domingo, 6 de setembro de 2009

Também Tartufo

Quase todos acharam que o frente-a-frente Sócrates e Jerónimo de Sousa, ontem, sábado, no Canal 1, mostrou uma diferença abissal entre o primeiro, seguro de si, com a lição cada vez mais bem estudada, porque cada vez mais repetitiva, e o segundo, titubeante, deixando-se envolver nas manobras de aliciamento do Primeiro Ministro, sério, decente, meigo, sedutor, tristemente desconcertado com os ataques frequentes do PC ao PS em vez de dirigir as baterias sobre o PSD.
É certo que Jerónimo de Sousa momentaneamente pestanejou e nem se rebelou, decerto comovido – quem sabe se arrependido – tal a seriedade triste, e não furibunda, da acusação contra a traição do amigo. Porque José Sócrates falou de amizade entre ambos – amizade na relação pessoal, note-se, nada a ver com a questão ideológica, em que os ralhos eram recíprocos.
Eu dei por isso e a minha amiga também, mas não nos pareceu que, apesar da brandura, Jerónimo de Sousa não fosse levando a água ao seu moinho. Com efeito, embora suavemente – notou-se que se intimidou com a juventude radiosa do seu opositor, apesar do efeito insinuante do uso, por aquele, de idêntica gravata vermelha– não deixou de pontuar as políticas erradas do governo, de arrogância e hostilidade permanentes, contrárias aos direitos humanos, responsáveis pelas manifestações de rua, mais do que as manobras sindicais impulsionadas pela esquerda.
Sócrates, é certo, defendeu-se, redarguindo que os sindicatos devem ser autónomos, preocupados, sim, com os seus associados, ao passo que o governo tem a seu cargo esses e os outros todos, e que lhe compete arbitrar e decidir em função do bem geral. Falou depois nos acórdos de concertação social para pôr em ordem as contas públicas, como motivo principal do seu empenhamento, prometendo uma posterior disponibilidade para negociar com o movimento sindical. Mas Jerónimo de Sousa, de uma educação mais vetusta, e portanto, mais clássica, considerou correctamente que esses acôrdos de concertação se apoiavam sempre na sucção dos trabalhadores para pagamento da crise e nunca dos ricos, que tanto contribuíam para ela, e jamais pagavam, nunca sugados mas sugadores.
A minha amiga não reparara nos “acórdos” revoltantes de Sócrates, e só dera pelo “à séria” do Portas, dias antes, apressando-nos nós a comentar, de passagem, sobre os tratos de polé da nossa pobre língua, apesar da capacidade oratória dos candidatos. Eu cheguei mesmo a considerar que bastara os “acôrdos” de Jerónimo de Sousa para reabilitar toda a timidez da sua elocução.
Timidez que não deixou de frisar, contudo, na questão da Educação, a irredutibilidade da Ministra, a repartição dos professores em duas categorias, com discriminação salarial e de insinuar que a promessa de mais delicadeza futura de Sócrates para com os professores visava o apoio eleitoral destes, e que isso não bastava.
É claro que Sócrates se alargou na referência às medidas que tomou no seu governo, já tantas vezes referidas, entre as quais o aumento de dez por cento nos subsídios de desemprego e nós ambas comentámos sobre a sua nulidade, sobretudo em comparação com o que por aqui vai de esbanjamentos, nas nossas tropelias sociais.
Mas Jerónimo de Sousa atalhou com a metáfora da árvore para esconder a floresta como táctica primordial do PS.
Sim, Jerónimo de Sousa poderia ter dito muito mais, no seu estilo forte em Plenário ou nas festas do Avante e noutros sítios do seu percurso.
Todavia, como resistir a uma envolvência ministerial de mesura, delicadeza, afectada virtude na voz um tanto melíflua, um tanto maquiavélica, de quem sabe que fez obra, sempre subjectivamente optimizada, e conta com isso para ganhar? Foi assim que Orgon se deixou envolver, nas manobras hipócritas de Tartufo.
Jerónimo de Sousa é menos babaca que Orgon foi. Em caso de crise, contudo, de hipótese de viragem, não deixará de atender ao rogo do seu amigo. Que os amigos são para as ocasiões.

