Fuit. Est.
E a leitura serena e corajosa dos
acontecimentos, com alguns ressaibos de mordacidade sem zanga. De uma exaustiva
empenhada amante do seu país: MARIA JOÃO AVILLEZ, a quem se fica grato por assim ser.
A ideia, os protagonistas e aquele... eu
estive lá
São 16 protagonistas de 50 anos de
democracia, 16 testemunhas empenhadas que Maria João Avillez entrevistou para o
podcast do Observador "Eu Estive Lá" e agora foram reunidas em livro.
Pré-publicação.
MARIA JOÃO
AVILLEZ, Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 20 nov. 2024, 00:227
1Cinquenta anos? Já? Mas foi ontem…
Vivi-os todos e não foi como se nada fosse. Não se fica incólume a ter morado
em múltiplos pontos de observação – alguns excelentes, Expresso à cabeça; nem
indiferente, após ter testemunhado ao vivo, em directo e sem intervalo, a
passagem pelo país, de cinco décadas, onde pouco ficou como era, a não ser a nossa
portuguesa forma de ser. Cinco décadas, vendo, ouvindo, escrevendo, debatendo,
sobre elas. Um privilégio, claro, e antes do mais. A seguir, uma
responsabilidade e cinquenta anos depois, uma exigência: contá-los.
2Contá-los. Mas como, partindo de quê e de
onde, tão diversos são os olhares, opostas as interpretações, dissonantes as
narrativas? Partindo de mim própria, concluí. Contar e muito provavelmente,
divergindo eu também das narrativas oficiais, oficiosas, ou nem uma coisa, nem
outra. Discordando com intenção e propósito: nem tudo o que continuadamente venho a ouvir há meio século está
conforme ao que julgo ter testemunhado, sabido, vivido no país. Melhor
assim. Parecia-me um bom ponto de partida ser uma testemunha com assinatura. E
depois tratar-se-ia do “como fazer” e sabe Deus que há poucas coisas tão delicadas quanto escolher – alguém, um modelo, um
caminho, uma navegação.
3Trapézio sem rede mas a empreitada era
sedutora: eleger – o que é outra forma de escolher – alguns dos momentos mais
decisivos destas cinco décadas – da liberdade de Abril, à revolução, do combate
pelo estado de Estado de Direito à democracia plena. O país numa novíssima
configuração política, hoje tida e assumida como uma democracia amadurecida.
Mas porventura ainda não inteiramente amadurecida.
O meu objectivo tinha de ser – e foi
– o de poder apresentar uma visão tanto quanto possível rigorosa e detalhada do
que foi a caminhada do país – ou enfim, parte dela – ao longo dos últimos
cinquenta anos.
Maria João Avillez com Vasco Lourenço no
“Verão Quente” de 1975
E por uma dessas coincidências em que
Deus, a vida, o acaso – acho que nenhum deles – podem ser pródigos, um filho atirou-me um dia
da primavera de 2023 com uma pergunta inesperada: “mas quando é que a mãe começa a fazer podcasts?” Subentendido:
como o resto do mundo…?
Só me faltaria juntar esta espécie de
inopinado vexame (andar miseravelmente a perder comboios informáticos de grande
velocidade) ao estado de “reflexão” sobre o “cinquentenário”, para me atrapalhar.
Também durou pouco: e porque não
justamente esse mesmo “modus faciendi”… um
cinquentenário sob a forma de podcast?
Não que lhe conhecesse os segredos ou a
técnica mas a intuição acendeu por mim a luz verde: assim seria. Correspondendo
– e de imediato e com simpatia, nunca será demais dizê-lo – o Observador
acolheria a ideia, a autoria e a produção: melhor era impossível.
4Etapa seguinte, os protagonistas.
Metendo mãos à obra na procura dos interlocutores certos, sabendo de antemão
que a tarefa seria difícil para além de sempre subjectiva – o que é um
interlocutor “certo”? – e mesmo assim nunca desistindo de os encontrar. Um leque de “alguéns” dotados da
capacidade de uma “viagem” com memória: lembrando, contextualizando, analisando.
