Sobre a falta de isenção na comunicação Social, nestes tempos de
celeuma. Texto de JOSÉ MANUEL FERNANDES.
O jornalismo está a suicidar-se. E isso
é grave para a democracia
A razão de ser do jornalismo é a
formação de uma cidadania bem informada, com confiança na informação que
recebe. É essa confiança que muito do actual jornalismo está a comprometer,
como vimos nos EUA
JOSÉ MANUEL FERNANDES Publisher e
colunista do Observador
OBSERVADOR, 11 nov. 2024, 00:2011
Aconteceu ter de coligir uns dados sobre
a evolução da confiança dos cidadãos dos Estados Unidos nos órgãos de
informação tradicionais exactamente no dia em que estava a decorrer a votação
para a Casa Branca. Havia um
dado que eu já conhecia: neste momento a imprensa norte-americana (jornais,
televisões e rádios) é a instituição pública de que os cidadãos mais desconfiam. O seu
prestígio bateu literalmente no fundo, desceu mesmo abaixo do Congresso,
habitualmente a instituição mais mal vista. Mas havia um outro dado que eu não
conhecia: só uma vez no passado tinham
estes índices de confiança no jornalismo descido tão baixo, e esse ano tinha
sido 2016. Numa altura em que poucos se atreviam, com seriedade, a
prever o resultado da eleição, naquele dia das sondagens 50/50, interroguei-me
sobre se este novo mínimo de confiança nos órgãos de informação tradicionais
não seria um indicador de que poderia vir aí uma surpresa, como a de 2016.
Escuso
de vos descrever o que aconteceu nas horas seguintes, e o que continua a
acontecer por estes dias quando uma parte do “comentariato” e outra boa parte
dos que pontuam nas redacções continuam a ter dificuldade em sequer tentar
compreender porque é que Trump ganhou, sobretudo em tentar compreender porque é
que há tanta gente que não só pensa de forma diferente, como vota de forma
diferente. Ou sequer em imaginar que isso pode suceder, entre
outros motivos, porque essa gente vive de forma diferente, tem outras
inquietações e outras urgências.
Há oito anos, quando a grande
comunicação social norte-americana ficou em estado de choque por não ter sequer
previsto a hipótese de Trump ser eleito, escreveu-se imenso sobre a necessidade
de os jornalistas saírem da sua “bolha” e de procurarem descer às realidades
daquelas partes da América que tinham empobrecido e se sentiam esquecidas e
marginalizadas – essa América que dera a vitória a Trump. Devo dizer
que sucedeu exactamente o contrário. Quem lê, como eu leio quase diariamente, a
imprensa dos Estados Unidos percebeu que em vez de procurarem sair da sua “bolha”,
os jornalistas encarniçaram-se antes em tomar sempre o partido anti-Trump,
fosse qual fosse o debate nacional em curso. Houve
excepções, há sempre excepções, mas ainda nesta campanha eleitoral era possível
tropeçar em artigos, publicados pelas elitistas revistas de Nova Iorque, onde
se tratava de “explicar”, ridicularizando, a forma como os eleitores “pouco
instruídos” votavam.
Infelizmente em Portugal não temos
estudos que nos permitam perceber o grau de confiança nos nossos órgãos de
informação, infelizmente só sabemos
que a circulação dos jornais em papel continua a cair vertiginosamente e que a
audiência das televisões tradicionais também está a dar trambolhões. Tal como sabemos que a maioria, eu diria
mesmo quase a totalidade, das empresas de comunicação social atravessam
dificuldades financeiras e que os profissionais deste sector ganham, por regra,
bastante mal. Disso tudo temos conhecimento porque não faltam por aí muitas
queixas (algumas legítimas) e algum choradinho (esse mais dispensável, para ser
generoso no epíteto).
Em contrapartida, o que nós sabemos também dos Estados Unidos é que
a confiança nos órgãos de informação não é a mesma entre democratas e
republicanos: entre os democratas ainda se aguenta acima dos 50%, nos
republicanos caiu para cerca de 10%. Isto é um sinal claro sobre o porquê da
perda de confiança nos media tradicionais: eles são vistos como pouco ou nada
objectivos, ou dito de uma forma mais dura, como sendo tendenciosos e muito,
mas mesmo muito inclinados para a esquerda, para o lado dos democratas.
Uma
vez que está fresca a memória de quem foi seguindo a cobertura das eleições
americanas nos nossos órgãos de informação, pergunto-me que leitura
farão os leitores, ouvintes, espectadores do que lhe foram dizendo nestas
últimas semanas ou meses? Quantos repetiram, e repetiram, e repetiram que uma
vitória de Trump seria praticamente impossível, isto desde que Biden se retirou
da corrida? Quantos foram dando conta das motivações dos que iriam votar Trump
e quantos só se preocuparam em repetir que a democracia estava em perigo, o
principal argumento da campanha de Harris?
E já que a memória também
continua fresca sobre alguns acontecimentos políticos em Portugal, quantos
jornalistas se tentaram colocar nos sapatos dos habitantes dos bairros sociais
de Loures, nos sapatos de uma daquelas famílias a quem incendiaram e destruíram
o carro, ou que viram aquele homem a arder dentro de um autocarro, e procuraram
imaginar como essas pessoas se sentem, ou sentirão, por serem obrigadas a viver
em zonas onde há vandalismos contra os quais a polícia parece impotente?
