Nessa pieguice que as próprias
universidades amimam. Bem faz ALBERTO GONÇALVES em nos informar, em precisão de dados de
que a sua honestidade mental não prescinde. Por isso o nosso espanto pelo
absurdo estrebucha, na mesma indignação que nele redunda em historiografia e
arte de sátira, não propícia, todavia, à arte de Talma, que requer sentimentos
de outro calibre de nobreza – até mesmo na farsa - tais como a que os dramaturgos
gregos já demonstravam, e de que os nossos também deram prova cabal. Uma sociedade
bem pouco sadia, a destes tempos de uma democracia de pedantismo e bandeirolas
grevistas, como contraponto à pieguice no falhanço eventual das aspirações, por
reles que sejam.
As lágrimas e os legos da esquerda moderna
A estratégia “woke”, substituta da
luta de classes e pensada para a esquerda reinar sobre uma sociedade
infantilizada, acabou a infantilizar a esquerda e a repugnar o resto da
sociedade.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador
OBSERVADOR, 16 nov. 2024, 06:08
Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades, o ser, a confiança e os métodos para lidar com as vitórias eleitorais
de Donald Trump. Há oito
anos, perante a apatia ou o entusiasmo das altas instâncias do Partido
Democrata, milhares de derrotados saíram às ruas de diversas cidades americanas
(e europeias), a fim de exibir descontentamento, berrar slogans, bloquear estradas e arrasar propriedade pública e privada. Em suma, o
que os amotinados pretendiam era apenas “despertar consciências” e rejeitar os
resultados das “presidenciais”, pelo que nada do que aconteceu pode ser
comparado ao ataque à democracia perpetrado pelas dúzias de lunáticos que
invadiram o Capitólio em 2021. A destruição civilizada de incontáveis
automóveis e lojas é uma coisa. Desonrar o gabinete de Nancy Pelosi é outra.
Para o que aqui importa, importa notar que em 2024 não se passou nada de
semelhante. Trump voltou a ganhar e nenhuma das
reacções envolveu motins. A
primeira reacção da Resistência consistiu em gravar vídeos para o TikTok e o
Instagram. Há vídeos com criaturas a chorar, vídeos com criaturas a gritar,
vídeos com criaturas a oferecer um ombro amigo, vídeos com criaturas a rapar o
cabelo, vídeos com criaturas a garantir abstinência sexual, vídeos com
criaturas a jurar abater a tiro os homens brancos que lhes aparecerem no
caminho, vídeos com criaturas a pedir que o Mal caia em cima de todos os
eleitores de Trump, etc. Isto lembra o início das cinco fases do
luto, ou o Modelo de Kübler-Ross, filtrado pelos Monty Python. Ou o
documentário “Titicut Follies” sem filtros.
E continua. A segunda reacção, inspirada pelos que em 2016 fingiam
sair da América, implica fingir que se sai do Twitter, agora X. Funciona
assim: inchado
de solenidade, Fulano escreve, no próprio X, que vai embora do X porque Elon
Musk, o dono da “rede”, é um louco que coordena assombrosos projectos
tecnológicos, um falhado capaz de fundar três ou quatro extraordinárias
empresas, um fascista que defende a liberdade de expressão e, pior, um
descaradíssimo apoiante e “ministro” de Trump. Na
maioria dos casos, a saída de Fulano do X é tão impressionante quanto a sua
entrada: ninguém dá por ela. Em casos ocasionais, do “Guardian” inglês
ao “La Vanguardia” catalão, dois monumentos cuja credibilidade leva a
recordar com saudade o falecido “Jornal do Incrível”, o abandono do X (“abandono”, vírgula: eles limitam-se a dizer que não voltam a
rabiscar “posts”, embora mantenham a página para guardar subscritores e
publicidade) possui certo impacto, sobretudo entre o público que gosta
de combater a “desinformação” com artigos a enaltecer a transsexualidade
infantil e o Hezbollah. Musk, aliás, respondeu ao diário londrino: “Não é
preciso anunciarem a vossa partida. O X não é um aeroporto.” Por cá, a
dra. Ana Gomes também pensa que o X é um aeroporto. A sua falta será sentida,
mas não imagino por quem.