Retendo os factos cuja alteração da sua ordem vigente até então, de tão vital,
reclamasse o espaço e o cuidado que inteiramente mereciam: de um dia de Abril de 1974 ao fim do Império; do poder
político-militar revolucionário à transição para um regime democrático
civilista com a eleição presidencial de Mário Soares; da entrada na CEE, à
troca do escudo pelo euro; da aprendizagem das regras da democracia e dos seus
jogos partidários, à liberdade de expressão em novos títulos e écrans.
Da passagem do Portugal colonial de
ontem para a cansada, recuada, democracia europeia de hoje.
5Uma longa caminhada que
exigiria o registo da luz tanto quanto o tracejado da sombra. Retendo
progressos sociais consideráveis; índices reconfortantes de desenvolvimento;
sólidos avanços em diversas áreas; confederações, sindicatos, associações,
agora com estatuto de parceiros. Governos de pequena, média ou longa duração
mas democraticamente escolhidos; grandes líderes políticos, portadores alguns
deles, do grau de fundadores da democracia; grandes combates partidários; actos
eleitorais desaguando por vezes em inesperadas maiorias absolutas ou inéditas
estreias de maiorias parlamentares.
No “côté
ombre” da cinquentenária caminhada, a
pulverização da economia em 1975 e os seus efeitos de longa duração. Apesar das privatizações ocorridas na
década cavaquista e no início do consulado de António Guterres o país conheceu
três pedidos de ajuda externa financeira; dívida omnipresente; crescimento
económico aos solavancos, mas sempre modesto; produtividade preguiçosa; desamor
pela criação de riqueza; empresariado olhado ao viés há meio século. E nesta
mesmíssima área económica – financeira relembrem-se – e poderiam ficar
esquecidos? – os milhões e milhões
de fundos, subsídios, empréstimos, ajudas, despejados sobre a pátria, quase
sempre mais mal utilizados que bem empregues. Como uma fatalidade e não – como
foi – uma irresponsabilidade.
Cinquenta anos que nunca conheceram uma linha recta e poderia ter
sido de outra maneira? – mas avanços, recuos, esperanças, desesperanças. A
desesperança pode por exemplo ser esta que é verdadeira: Portugal
é hoje um país menos ambicioso do que merecia, mais envelhecido do que devia,
de muito menor riqueza do que o necessário. E
a chaga da emigração jovem e de uma natalidade que aumenta graças à imigração,
impõem-nos uma constatação, dolorosamente indisfarçável: um jovem não escolhe
nem prefere hoje trabalhar nem formar família em Portugal.
Quanta a esperança resumo-a da maneira
que consigo:
E no entanto… nove séculos depois, cá
estamos.
Foto: Com
Francisco Sá Carneiro, numa campanha eleitoral
6Os protagonistas sim,
voltando a eles. Para,
diante de um gravador e uma câmara de vídeo, dialogar comigo sobre aquilo que
de tão forte, diferente ou nunca praticado, formatou outro regime: mudando a natureza
institucional, política, económica, social de Portugal, e as suas formas de
vida – conhecimentos, progressos, descobertas, ambições, hábitos,
possibilidades, costumes. E por sobre isso tudo, antes disso tudo, a
natureza do próprio país: um Portugal imperial overseas, trocava o seu lugar histórico por uma via europeia
através de uma cadeira com o seu nome, num poderoso painel de outros países da
Europa.
Mas naturalmente que também me competia
atender – o que vim a fazer – à passagem do tempo e das suas circunstâncias
sobre outras geografias. E a essa porventura ainda indefinível estranheza que
nos trouxe o século XXI: onde, atónitos e aflitos, descobríamos que o que
julgávamos conhecer de perto se tornava afinal irreconhecível e que a
imprevisibilidade passaria a ser um dado essencial.
Olhando para trás e de relance, o
11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos; a crise económica mundial, de 2008;
a pandemia de 2020; Fevereiro de 2022, na Ucrânia; 7 de Outubro de 2023, em
Israel. O mundo como ele está, visto daqui.