O clamor um pouco por todo o lado – e
neste caso também no interior do Partido Socialista – foi logo o de necessitamos
de agir “com humanismo”, daí decorrendo a necessidade de condenar de imediato
as declarações do autarca socialista de Loures (não fosse o homem socialista e creio que o clamor seria ainda
maior).
Não vou neste texto discutir a bondade
ou o acerto dessas declarações, vou apenas chamar a atenção para que uma das
obrigações dos jornalistas é não serem apenas pés de microfone que andam a
saltitar de protagonista político em protagonista político a colher
declarações, e que, em vez disso, devem procurar perceber, e depois explicar ao
seu público, o porquê de uma declaração aparentemente tão surpreendente.
Imagino
que haverá muito poucos jornalistas a habitar em bairros sociais, mesmo sendo
baixos os salários nesta minha profissão. Sendo assim, imaginem que não estão
num bairro social, administrado por uma autarquia e subsidiado com dinheiro dos
contribuintes, mas sim no vosso prédio, no vosso bairro mais ou menos pacato,
no vosso espaço onde as coisas se vão resolvendo em reuniões de condóminos ou
em negociações com os senhorios. E agora imaginem que um dos vossos vizinhos
incendiava o carro que tinham estacionado na rua, um carro que tanto vos tinha
custado comprado em segunda ou terceira mão. E que antes disso esse vizinho
tinha dado cabo do elevador. Ou então danificado o sistema de recolha de lixo.
O que fariam? Dar-lhe-iam uma palmadinha nas costas a próxima vez que se
cruzassem com ele nas escadas, citar-lhe-iam a Constituição acrescentando que em
Portugal não há penas acessórias, ou em vez disso tentariam que ele deixasse de
ser vosso vizinho?
Não, nada disso. É mais fácil apanhar
o comboio onde todos estão a entrar e dizer que estamos todos a ser infectados
pelo discurso do Chega, sem perceber, ou sem querer perceber, que é exactamente
assim que se vai fazendo o sucesso do Chega.
Eu podia continuar a multiplicar exemplos,
uns mais políticos, outros mais ligados a modas culturais, outros sobre como
certos estereótipos infectaram redacções inteiras e de como a ideia de que o
jornalista é independente (e deve ser) tem cedido espaço ao jornalismo quase
activista (nos Estados Unidos foi mesmo isso que aconteceu, com os resultados
que estão à vista). Mas não vou continuar a multiplicar pequenas histórias,
vou apenas sublinhar o que me parece essencial: quando enchemos a
boca a dizer que as redes sociais estão a matar a democracia devíamos estar bem
conscientes que aquilo que pode matar, ou pelo menos comprometer gravemente a
democracia, é o suicídio do jornalismo, um suicídio a que estamos a assistir em
directo e ao vivo.
Nós não fazemos jornalismo para nossa
auto-satisfação ou para estarmos de bem com os nossos pares – nós fazemos jornalismo, ou devíamos fazer
jornalismo, para que exista uma cidadania bem informada e com confiança na
informação que recebe. É essa confiança que muito deste jornalismo enviesado
está a comprometer, porventura irremediavelmente.
ELEIÇÕES EUA ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO JORNALISMO MEDIA SOCIEDADE COMUNICAÇÃO SOCIAL
COMENTÁRIOS (DE 11)
A. Samora:Não, José
Manuel, não! Deixem-se de “missões” e de construir cidadanias. Passem as
notícias com o mínimo de “gordura”. Escrevam também um ou outro artigo com a
vossa opinião. E deixem a “cidadania” connosco. Estamos fartos de educadores. Maria Ribeiro: Comunicação social ACORDEM. As
pessoas informadas que conseguem pensar pela própria cabeça estão fartas de
wokismos histéricos, dos fretes que a CS faz à esquerdalha. Nunca imaginei ver
o Editorial do Expresso tão rasca parece a voz do avante, mais polidinho. Até o
Observador já vai indo na onda infelizmente parece que a 'corrente' é forte
demais. Francisco Figueiredo: Devia começar por dizer isso a
alguns dos seus jornalistas. observador
censurado: Leu o jornal Observador antes das eleições legislativas de Março, há cerca
de 8 meses? Não reparou que: O Observador estava a violentar os leitores ao
distribuir panfletos de um partido, o Partido Socialista Dois (PSD)? O
Observador "informou" os leitores que um líder partidário
"perdeu" todos os debates televisivos? Quer fazer alguma coisa pelo
jornalismo? Comece pela sua casa. Chame ao seu "gabinete" os srs.
Miguel Pinheiro, Rui Antunes e Miguel Carrapatoso e dê-lhes o prazo dum mês
para aprenderem a escrever um texto jornalístico. Passado um mês, se eles
continuarem a emitir opiniões nos textos jornalísticos, despeça-os com justa
causa pois estão a contaminar os restantes colegas. Pertinaz: Permita-me partilhar que como
cidadão tenho grande dificuldade em identificar jornalistas… Aqui o que percepciono
são activistas com agendas políticas próprias ou “patrocinadas” por terceiros,
mais ou menos identificáveis… é uma pouca vergonha… A esperança é que
paulatinamente essas empresas de comunicação social vão falindo, num processo
de selecção natural…!!!
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