sábado, 5 de setembro de 2009

Dois dramaturgos corajosos: António José da Silva - Bernardo Santareno

Se os Franceses não têm a bossa épica, segundo referência de Voltaire, que na sua “Henriade” tentou demonstrar o contrário, embora não desconhecesse a projecção da “Chanson de Roland”, bem podemos considerar quanto os Portugueses perdem em confronto dramático com os monstros consagrados da literatura europeia, Shakespeare, Molière, Racine, Corneille, Calderon, Goldoni, Marivaux, Beaumarchais, Óscar Wilde, Giraudoux, Pagnol, Anouilh, Sartre, Cocteau...
Com efeito, se Gil Vicente, como “pai” do teatro português, mantém ainda o lugar cimeiro na dramaturgia portuguesa, na graça da sua inspiração multifacetada, no sentido crítico e humanístico das mensagens dos seus autos e farsas, se Camões, no seu teatro, misto de popular e clássico, consegue maravilhar-nos ainda nas efusões líricas das suas personagens que imprimem aos seus textos dimensão psicológica, se a tragédia “A Castro” de António Ferreira nos causa igual admiração pela nobreza de um pensamento articulado com extrema elegância discursiva, cremos que Garrett constitui o fecho da pléiade dramatúrgica de maior protagonismo na literatura portuguesa. Com efeito, “O fidalgo aprendiz” de D. Francisco Manuel de Melo, o teatro de Régio, ou o de Torga, ou o de Pessoa pouco acrescentam ao valor literário dos respectivos autores.
Quanto a António José da Silva (1705-1739), bem se pode dizer que soube provocar o riso fácil, com o seu tipo de teatro de bonifrates ou fantoches, de humor apalhaçado e fantasia delirante, embora lhe não falte riqueza de linguagem e de conceito e conhecimento humanístico. Bernardo Santareno (1924-1980), ao contrário daquele, apresenta sombrios quadros de conflitos humanos, num teatro que, numa segunda fase, pretende ser de compromisso político e ataque ao sistema. Embora com expressiva arte na composição dramática, a ambos falta a leveza e a simplicidade da acção dramática que, para parafrasearmos Boileau, “manterá até ao fim o teatro cheio”.
Dois homens inscritos em épocas diferentes no tempo, ambos de pensamento livre, capazes de condenar a sociedade e o regime em que se integram, um pelo riso, outro pelo ataque enérgico, ambos condenados no mesmo tipo de sociedade anquilosada na sua estreiteza permanente – o primeiro a morrer queimado num auto-de-fé, o segundo a não ver representadas as peças da fase de denúncia, a que pertence “O JUDEU”.
Para compreendermos tal aberração do permanente atrofiamento cultural e social português, partiremos de um breve apontamento sobre as origens dele e sua evolução.
Assim, enquanto na Europa se dá, no século XVII, um movimento filosófico e científico que conduz à criação da ciência mecânica e do racionalismo moderno, com Descartes, Leibniz, Newton, Espinosa, em Portugal há um imobilismo cultural que sucede ao movimento renascentista de devassa dos novos mundos.
Artisticamente traduz-se pelo exagero, pelo fausto, pela imponência dos espectáculos de efeitos cénicos variados, tais como, recepções, touradas, autos-de-fé, procissões espaventosas, de origem nacional, ópera, música orquestral e vocal, coches monumentais, de influência estrangeira, igrejas de grande riqueza, com talha dourada, mármore, embutidos, mobiliário, relicários e tantas outras alfaias esplendorosas do culto católico...
A expressão artística e literária que se apelidou inicialmente de maneirismo seiscentista é, em Portugal, compatível com um sentimento de instabilidade e desequilíbrio, desencanto e decadência, resultante de condições sociais, políticas e culturais pouco favoráveis: a Inquisição (1540), como órgão de totalitarismo político, e de pressão social, cortando a tradição humanística do nosso Renascimento e a comunicação com a cultura europeia; a Contra-Reforma repressiva (iniciada na Europa com o Concílio de Trento em 1545-63, contra as heterodoxias reformistas), orientada, no Portugal católico, para a “questão judaica”, e dela resultando a intolerância e o obscurantismo da Igreja, uma fé rígida, fanática e formalista, manifesta nos autos-de-fé, no culto exterior, na censura inquisitorial; a Companhia de Jesus detendo o monopólio da educação, impondo o regresso a um estudo escolástico, reforçando a autoridade aristotélica, de pura habilidade conceptual, sem apoio nos valores da razão e do experimentalismo; a situação económica degradada, trazida pela deficiente manipulação das riquezas coloniais e pelo abandono da economia agrária; o domínio espanhol (1580-1640), com a extinção da corte portuguesa, resultante da derrota de Alcácer-Quibir, seguida da derrota do Prior do Crato em Alcântara. Tudo isso já sentido no século anterior, como “a austera, apagada e vil tristeza” da mensagem camoniana.
Na literatura, o artificialismo retórico, com esteriotipos específicos do formalismo barroco, traduz-se, em poesia, chamada gongórica na Península Ibérica, segundo uma atitude sensual, no rebuscamento formal, a que se chamou cultismo, pelo jogo de imagens, palavras e construções, e segundo uma atitude intelectual, no rebuscamento do conceito, como exercício de agudeza do engenho – o conceptismo - caracterizado pelo jogo de conceitos. Sendo essencialmento um exercício de actividade lúdica, que, no dizer de D. Francisco Manuel de Melo, “não exprime a vida mas distrai da vida”, excluindo dela, assim, a preocupação pessoal, a comoção religiosa ou as efusões da emoção pessoal, esta poesia conduz, todavia, a uma grande riqueza e perfeição no discurso em prosa, especialmente na oratória, com Vieira e Bernardes, no poligrafismo com D. Francisco Manuel de Melo.
Embora o século XVIII, seja o século do Iluminismo, do despotismo esclarecido, da crença no progresso da defesa dos direitos naturais – Liberdade, Igualdade – pelos Filósofos Enciclopedistas, a primeira parte do século rege-se, em Portugal, segundo os parâmetros do século anterior, sob o governo de um rei – D. João V – que beneficiando das riquezas obtidas com a colonização e exploração do Brasil, sobretudo, manteve o mesmo ritmo de governação absolutista, monopolista, aristocrática e esbanjadora, traduzida pelo fausto, a licenciosidade, o parasitismo, a repressão do povo, condenado desde sempre, em Portugal, à vileza de uma condição inferior - de servilismo em relação aos poderosos, fanatismo e bruteza em relação aos iguais, iliteracia permanente - por conveniência de uma governação assente na exploração do homem, como animal de carga, e no desrespeito pelo ser humano racional. Para além disso, a Inquisição tornar-se-á o instrumento do poder real para dominar a burguesia capitalista e intelectual, representada pelos cristãos-novos, à qual pertencia grande parte dos Estrangeirados, extorquindo-lhes os bens, e assim apoiar também os interesses económicos e culturais do clero, fechado ao progresso das “Luzes”, e os interesses económicos da aristocracia decadente.
Assim, tais características de uma sociedade de grandes desníveis económicos e sociais são bem traduzidas na narrativa dramática “O JUDEU” (1966) de Bernardo Santareno, cuja acção, situada temporalmente ao longo da primeira metade do século XVIII, se propõe destacar, em paralelo, a situação política e social do século XX salazarista.