7Tudo isto me ia conduzindo naturalmente
à descoberta de protagonista ou co-protagonistas; de intervenientes directos ou
testemunhas muito próximas de alguns momentos desta história tão recente. Digo
“alguns” intencionalmente: para muitos não seriam estes, para outros talvez até
nenhum deles. São os meus.
Não foi porém fácil. No trajecto que me
trouxe a este livro –.e nunca será demais agradecer a LeYa, o convite da
passagem do momento efémero de um podcast para a substância de um livro – a
procura dos meus interlocutores, consistiu a mais delicada das etapas.
Reclamou-me demora, conheceu hesitações, exigiu seriedade intelectual, pediu-me
delicadeza. Mas escolher é isto: um risco.
A todos eles comecei por mandar um
mail – obviamente o mesmo para todos – explicando e explicando-me. Para que
compreendessem o meu objectivo e o pudessem ponderar sem a minha presença ou a
minha voz ao telefone.
E depois, aconteceu uma coisa que
ainda hoje me parece extraordinária: todos me disseram que sim, todos foram
primeiras escolhas. Meio caminho andado.
Os protagonistas
1Começando pelo princípio como começam as
boas histórias, qual seria o “bom” princípio desta? Portugal não começou numa
primavera do século passado. Acudiu-me o período “Caetanista” como
interessante ponto de partida. Se o país se desenvolvia com Marcelo Caetano e
conhecera de início um arremedo de liberalização que a muitos convencera, os
sinais vermelhos que se iam acendendo a um ritmo que exigia atenção, mostravam
que o que estava, não ia durar. Pedi a João Amaral, grande amigo meu e
íntimo amigo de há muito de Marcelo Rebelo de Sousa, que o “sondasse”: este projecto “viveria” da
excelência dos viajantes desse tempo. Marcelo, filho do regime, vivera esses
anos por dentro, conhecera intimamente alguns dos seus personagens, tivera
intervenção cívica: não quereria ser ele o meu primeiro viajante? Ocupando-se
do “antes” que o mesmo é dizer, abrindo a porta do 25 de Abril de 1974.
Ligou-me: queria sim. Vertiginoso: e
quando, e onde, e como, e para quê?
Dias depois, chegou a data: seria num sábado
à tarde, óptima notícia, redacção meia vazia, recato, espaço. Chegou com um
maço de apontamentos, o que espantou logo o António Carrapatoso, o Miguel
Pinheiro e eu: Notas? Ele?
Com uma velocidade estonteante que ia
produzindo uma oralidade indomesticável, voou sobre memórias, consultou os
apontamentos, lembrou, explicou, contou.
Quando este primeiro episódio foi para o
ar, ultrapassou em audiência o até aí imutável record do podcast diário da
(excelente) Joana Marques. Um feito. Não do Presidente da República mas do
interlocutor que eu convidara: Marcelo Rebelo de Sousa.
FOTO: Maria
João Avillez com Jaime Gama, este a ler o Expresso
2E para abrir a tal porta de Abril, nunca
duvidei : Jaime Gama, claro. A minha admiração por ele é
antiga e forte. Inteligência política, cultura polifónica e uma avaliação das
coisas que raramente dispensa também o enquadramento irónico/sarcástico do seu
olhar. Saiu cedo demais da política – julgo que não o lamentará –mas soube
sempre e em todas as circunstancias, o que fazer com ela.
Encontrámo-nos num pequeno “café” no
Campo Grande – ao telefone ter-me-ia dito que não – expliquei ao que vinha: só
podia ser ele a introduzir este cinquentenário. Foi preciso um segundo
encontro, desta vez numa sala discreta de um hotel e depois foi ainda preciso
um guião que ele ia corrigindo, por mail: ou porque “não era bem assim”, ou
“porque estava longo de mais”, ou porque. Obedeci a tudo, ou era Jaime Gama ou
o “25 de Abril” não seria bem contado. Recomendo mais do que uma leitura: à
primeira, talvez não se apanhe de uma vez só, a subtileza, a contenção, a
intenção, a ironia usada como distância.
A inteligência política pode ser um
dom.
3Não podia deixar de se seguir a saga
da descolonização, fora o General Spínola que a abrira logo em Julho de 1974
num discurso que ficará na História. Sem – hélas – os seus grandes
protagonistas ainda vivos, a escolha de um interlocutor teria de ser muito
ponderada. A complexa natureza do tema levou-me a um historiador, amparada na
opinião de dois bons “conselheiros”. E a seriedade intelectual de Rui Ramos, a qualidade
académica, um profundo conhecimentos sobre o século XX português aproximavam-no
naturalmente do que para mim seria um interlocutor “certo”. Rui Ramos “estudara” bem as Áfricas e os
Orientes onde se fala português; eu estivera – antes e depois das
independências e muito mais do que uma vez – em todas essas longínquas
geografias, do Atlântico ao Indico.
Ele estudara-as, eu conheci-as.
Pensando
bem, talvez a nossa longa conversa também tenha sido marcada por isso.
4No início de 1975, a revolução já em
curso, necessitava de um instrumento essencial: a posse da economia através da sua
estatização. Um convenientíssimo “golpe” Spinolista – confrangedoramente
mal-amanhado, desorganizado, sem tropas nem destino – forneceu o pretexto: o tecido económico nacional foi pulverizado no dia 11
de Março de 1975, com consequências que duram até hoje. Pedro Ferraz
da Costa sabe-o
como poucos. Da janela da Confederação da Indústria Portuguesa que
depois viria liderar, tinha visto – e percebido – tudo. Pedi-lhe para passar
de novo pelo “Cabo do 11 do Março”.
Dois encontros depois, ficou entendido que ele
começaria por recordar a economia nacional antes de Abril de 1974, para só
depois se ocupar de como ela tem sobrevivido durante meio século.
Pessimista crónico? “Mas como posso sê-lo” – perguntou-me à mesa de
um restaurante – “se durante cinquenta anos nunca saí e nunca desisti?”.
Um resistente.
5Às vezes ainda me pergunto se a
racionalidade e a própria realidade dos factos jamais triunfará sobre a
narrativa oficial do “25 de Novembro”, sempre intencionalmente brumosa quando
não declaradamente deturpada. Em face disso – e através do general Tomé Pinto –
tentei deixar aqui não “mais uma” versão ou “outra” versão, mas o que julgo
ser a história do que verdadeiramente ocorreu em Portugal durante o ano de
1975. Fi-lo com base no que – em livro nunca desmentido – me contaram com detalhe e memória Mário
Soares e Melo Antunes sobre um processo revolucionário em curso no país.
E fi-lo naturalmente também amparada no que eu própria vi e vivi. Mas
era preciso o testemunho fiável de um dos intervenientes no combate
essencial entre duas legitimidades, a democrática e a revolucionária: nesses momentos cruciais em que o país
ardia, Mário Soares estava ao leme com o povo atrás dele e à frente, a ameaça
real de uma guerra civil.
Disponível, amável, em excelente forma,
o general Tomé Pinto, veio generosamente a minha casa três ou quatro
vezes, “trabalhar”. Eu não pretendia novidades ou confidências mas ouvir uma
história. O 25 de Novembro ficou aqui, embora
– intuição errada? – me tivesse parecido que este general prestigiado e
respeitado, pudesse ter ido mais longe. Mas os militares são antes de tudo
militares, uma família, uma tribo. E quem sabe, quarenta e nove anos depois, há
cicatrizes que já fecharam e algumas memórias que não se querem ressuscitadas.
Deve ter sido isso.
6Em Abril de 1975, as eleições para a
Constituinte e o seu eloquente resultado tinham animado políticos e povo mas a
legalidade democrática era ainda movediça. Um ano depois, era-o bem menos: a Constituição fora votada, o PS de
Mário Soares ganhara as legislativas de Abril de 76, o general António Ramalho
Eanes fora eleito Presidente da República por sufrágio universal, o primeiro
governo constitucional tomaria posse nesse mesmo verão de 1976. Quatro etapas
de primeira grandeza, um novo quadro institucional, muita esperança.
