sábado, 9 de novembro de 2024

Se já Sófocles

 

Descreveu o homem numa tragédia como ANTÍGONA, de forma tão sábia, que as vozes do CORO exprimem assim: “Entre tantas maravilhas do mundo, a grande maravilha é o homem”, considerando-o “Rico duma inteligência incrivelmente fecunda” não admira que cerca de dois mil e quinhentos anos depois, um Alberto Gonçalves, entre tantos outros génios de argúcia crítica, que também foram surgindo aqui e ali – em meio, é certo, de seres menos favorecidos de génio - descreva uma sociedade de forma tão rigorosamente expressiva através de um sentido de humor bem sagaz, que os acasos dramáticos da história mundana actual lhe mereceram. Sim, a grande maravilha é o HOMEM.

Os lesados de Trump: a sequela

“Resistir”, disse Kamala no discurso de despedida. E “resistir”, repetem os seus desconsolados acólitos. “Resistir”. A sério?

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 09 nov. 2024, 01:2816

I. A culpa da derrota

A culpa foi de Joe Biden, que desistiu tarde e só quando já era impossível esconder a demência que toda a gente via há anos e alguns apenas admitiram dez minutos antes.

A culpa foi do Partido Democrata, que não preparou devidamente a sucessão de Biden como desde anteontem era óbvio que tinha de preparar.

A culpa foi de Kamala Harris, um embaraço ambulante excepto durante o período, de 21 de Julho a 6 de Novembro, em que se decretou o portentoso brilhantismo da senhora.

A culpa foi dos homens, uma cáfila desordenada que votou no candidato que quis e não na candidata que sujeitos esclarecidos, maioritariamente homens, recomendaram.

A culpa foi dos homens brancos, que ao contrário do que os especialistas, maioritariamente homens brancos, gostariam, existem.

A culpa foi dos homens negros, que descuraram o saudável e ancestral paternalismo e preferiram os republicanos mais do que é costume.

A culpa foi dos “latinos”, que são masoquistas ou surdos e não ouviram multidões aos berros a avisá-los de que vão ser deportados em massa.

A culpa foi dos índios, que são reaccionários e levam certos progressistas a secretamente lamentar que não estivessem extintos em 1890.

A culpa foi das mulheres, que em larga medida ignoraram os alertas – a cargo de peritos que acreditam que os homens menstruam – acerca da opressão prestes a cair em cima delas.

A culpa foi dos jovens, dado que, afinal, a ex-geração-mais-informada-da-História é estúpida a ponto de questionar os clichés retóricos que a tornavam a geração mais informada da História.

A culpa foi dos chalupas e esquisitos que vêem com desagrado as terapias hormonais e as mutilações genitais em menores de idade.

A culpa foi do legislador, que não proíbe o Twitter conforme defendem os amigos da liberdade de expressão.

A culpa foi das autoridades, que não deportaram Elon Musk a tempo conforme defendem os simpatizantes da imigração desenfreada.

A culpa foi de um sistema de representação inaceitável e de uma Constituição que é sagrada porém anacrónica, onde não se substitui o colégio eleitoral pelo voto popular e não se erradica o voto popular sempre que este não agrada.

A culpa foi da exigência de um cartão de identificação nas urnas, obrigatoriedade racista inexistente em quase todos os estados em que o anti-racismo venceu.

A culpa foi das empresas de sondagens, que ao longo de meses leram impecavelmente a realidade até a noite eleitoral mostrar uma realidade diferente.

A culpa foi dos “snipers” patriotas que atentaram contra Trump, por padecerem de incompetência e não frequentarem as escolas de tiro que outros patriotas querem abolir.

A culpa foi dos eleitores desatentos aos conselhos políticos fornecidos por reputadíssimos artistas de variedades, os quais agora se sentem obrigados a repetir o prometido em 2016 e fingir que fogem do país.

A culpa foi dos eleitores analfabetos que não lêem o jornalismo superior e isento do “New York Times”, do “Washington Post” e do “Público”.

A culpa foi dos eleitores boçais, que não ocupam os serões a consumir a CNN, a NBC e a Sic Notícias.

A culpa foi dos americanos, que sabidamente são ignorantes e se entretêm a brincar aos foguetões espaciais e à Inteligência Artificial em vez de, como a moderna e sofisticada Europa, inventarem maneira de prender as tampinhas às garrafas.

II. Quem ganhou

Quem ganhou as eleições americanas foram os deploráveis, os extremistas, os racistas, os privilegiados (bilionários dos negócios e vedetas de Hollywood à parte), o heteropatriarcado, os “negacionistas” disto e daquilo (os negacionistas da biologia não contam), os brancos, os castanhos, os misóginos (salvo os que conviviam com o sr. Weinstein), os tarados (salvo os que conviviam com o sr. Epstein), os pedófilos (salvo os que conviviam com o sr. Diddy), os brutos que não têm dentes, os brutos que não vão à universidade (testemunhar aulas sobre interseccionalidade e participar em manifestações a favor da “libertação” da “Palestina”), o ódio, as trevas, as alterações climáticas, o autoritarismo, os hispânicos mal-agradecidos, o esclavagismo (descontados os donos dos votos dos negros), o fascismo, o Sporting (que meteu quatro golos), a reencarnação de Hitler, a xenofobia, a homofobia, a transfobia e, acima de tudo, a coulrofobia (medo de palhaços).