Foi no século XVIII que viveu o Judeu António José da Silva, autor de peças teatrais cheias de humor e sátira – especialmente “Guerras do Alecrim e Manjerona” - é sobre esta época que se situa a acção da peça de Bernardo Santareno, “O JUDEU”, onde se ataca o regime de força, que condenou aquele à fogueira – e, dessa forma, em “metáfora temporal”, o regime de força salazarista, da vivência de Santareno.
Ambos, pois, repetimos, seres igualmente corajosos e livres, ao usarem a sua força criativa na denúncia dos erros e opressões sociais, um através da farsa provocadora do riso, outro pela funda ironia saliente nas figuras do cinismo, crueldade, despotismo e vileza que condenaram o primeiro, tão jovem, à fogueira, e se mantiveram, de certa forma, no tempo em que viveu Santareno, que na sua peça desejou demonstrar quanto as aberrações do despotismo podem cercear talentos ou impedir as criações do espírito, se não mesmo, perseguir e aniquilar os Rushdies de todos os tempos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Comentário Furado

Estava a preparar-me para o nosso diálogo sobre o frente-a frente de Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa, ontem na Sic, com Clara de Sousa a orquestrar, mas a minha amiga desprezou:
- Não vi! A que horas foi isso?
Tanto desinteresse emurcheceu-me, não que eu me julgue superior em interesses pátrios:
- Foi depois do noticiário. Pois eu até perdi o Allô, Allô e ainda o Sherlock Holmes, já à conta dos programas críticos seguintes.
Desligou:
- Olhe lá, e aquela da Manuela p’rá rua?
Também dei conta, mas só no final do dia, do reboliço que provocou. Mas a minha amiga gosta dela:
- Eu estou convicta de que ela é daquelas a quem mete raiva tanta ladroeira, tanta pouca vergonha.
- Pois, mas tem muito maus modos, ou demasiado arrogantes e sempre incriminatórios, e isso é pouco jornalístico. Mas o que pensa...
Não pude meter a minha colherada sobre os do frente-a-frente, com a minha amiga vogando noutra onda:
- Há muita gente que vai ficar contente da Manuela ser corrida. Mas os colegas em bloco demitiram-se. Essa é que é a parte bonita da questão.
- Ai foi? Mas não lhes faz falta o emprego?
- Não sei como é que isso vai ficar. Mas os Espanhóis têm sido criticados ao máximo. Como é que se permite que os Espanhóis venham mandar cá?! Já mandam em tanta coisa! Os limões, quase a 1E.80! São espanhóis.
- Mas não há limões nossos?
- Não há quem os apanhe, ou então preferem o salário que lhes deram para não os apanharem.
- O Louçã...
- Outra coisa! Já viu a quantidade de carros que há neste país? E queixamo-nos de sermos pobres?
Alinhei, momentaneamente distraída da minha obsessão:
- Eu ontem perguntei à minha neta que está a estudar em Paris se por lá também há assim tanto automóvel. Respondeu que eles andam mais de metro, de autocarro, não precisam de tanto veículo. Cada família tem um, para passearem. Nós aqui tínhamos muitos carros e muitos telemóveis. Eu lembrei também os magalhães.
- Eu só me pergunto a que horas é que
os Portugueses chegam aos empregos. Duvido que comecem a trabalhar às 9 da manhã. Para mim é uma das grandes causas deste país não andar, a falta de pontualidade. Um país assim não vai lá. Tudo o que é trabalho tinha que ser levado a sério. Trabalham o quê! Porque nós sabemos que nos outros países da Europa o horário é a obrigação número um. E em Portugal é exactamente o contrário. Fizeram autoestradas, mas os carros são a mais. Não fizeram combóios nem metros que cheguem.Fica tudo entupido, engarrafamentos brutais... Não, não podem chegar a horas.
-Pois, mas eu gostava...
- Ainda há bocado ouvi um homem na televisão a falar nas causas, nas soluções. As pessoas sabem! Por exemplo o caso Casa Pia: Há um Tribunal, há juízes, há advogados só para tratarem deste assunto. Já se passaram dez anos. O que é que ele quis dizer? Aquela raça não está interessada. O português mais analfabeto sabe que o Casa Pia não anda, não vai andar. Há direito que a Justiça não queira saber das vítimas? Que deixe caducar? E a gente inda vai votar! Minha nossa! Santa Bárbara!
Decididamente hoje não era o dia do Jerónimo nem do Louçã. Porque a minha amiga ainda falou da Senhora que foi Provedora da Casa Pia e que vai deixar tudo escrito. Ela diz que pode morrer amanhã, mas que deixa tudo escrito, porque sabe tudo. Escreveu tudo para a posteridade. Disse a minha amiga, que o ouviu.
E foi assim que saiu gorado o comentário do frente-a-frente de ontem. Primeiro, porque a minha amiga não assistiu. Segundo, porque não quis saber, profusa noutras informações.
Desta maneira, eu só posso dar o meu ponto de vista, e a garantia de que estiveram ambos muito comportadinhos, nos tempos certos, bem educados, respeitadores, com os dados exactos dos seus bons pensamentos, bem diferentes dos antecessores, tudo numa correcção exemplar, que apeteceu galardoar. Talvez conquistem o galardão, que nós sempre soubemos galardoar segundo o mérito de cada um.