ANTÓNIO BARRETO foi
um dos protagonistas desta outra estação política, como ministro da Agricultura
de Mário Soares.
Começou por responder que sim ao mail
antes enviado. Dias depois percebi que este
senador levara o convite muito a sério: procurava cadernos, escrevinhava
noutros, relia notas para se lembrar de si na pele de combatente contra a
Reforma Agrária comunista. Um dia propôs-me que “falássemos melhor”, o
que fizemos à mesa do Grémio Literário. Tempos
depois viria a ouvir, pela sua voz, mais uma história bem contada – esta devia
ser distribuída nas escolas. Retive o modo como quis recordar a sua própria caminhada política, com
algumas surpresas, entre elas “a confissão pública, pela primeira vez, do seu
maior erro político”. E aqui e ali, algumas mágoas, por entre os avanços e
recuos do andar da carruagem portuguesa, de Abril de 1974, a Abril de 2024.
7Apesar de dotado de instrumentos de
navegação democrática, o país não navegava bem. Os governos caíam, houvera necessidade de ajuda financeira externa; os
militares em sede própria decidiam pelos civis; as ambições do Presidente Eanes extravasavam o seu cargo e a sua função: aos governos de Soares haviam sucedido três
executivos de “iniciativa presidencial”:
uma estreia política que enfurecera Soares e Sá Carneiro: o “presidencialismo”
estava a caminho.
Meses depois, encenada pelo líder do PSD
– era preciso fazer alguma coisa – há outra estreia: a “Aliança Democrática”
– PSD/CDS/PPM/ Reformadores. Sabemos o resto.
Pareceu-me
importante “ouvir” de novo Francisco Sá Carneiro, mesmo que por interposta voz.
António Capucho era secretário geral do PSD em 1979, ano da formação da AD.
Reencontrei-o com gosto na Pastelaria Garrett, do Estoril. Mais de quarenta
anos depois, lembra-se como se fosse ontem, tem uma memória organizada.
Trocámos mails, mandou-me um documento, voltei à Garrett. “Em 1979 Sá Carneiro estava farto do jugo militar, das ambições de
um Presidente que ele execrava, do mau rumo do país. Respondeu com a AD”.
Sá Carneiro ganhou o Governo com
maioria, voltou a vencer um ano depois, faltava-lhe politicamente a Chefia do
Estado. Acabou em tragédia.
A
morte pode transformar a vida em destino, dizia Malraux.
8Quase a chegar à estação do Bloco
Central, com um caderno e um lápis na mão e diante de dois amigos pacientes e
com melhor uso da mente que eu, perguntava-lhes “mas a quem entregar isto?” A resposta
foi-lhes óbvia: António Vitorino claro,
que integrara a coligação
governamental PS/PSD como um dos seus ministros.
Ao telefone, quando ainda mal aludia ao
que pretendia, a disponibilidade fora prontíssima: “alguma vez lhe disse que não?”
Expliquei porque lhe batia à porta: ANTÓNIO
VITORINO fora um dos artífices da Revisão Constitucional de 1982, vivera por dentro o governo do Bloco Central e a
forte crise económica que levou a uma segunda ajuda externa, integrara a
cerimónia da assinatura do Tratado de Adesão a então, CEE no dia 12 de Junho de
1985. E além disto – ou sobretudo? – fora um dos
mais fortes combatentes políticos contra um “presidencialismo” que crescia.
Veio a minha casa uma tarde e sagaz e
loquaz, avivou-me a memória, correndo sobre as palavas mas sem nunca
tropeçar nelas: “o Bloco Central foi a resposta partidária ao espectro do “eanismo”.
9Falando um dia com Leonor Beleza sobre
a consideração que tinha por Cavaco Silva, percebi que ter sido sua ministra
fora, para ela, mais do que uma estrita colaboração política. Em certo sentido,
quase um legado. “Significou um
património precioso da minha experiência pessoal de vida.”
