Sobre um caso decididamente arrumado, mas cuja curiosidade ainda apela ao
discurso, especialmente quando bem formatado, como o de Patrícia
Fernandes.
Interlúdio: sobre dissonância política
Quando Kamala, no seu discurso
de concessão, fala em luta, ficamos na dúvida sobre que luta é essa – tão
importante, mas que disse tão pouco à maioria dos eleitores e, em particular, à
working class.
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 11 nov. 2024, 00:182
1A espiral do silêncio
Ao
longo das últimas décadas temos desenvolvido competências muito apuradas para
detectar e explicar todas as limitações e problemas da democracia liberal. Mas
tendemos, nesse esforço, a esquecer ou menosprezar uma das suas grandes
vantagens: o princípio do voto secreto – que permite, mesmo quando as nossas opiniões
são minoritárias ou consideradas inaceitáveis pela opinião pública dominante,
que, ainda assim, possamos chegar à cabine de voto e exercer livremente a
nossa escolha. Esta prerrogativa fundamental levanta, contudo, dificuldades
aos politólogos que pretendem não só analisar as tendências de voto, como,
acima de tudo, prever essas tendências. Foi por essa razão que a teoria
apresentada por Elisabeth Noelle-Neumann,
em 1974, foi recebida com tanto entusiasmo:
designada como “espiral do silêncio”, esta teoria debruça-se sobre o modo como as
opiniões que estamos dispostos a expressar publicamente dependem da nossa percepção
da opinião pública dominante. Assim, o facto de uma ideia ser maioritariamente percepcionada como uma
opinião errada ou inaceitável levaria a que as pessoas silenciassem as suas
posições ou limitassem a sua expressão a grupos mais pequenos e concordantes.
A conclusão tem um importante peso em contexto democrático: esse
silenciamento conduziria a que opiniões dominantes na opinião pública pareçam
consensuais ou maioritárias, quando, na verdade, podem coexistir com maiorias
silenciosas ou várias minorias silenciosas. A teoria da espiral do silêncio enquadra-se no estudo da opinião pública
e convoca contributos da psicologia social, na medida em que tenderíamos a
adaptar o nosso comportamento com medo de sermos socialmente excluídos.
Mas ela oferece um contributo particularmente valioso para a ciência política
ao chamar a atenção para o facto de haver zonas de silêncio que não são
possíveis de cobrir pela análise política da opinião pública ou pelas
sondagens. E estas zonas de silêncio, voluntárias, podem dar origem a resultados eleitorais inesperados
por não ter sido possível detectar essas posições.
A
noção revelou-se, nessa medida, útil para compreender a surpresa com que foi
recebida a vitória de Donald Trump, em 2016, e foi aplicada em França, nas
últimas décadas, a propósito da Front National: perante uma sondagem
cara-a-cara ou por telefone, as pessoas teriam vergonha de reconhecer o voto em
Trump ou Le Pen, mas, uma vez na cabine de voto, valeria o princípio de que “what
happens in the booth, stays in the booth”.
2O fracasso democrata
Foi, assim, curioso que apoiantes de Kamala Harris tivessem escolhido este princípio de discrição
eleitoral para apelar ao voto no Partido Democrata nas recentes eleições. Os dois
realizadores que compõem a equipa GRAiNEY Pictures trabalharam
com os dinamizadores da plataforma Vote Common Good, direccionada
para o voto católico e evangélico, e convidaram duas estrelas de Hollywood
para gravar a voz dos anúncios: Julia Roberts, com um
apelo ao voto feminino; e George Clooney, com um
apelo ao voto masculino.
De acordo com os realizadores, o objectivo era chegar às
comunidades evangélicas, onde a pressão social do grupo levaria os seus membros
a votar no Partido Republicano, introduzindo
a mensagem que a campanha de Kamala lançou desde o início: esta era uma corrida
contra um candidato que ameaça as mulheres, pelo que os eleitores se deveriam
mobilizar por esta causa fracturante e identitária.
Os anúncios tiveram um forte impacto
mediático, mas a sua relevância
encontra-se no facto de eles simbolizarem o fracasso democrata: o fracasso de
as elites culturais não compreenderem como este tipo de mensagem se encontra
coberto pelo paternalismo e arrogância elitistas que têm empurrado o eleitorado
para Donald Trump.
Os últimos dias, novamente marcados pela
incompreensão do que aconteceu, têm exemplificado de tal forma esse fracasso
que levaram Bari Weiss e Oliver Wiseman a escrever directamente aos seus
colegas jornalistas e “democratas”:
“não se é bem-sucedido numa eleição chamando as pessoas comuns de
racistas, sexistas ou estúpidas. As eleições ganham-se ouvindo-as. E a nossa
elite mediática meteu a cabeça na areia. Mais uma vez. Parecem pensar que se
continuarem a chamar aos norte-americanos bigots selvagens, eles
acabarão por perceber a mensagem.”
Pensemos na reacção já célebre da comentadora
Joy Reid que, depois de ter considerado que Kamala não foi
eleita por ser mulher e negra (um argumento fácil, mas impossível de provar),
afirmou que
“esta foi realmente uma campanha histórica e
sem falhas… A Queen Latifah nunca apoia ninguém e veio a público e apoiou-a. Ela
tinha todas as vozes de celebridades proeminentes. (…) Não se podia ter feito
uma campanha melhor em tão curto espaço de tempo.”
Sim, eu também tive de pesquisar quem era essa Queen Latifah. Mas é
mais difícil encontrar resposta para a questão de saber em que mundo paralelo
vivem estas pessoas.
3A dissonância política
Muito se irá dizer e escrever para
justificar os resultados da recente eleição e o facto de, afinal, não ter sido
especialmente renhida nem terem sido necessários vários dias para se declarar a
vitória. Mas um dos factores mais
relevantes é esta dissonância política das elites democratas, que levou a equipa eleitoral de Kamala a
considerar que chamar, todos os dias, estrelas da música e do cinema faria a
diferença – quando elas representam precisamente o afastamento do
Partido Democrata face ao mundo das pessoas comuns.
Na verdade, essas pessoas, apesar de influenciarem
desproporcionalmente a opinião pública norte-americana, não representam as
preocupações da maioria da população: não sentem a subida dos preços com o
mesmo impacto, não têm de fazer contas para gerir o salário até ao final do
mês, não têm problemas com arrendamento, acesso a hospitais e boas escolas – e,
acima de tudo, não sentem a ausência de esperança num futuro melhor.
A convicção democrata de que se podiam apresentar como underdogs é
nesse sentido risível: os democratas têm ao seu lado as elites académicas e
culturais e, em grande medida, também as elites tecnológicas e económicas. E na
sua deriva de radicalismo cultural nunca poderão representar os
verdadeiros underdogs. Por tudo isto, quando Kamala, no seu discurso de
concessão, fala em luta, ficamos na dúvida sobre que luta é essa – tão
importante, mas que disse tão pouco à maioria dos eleitores norte-americanos e,
em particular, à working class.
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COMENTÁRIOS
José B Dias: ... em que
mundo paralelo vivem estas pessoas. Vivem nos ecrãs das diversas televisões,
nos canais de rádio, nos filmes de Hollywood, nos palcos e nos jornais
...
Paulo Silva: A luta da Kabala é a guerra cultural das identidades -
com classes ou sem classes, porque o proletariado já não é o que era… ou que
nunca foi. Num desabafo em jeito de lamento dizia, numa aula, um académico
associado à nova esquerda, que as classes trabalhadoras eram profundamente
conservadoras.
Sobre um caso decididamente arrumado, mas cuja
curiosidade ainda apela ao discurso, quando bem feito.
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