboa         (CONTINUA)