Tendo o “cavaquismo” um lugar obrigatório na revisão de meio século
de vida política, económica e social portuguesa, lembrei-me de Leonor. Sabendo de
antemão que podia estar descansada na revisão de uma matéria ainda hoje
narrativamente adulterada: a sua
inteireza e a sua seriedade impediriam sempre o aplauso gratuito, o elogio sem
fundamento. Reviu a década 1985/95, mas
juntou-lhe a interpretação política do que testemunhara em directo: “Com
esforço e trabalho é possível mudar as vidas e as experiências”. O esforço e o
trabalho de um Primeiro ministro, conduzindo uma partitura com o seu nome.
Maria João Avillez com Cavaco Silva no tempo em que
este era primeiro-ministro
10Em 1985, fazendo do governo minoritário
que chefiava um fortíssimo instrumento de combate político, Aníbal Cavaco Silva alertava os
portugueses: estava ali para ficar. Mas apesar de quatro maiorias políticas
absolutas e de um país que não ficara o mesmo quando deixou de o governar continuarem
a produzir fastios Cavaco
Silva não se distrai: continua não “a andar por aí” mas a ficar
onde sempre esteve: a olhar para Portugal, sem desistir dele.
Um dia de verão de 2023, bati à porta do
seu gabinete no Sacramento: estando certa de que ele era o mais bem sucedido
dos políticos do regime a poder falar duma das maiores transformações
institucionais no país desde a desmilitarização do regime ou a entrada na CEE –
por exemplo – convidava-o para lembrar a saga da Moeda Única.
“Eu
não sei o que é um podcast”. Atalhei que ele sabia da Moeda Única e do podcast sabia eu (que ainda não sabia).
Seguiram- se duas lições sobre o tema, notas, números, datas e a estruturação
de um questionário: ”Aceitei
este convite só por se tratar do tema da Moeda Única. Vivi-o, estudei-o muito,
publiquei um livro sobre ele, com um prefácio do Delors mas isso do podcast…”
11Nos anos noventa do século passado o país vivia ilusionado: talvez
tivesse deixado de ser pobre. Apesar do
rugir das oposições, o “cavaquismo” abrira novos caminhos, revertera outros, a
economia crescia. E havia novas televisões, auto-estradas e grandes eventos
culturais –nacionais e internacionais – onde Portugal deixava boa assinatura. A seguir António
Guterres continuou as privatizações,
inovou na educação, bateu-se pela ciência que não queria uma parente pobre.
Que país era este, que economia era
aquela, de que tempos sociais e culturais se devem falar? Diz-se que os
economistas e os agentes culturais se olham ao viés mas Artur Santos
Silva desmente ambas as coisas, toda a sua vida prova
o contrário: oficiou com êxito na
Economia, deixou marca e memória na cultura portuguesa, promovendo ou liderando
múltiplas iniciativas institucionais, civicas e culturais. Fui ao Porto perguntar-lhe se podia
contextualizar esta época da nossa caminhada, onde havia alguma felicidade no
ar. Ele podia. Um “alguém” sempre bem-vindo.
12Mais uma vez – como sempre e desde
sempre – ouvi José Miguel
Júdice dizer-me que
sim. Encontrámo-nos nos “bastidores” da Sic onde ambos colaboramos e ambos
prestes a entrar “no ar” quando subitamente, mais que um convite, fiz-lhe um
desafio, o tema não era fácil: SÓCRATES. Mas
quem podia passar ao lado de um Primeiro Ministro detido no aeroporto de
Lisboa, ao vivo e em directo –televisões avisadas – no regresso de um voo de
Paris como sucedeu com José Sócrates? Não eu. “Faço, faço” respondeu-me o José Miguel sempre com aquela nota
vagamente irónica, indefinidamente melancólica que interdita qualquer ilusão.
Há certos intelectuais assim mas fosse como fosse, eu sabia que a tarefa ficava
entregue: Júdice pensa bem, observa bem, leu muito, conhece muito. (ás vezes
justifica-se demais, não precisa). Antecipei
que o “socratismo” produziria uma conversa inteligente, interessante, oportuna.
Foi definitiva. Depois dela…
13Em 2011, Pedro Passos
Coelho fez o que devia ser feito em Portugal. Foi com
isso que se comprometera. E o que, desde o início da sua governação, lhe
competia como primeiro-ministro de uma coligação entre o PSD que ele
liderava e o CDS, de Paulo Portas.
Durante quase cinco anos Passos Coelho, com uma mochila as costas
que dizia Troika em letras gordas, governou um país exangue, conseguindo
salvá-lo da falência e do descrédito internacional. Mas não fez só isso e era
aqui que eu queria chegar:
Fê-lo sem a ascensão da direita
populista: não foi com o seu governo nem com o ar desse tempo – et
pourtant, tão propício – que o Chega viu a luz do dia; fê-lo em estabilidade
politica e sem que nunca o regular funcionamento das instituições democráticas
tivesse sido beliscado; fê-lo deixando semeado um futuro plausível para
Portugal e com o país já a crescer economicamente. Os deuses deram- lhe a
vitória nas eleições de 2015 mas não a possibilidade de provar aos portugueses
o que seria capaz de fazer com essa vitória. Em 50 anos, conheço raras
oportunidades políticas tão perdidas quanto esta.
Acompanhei
de muito perto esta via-sacra. Fui a S. Bento várias vezes, conversei com
outros protagonistas, falei com intervenientes, Extraordinariamente, não se
queixavam, contavam apenas. Uma dignidade em extinção.
Há anos, já longos anos, que peço a
Pedro Passos Coelho que me recordasse tudo isso. Nunca consegui. Pela primeira
vez, ficou agora tudo contado.
O documento de um estadista (devo-lhe
esta palavra).
14O país mudara de natureza, Portugal era
agora europeu, a política fazia-se democraticamente, o voto tornara-se um
hábito salutar, ganhavam uns, perdiam outros, ia-se vivendo.
Mas… onde estava e como agia a Igreja,
permanente testemunha e amparadora de nove séculos de portugalidade?
Acompanhara tudo isto? Com gosto ou desgosto? Mudara, avançara, interviera?
Socorri-me de Manuel Braga da Cruz, um dos mais destacados leigos católicos
na reflexão sobre a Igreja. Humanista convicto e excelente retratista de
Portugal e dos portugueses sobretudo em tempos recentes.
E depois… a sociedade, o povo, os
portugueses? Como respondiam – e correspondiam – ao que de tão diferente, novo
ou inusual ia acontecendo? Faziam-no inspirados pelos partidos onde votavam, ou
mandatados por eles? Aderiam, reagiam, entusiasmavam-se, resignavam-se? Se não cabe aqui – nem se pretende – um
tratado sociológico, Helena Matos, discorrendo sobre a sociedade portuguesa nestes cinquenta anos,
regista mudanças, sublinha transformações, evoca novos costumes. Explica com
autoridade própria e uma seriedade intelectual na qual se confia
15Uma longa saga. Recapitulemos:
primeiro,
foi a “Geringonça” – governo PS
com apoio parlamentar de comunistas e bloquistas. (Uma
produção de António Costa, em estreia absoluta, política, para garantir, no
parlamento, o número de deputados suficientes para formar Governo, o qual
pertenceria eleitoralmente a Passos
Coelho, vencedor das eleições de 2015.) Durou a legislatura. Das eleições seguintes desagua uma
“geringonça” menos sólida, obrigando a uma governação “a la carte”:
negociava-se caso a caso, ora com o PC, ora com o BE. Não corria bem – o Bloco
saíra da pista –, havia dificuldades, impaciência, tensão. O PSD junta-se à
impaciência das extremas-esquerdas, o orçamento de 2022 é chumbado, o executivo
cai. Sendo a política uma grande fornecedora de surpresa ,seguem-se
mais: a convocação de novas eleições; uma surpreendente maioria absoluta socialista, um duplo desperdício,
governativo e político: do ultimo governo de António Costa nunca rezará a
história.
Fernando Medina, titular das Finanças, destacava-se neste governo medíocre, era melhor que ele, fez da
descida da divida publica o seu combate (quando
entrou no governo, Portugal estava como a Itália ou a França, num mau patamar,
Medina deixou-a noutro melhor). Claro que saiu a sorte grande ao
ministro com as receitas da inflação e claro que ele tinha que fazer melhor que
Centeno – mas fez.
Um dia fui ao Terreiro do Paço:
“quereria ele fazer-me uma visita guiada às governações socialistas?” No poder ou nos bastidores, Fernando Medina
pertence a esta história – ao “costismo” – desde o princípio. Apesar do mais
que previsível risco de ouvir uma visão açucarada do longo consulado socialista
–que ouvi –foi a minha escolha.
O delfim de António Costa – estou certa que Medina continua a sê-lo reviu
aqui, com enorme detalhe, informação, interesse (e açúcar), oito anos de poder
socialista.
16Espectadora
do “Global”, falávamos muito, Paulo Portas e eu do seu programa televisivo dominical:
discutíamos-lhe a forma e o fundo, cruzávamos semanalmente opiniões sobre
alguns dos temas, e claro, elaborávamos muito sobre a política da “casa”.
Concordando mas muitas vezes discordando, a nossa conversa ia durando no
tempo. Talvez por isso foi quase naturalmente que Paulo Portas se
tornou parte do mosaico destes protagonistas, tendo sempre eu em mente a
qualidade do “Global. Além de que – e também naturalmente – ele
se interessava genuinamente por esta navegação: como ia ela? ouvi-lhe dezenas
de vezes ao longo de meses. Até que um belo dia – sem que muito nos tivéssemos
preparado ou decidido – ele se sentou num estúdio de gravação comigo e fez
desfilar o mundo lá dentro. Guiado pelo
final do século passado com as suas certezas infundadas e a imprevisibilidade
deste (tão incandescente que nos permite pensar se haverá próximo) Paulo Portas
usou dos seus instrumentos: saber, atenção, critério, comunicação e
claro, aquela crucial observância do lado justo das coisas.
Breve epílogo
Foram cinquenta anos onde me apeei em dezasseis estações, numa
viagem preparada no verão de 2023, iniciada nesse outono, e acabada em Abril de
2024.
Foi “isto” e foi “assim”? Eu estive lá: sei. Mas se este livro pode ser importante para muitos leitores que
também estiveram “lá”, será sobretudo importante para os que não tendo estado,
precisam de saber como foi.
Óbidos,
Setembro de 2024
JOHN MARTINS: Também para nós é um privilégio, durante estes 50 anos, lermos e ouvirmos a Maria João. Uma autêntica enciclopédia. Parabéns. Mas hoje, fui direitinho ouvir Passos Coelho, um depoimento, que peca por tardio, pois a sua experiência durante o governo, da Troika nunca foi esclarecida cabalmente.E depois de o ouvirmos, como é possível teimosa e estupidamente, Portugal continuar a esquecer-se de um HOMEM desta envergadura? Faça-se uma petição. JÁ. PASSOS À PRESIÊNCIA!... maria santos: Eu também estive atenta, presente em Portugal nestes 50 anos de política, em 1974 tinha 23 anos e era uma senhora casada mãe de família. Agora sou avó de família e estou saturada da incapacidade do centro esquerda. E saudei o 25 de Novembro vencedor que derrotou os comunistas do PCP e mais a ganga dos UDP, LCI e quejandos. O Vasco Lourenço está com dores de cabeça? Problema dele. Montenegro desbaratou por incapacidade própria a força política do centro direita vencedor nas eleições de 10/Março para operacionalizar as necessárias políticas públicas e acabar com a avassaladora incompetência socialista dos governos de António Costa. As políticas de Passos Coelho na recuperação da bancarrota de Sócrates têm de ter sequência na alavancagem da iniciativa privada empresarial para recuperar a economia. O PSD não entende que a mudança de Montenegro é inevitável. Temos pena e temos tempo. antonio afonso: gostaria que escrevesse sobre a sua irmã, Maria José Nogueira Pinto, tb na minha opinião uma figura marcante dos últimos cinquenta anos: Uma grande mulher
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