A terceira reacção é a minha
preferida. Sob
o patrocínio de direcções e docentes, uma resma de universidades dos EUA,
incluindo Harvard,
Columbia, Penn e UMass,
resolveram providenciar meios para os alunos angustiados digerirem a próxima
presidência de Trump. Os meninos e as meninas contam com dispensa às aulas,
cães de terapia e “espaços de pesar” – pesar de mágoa, não batatas. E a Escola
de Políticas Públicas McCourt, que fica em Georgetown e em teoria é um
estabelecimento de ensino superior, passou a organizar tardes com legos e
livros para colorir. Inúmeros jornais, revistas e “sites”, a um passo de fugir
do X, desataram a divulgar artigos com “dicas” para lidar com a ansiedade
suscitada por Trump (“Trump blues”, diz, sem surpresas, o “Guardian”). Uma
das “dicas” é: “Não reprimas as emoções: processa-as” (em tribunal?). Também
gosto desta: “Não perdoes aqueles que não votaram” (era cortá-los aos
pedacinhos). E desta: “Canaliza a dor para o envolvimento pró-activo em causas
cívicas” (não foram essas toleimas que os trouxeram aqui?). E esta excede os
píncaros do humor: “Limita as tuas fontes de notícias a instituições
responsáveis, por exemplo a BBC ou o ‘New York Times’” (é pena que a Sic
Notícias não emita em estrangeiro). São centenas e centenas de
recomendações em dezenas e dezenas de publicações, a levantar a suspeita de que
não há gente tão atormentada com o
regresso de Trump quanto os “jornalistas”, leia-se os abundantes
sujeitos e sujeitas que usam o título sem desempenharem a função.
No que toca aos desalentados em geral, o quadro é negro (ou
complicado, que não quero convocar acusações de racismo).
Claro que, de tanto se isolar em fantasias “identitárias”, a esquerda, em ambos
os lados do Atlântico, esqueceu-se das preocupações das pessoas comuns e razoavelmente
sãs que dantes simulava representar. Porém, o tombo é mais fundo: a
esquerda extremou-se a ponto de literalmente se esquecer de como são as pessoas
comuns. E razoavelmente sãs. Afastada dos seus princípios,
enclausurada em delírios académicos, separada do mundo do trabalho e
radicalmente mergulhada nos cultos da vitimização e da censura, a esquerda
tornou-se uma caricatura de si mesma, ou da caricatura que sempre fora. Não é à
toa que muitos espécimes que soluçam no TikTok parecem de facto “cartoons”.
Boa
parte da esquerda actual é um desfile de esquisitices e de esquisitóides,
adultos imberbes e frágeis, histéricos e sensíveis, sem sequer o vigor
antidemocrático que avisava a malta para guinchar insanidades e vandalizar
avenidas. Uma mera manifestação anti-semita ou um circo “climático” esgota-lhes
a energia. Uma vitória de Trump põe-nos em contacto com linhas de prevenção do
suicídio. Ou, nas situações terminais, a colorir bonecos da Hello Kitty e
seguir fancaria de “auto-ajuda”. A estratégia “woke”, substituta
da luta de classes e pensada para a esquerda reinar sobre uma sociedade
infantilizada, acabou a infantilizar a esquerda e a repugnar o resto da
sociedade. O resto permanece maioritário. Quando deixar de o ser, prometo não
me filmar em pranto nem brincar com legos.
COMENTÁRIOS (de 6)
SDC Cruz: Texto digno de um poster. A esquerdalha, de cá e de lá, vai caminhando,
na cegueira da sua agenda woke, para o precipício. Boa viagem. E não
voltem!
António Lamas: Hilariante e muito bom. A propósito. Depois das intervenções em
directo desse grande jornalista chamado Ricardo Costa, que acusou o maléfico X
de ser a origem da vitória dos "maluquinhos", de que é que o senhor
Balsemão está à espera para retirar o Expresso e a SIC desse antro do
Musk?
Nenhum comentário:
Postar um comentário