III. Quem perdeu

Quem perdeu foram a democracia, a justiça, o sonho, a inteligência, a bondade, a generosidade, o altruísmo, a alegria, o riso, Kamala, o riso de Kamala, a decência, os dentistas, a humanidade, a comunidade LGBT+70 letrinhas, as pessoas equilibradas que choram a derrota em “directos” televisivos ou em vídeos no TikTok, o futuro, a luz, a esperança, os carros eléctricos (fora os da marca cujo nome não se pronuncia), a paz, a harmonia, o Manchester City, a solidariedade, a compaixão, a América, a Europa, o planeta, pelo menos cinco sistemas solares e um pedaço jeitoso da galáxia.

IV. O que fazer

Do que vejo por lá, e por cá, parece que o novo lema dos derrotados é “resistir”. “Resistir”, disse Kamala no discurso de despedida. E “resistir”, repetem os seus desconsolados acólitos. “Resistir”. A sério? Seria bom que resistissem a julgar-se iluminados. Seria bom que resistissem a sentir-se habilitados a ensinar alguém. Seria bom que resistissem a depreciar os que não pensam o que eles pensam. Seria bom que resistissem a avaliar a vida dos semelhantes pela vidinha que conhecem. Seria bom que resistissem à arrogância e à prepotência. Seria bom que resistissem à tentação de mandar em nós. Seria bom que resistissem ao tique de se achar democratas enquanto abominam a liberdade alheia. Seria bom que resistissem à propensão para fazer figuras intelectualmente ridículas e moralmente obscenas. Mas eles não resistem.

DONALD TRUMP     ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA     AMÉRICA     MUNDO     EXTREMISMO     SOCIEDADE     JORNALISMO 

COMENTÁRIOS (de 16)

Jorge Espinha: 5 estrelas                Manuel Martins: Em minha opinião,  se a derrota de Kamala é um sinal claro da crescente repulsa dos cidadãos à política woke, da falta de isenção da comunicação social, a vitória de Trump parece um sinal de desespero de quem não tem alternativa.  Faz-me lembrar o Brasil quando teve de escolher entre Lula e Bolsonaro...                  Luis Silva: Trump é menos asqueroso, mas nada vai conseguir. Republicanos e Liberais são as 2 asas do mesmo pássaro que se chama sionismo internacional. América nunca mais vai ser Great Again. O mundo vai ser multipolar e o Ocidente vai continuar a sua decadência civilizacional.                   Antonio Marques Mendes:  Perdeu o extremismo woke e anti-semita. Ganhou o extremismo populista e proto fascista. Esta alternância de extremismo não pressagia nada de bom para a América e o mundo ocidental.                  Álvaro Pereira: A parte das tampinhas das garrafas, mostra bem onde a Europa anda a perder tempo e dinheiro.               Paulo Machado: Muito Bom. Um belíssimo resumo do que apesar de parecer piada,  ser o que é dito por tantos comentadores.              Isabel Almeida: Muito bom! Gostei em particular do parágrafo das tampinhas: na Europa estamos 10 passos atrás dos EUA, e andamos a discutir o sexo dos anjos com a guerra e a invasão à porta. Onde é que já vi isto?                 Luis Silva > Isabel Almeida: A guerra e a invasão onde?              José Ramos: Que brilhante análise e que esperado que isto era! Alberto Gonçalves faz um texto aparentemente minimalista que está a anos-luz de ser minimalista. Minimalistas, mesmo minimalistas, são os cérebros dos "comentadores" desde o dr. Costa do Expresso ao dr. Sousa Tavares, da dra. Ferreira Alves à dra. Afonso do Segundo Olhar, da dra. Leitão à dra. Moreira passando pela dra. Estrela. Tenho passado estes últimos dias em estado de profunda náusea. Mas não, a culpa não é do Trump.                  Antonio Rodrigues: Certeiro, uma síntese brilhante do que se passou e passa nas eleições Americanas.               Pedro CF: Muito bem ! Ao contrário do Alberto nunca tive dúvidas da vitória. Uma vergonha os nossos comentadores / paineleiros especialmente aqueles que se dizem de direita e até católicos rendidos ao wokismo, ao politicamente correcto e que se deixaram ir nas mentiras do mainstream media e ainda as reforçaram. Que azia e que triste figura que desmascarou a falta de valores e convicções.                Diogo Pacheco de Amorim: Brilhante síntese do circo a que temos vindo a assistir                  José B Dias: Não resistem mesmo ...                Eduardo Cunha: Muito bom...                 F. Mendes; Brilhante! Parabéns ao cronista. Apesar de "só" concordar com, para aí, 97,62% do escrito no artigo, julgo quase impossível ser mais corrosivo e certeiro na listagem dos malefícios, perversões e danos provocados por wokismos e outros disparates sortidos. Se os partidos tradicionais e democráticos tivessem tido a coragem de denunciar estas distorções dos valores ocidentais, das leis da biologia e da lógica, desconfio que o Trump (a meu ver, um ser abominável) não teria ganho. Com um candidato democrata moderado, e lançado a tempo na corrida, teria sido, eventualmente, possível evitar este desfecho eleitoral (incluindo as maiorias republicanas  nas duas Câmaras do Congresso). Assim, vamos ter que viver com esta escolha dos Americanos, democrática e infelizmente previsível.                   Goncalo Prospero: Excelente!

Nenhum comentário: