De Jorge Frederico Cardoso Vieira Barbosa
que
corresponde ao que pensei e senti ao ler a crónica de NUNO GONÇALO POÇAS,
retrato de uma estrutura política e social a merecer bem uma condenação como a
sua. O que nos apraz é pensar que um país não pode morrer de todo, se mantiver gente
que pondera como gente formatada em conceitos que nos precederam, e que
permanecem na escrita dos que os definiram e que podem ser sempre lidos e
meditados e esclarecidos, ou até mesmo mantidos e ponderados nas famílias, que
assim contribuem para a manutenção dos valores realmente
humanos, que a insensibilidade, o pedantismo e a ignorância vão espezinhando
sem travão ainda.
De «Jorge Frederico Cardoso Vieira
Barbosa: Excelente
artigo que vejo como uma lufada de ar fresco numa democracia em degradação
progressiva, pela mão das agremiações profissionais que estão a ser os partidos
do arco da governação, os primeiros grandes responsáveis pela fraca qualidade
dos políticos susceptíveis de serem eleitos pelos cidadãos. Obrigado ao autor
de excelência que pacientemente continua a servir a missão de se salvar ainda a
democracia portuguesa.»
Um desabafo
Podemos perfeitamente estar a
desperdiçar muitos dos nossos possíveis melhores em benefício de nada. Excepto
as minorias de criminosos e as minorias de radicais, os grandes conquistadores
de terreno.
NUNO GONÇALO POÇAS Colunista do
Observador. Advogado, autor de "Presos
Por Um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril"
OBSERVADOR, 05 nov. 2024, 00:205
O tempo mediático já devorou o tema que
levou as redacções a espreitar, mesmo que pelo buraco da fechadura, para o que
têm todos os dias à porta. As eleições
norte-americanas ocuparão boa parte da agenda noticiosa da semana, depois de
praticamente se ter passado como cão por vinha vindimada pelo que de
politicamente relevante se passa aqui ao lado, em Espanha, onde o monóculo
jornalístico português parece ainda só ter reparado nas imagens espectaculares
da assustadora desgraça que por lá sucedeu, ignorando a amoralidade do
sanchismo e o caos político e institucional que está a cavar à nossa porta. Oportunidades não faltarão a boa parte da
jornalada e do comentariado lusitanos para voltarem a acenar a sua
superioridade moral, num desfiar praticamente diário e cuidadosamente
seleccionado de histórias, casos ou novelas que ganham sumiço com a mesma
velocidade com que nos entram pelos televisores. Mas talvez valha
a pena não deixar desaparecer os subúrbios lisboetas do radar. Para mim, pelo
menos, é difícil ignorá-los por condição e percurso.
Acabei de ler, no passado domingo, A
Década Prodigiosa – Crescer em Portugal nos anos 80, de Pedro Boucherie Mendes, um merecido
calhamaço que desfila pela década em que nasci, num esforço hercúleo de grandes
e pequenas memórias, produzido num país que não é famoso por ter memória
alguma, e que acaba por desenhar um retrato do país que fomos e talvez
continuemos a ser. Posto no mundo a meio da década, não deixei de me
admirar com o facto de boa parte daquelas memórias quotidianas – não tanto as
efemérides, por razões óbvias – me serem, na verdade, mais familiares do que deviam.
Talvez porque em minha casa, onde o telefone só surgiu quase a meio dos anos
90, ou onde nunca houve televisão por cabo, internet ou microondas, se viveu
durante muitos anos como se a primeira metade dos anos 80, de certa forma,
persistisse na mentalidade, lado a lado com a segunda metade da década, e com
um mundo que avançava, e eu com ele, no que seria mais essencial: a ascensão social e económica.
Nos últimos anos, alguns livros fizeram
com que regressasse mentalmente a um período de vinte e quatro anos da minha
vida, devendo aqui um agradecimento ao que têm produzido autores como Bruno Vieira Amaral, com As Primeiras
Coisas, ou Henrique Raposo, com As Três Mortes de Lucas Andrade. A Década Prodigiosa surgiu, porém, espantosamente no
meio deste rebuliço de tiros, mortes, coisas queimadas, manifestações e muitos
comentários televisivos ou impressos sobre um tema a que só não volto mais
vezes, neste ou noutros espaços, porque sei que as nossas memórias pessoais
são gelo fino sobre o qual se caminha quando se fala ou escreve sobre assuntos
públicos.
Em primeiro lugar, porque não
tenho, nem pretendo ter, o monopólio do olhar suburbano. Em
segundo lugar, porque ouvi e
li uma maioria de vozes sensatas e equilibradas falar sobre o assunto, e não
estou certo de que possa aqui introduzir uma inovadora visão sobre algo que, na
verdade, só dividiu radicais de ambos os lados, e respectivos idiotas úteis.
Mas de tudo aquilo que ouvi durante aqueles dias em que as televisões faziam
directos à espera de tumultos, houve
dois momentos particularmente interessantes e que, também eles, me fizeram
voltar a outro tempo. Um deles foi Isaltino Morais que, sabendo do que fala, tentou pôr os jornalistas
no lugar da respectiva ignorância, quando acusou
as televisões de estarem a criar um alarme mediático que só atirava mais lenha
para uma fogueira que aquelas, na verdade, desconhecem. Outro foi um velho, julgo que residente na Cova da
Moura, que, perante a pergunta sincera de um repórter sobre se se esperariam
mais tiros naquela noite, respondeu
placidamente que ali havia tiros todas as noites. Era só nisso em
que eu pensava desde que comecei a ver as imagens dos incêndios, depois do
homicídio de Odair Moniz por um agente da polícia.
Lembrei-me de uma noite de Natal em que,
já adulto, chegado a casa depois de uma Consoada passada em casa de uns primos,
em Lisboa, se incendiaram uns caixotes
do lixo atrás de minha casa, e de como isso não despertava em mim qualquer
alarme, mas antes um cansaço insuportável de viver numa espécie de caos e
desordem permanentemente ignorados. O
jardim por onde fugiram os ateadores do fogo urbano-natalício era, até aos meus
6 ou 7 anos, um acampamento de ciganos, um conjunto de barracas impenetráveis,
que convivia de forma tensa com as nossas vidas de classe média pós-rural, e
que acabou por ser desmantelado, praticamente de um dia para o outro, depois de
uma tarde inteira de tiros de caçadeira entre os residentes do acampamento e a
polícia, que me deixou enfiado no quarto a ouvir os zumbidos das balas, e a
ouvir o meu pai à janela da sala, enquanto fumava cigarros, indiferente a
eventuais balas perdidas, a sugerir ângulos de penetração aos polícias que rastejavam
entre os automóveis.
Morávamos
praticamente a meio caminho entre os bairros da Jamaica (que, na realidade, se
chama «Vale de Chícharos») e da Quinta da Princesa, conhecíamos de cor o rosto
de uns e outros, muitas vezes inimigos entre si, que nos atrapalhavam a vida,
na rua ou na escola, entre pequenas agressões, furtos, facas de ponta e mola ou
pistolas que, por alguma razão, chegavam mesmo a frequentar os pátios escolares
impunemente e com conhecimento de quase todos. Durante muitos anos não tive o
hábito de andar na rua com dinheiro; no máximo, escondia-o nas meias, dividindo
as moedas pelos vários bolsos e sapatos, para que o tilintar não me
denunciasse. Temo mesmo ter
desenvolvido uma certa técnica de visão de 360º, um espreitar permanente sobre
o ombro que, uma certa noite, já adulto, levou alguém a perguntar-me, no Bairro
Alto se eu «era bófia». Tive de chegar à universidade para compreender que,
passando o rio, pouco me distinguia socialmente daqueles que, na outra banda,
pareciam viver a uma galáxia social de mim. Do lado de lá do rio,
talvez fosse demasiado betinho. Do lado de cá, tornava-me demasiado chunga.
Em tempos, o presidente Jorge Sampaio
visitou uma escola primária na Quinta da Princesa e chamou-lhe a «escola colorida». A notícia
abriu telejornais, fez manchetes, Portugal era cosmopolita, condenava
o racismo, e, porém, naquele «concelho de Abril», comandado desde sempre pelo
Partido Comunista, persistiam os bairros de lata, a guetização das comunidades
africanas, e só se era notícia quando se praticavam crimes particularmente
brutais ou quando alguma alta figura nos visitava para nos enaltecer o
progresso social, ignorando o quotidiano que todos, brancos e pretos que
tentavam levar uma vida honesta, sofríamos. Provavelmente sem terem essa consciência, o que muitos cavaram ali
durante anos foi um barril de pólvora. Outros fizeram-no conscientemente,
claro: não me é estranho ouvir professores explicarem-me que nós, os
assaltados, não tínhamos outro remédio que não fosse encolhermos os ombros
perante os roubos de que éramos vítimas, porque isso era uma certa forma de
reparação social com a qual teríamos de ser complacentes.
Na verdade, apesar do
desconforto, do medo e de ter de aprender a sobreviver incólume, não era difícil chegar-se à conclusão de
que nada do que a convivência tinha de pior advinha de factores raciais.
Brancos, pretos, indianos, havia antes um elemento que nos unia ou
separava e não era a cor da pele, mas a existência ou não de uma estrutura
familiar e de uma moral doméstica que recusava a cultura do gangue – e, apesar
disso, sempre seria mais difícil para eles, os que não eram brancos, apanhar o
elevador social. O
racismo existia, existe, existirá talvez sempre, lamentavelmente, em todas as
sociedades compostas por seres humanos de todas as raças. Mas se há coisa em
que estamos a falhar, como comunidade, não é no foco que temos no tema
exclusivo do racismo. É na forma como, mediaticamente, nos círculos bem
pensantes, se dá maior relevância ao alegado «racismo de Estado» e se
ignora a importância da estrutura familiar, e da moral, ao mesmo tempo que o país deixou estagnar o elevador social e
se fecharam as melhores portas a quem vem das margens e dos lados B da
sociedade. É verdade que os próprios bairros não podem ser
benevolentes com as minorias que lhes dão má fama, mas não é menos verdade que
isso não se faz sem ajuda. Como é verdade que a polícia é mais garantia que
ofensa à liberdade. Mas não
parece muito ajustado falar-se tanto como se falou nos últimos tempos em «policiamento
de proximidade», ignorando as causas que levaram a que ele tivesse terminado,
há uns anos, na Cova da Moura, por exemplo. O
primeiro passo terá de ser dado pela própria comunidade, que pode e deve
rejeitar o desgraçadismo, a cultura da vítima e da desresponsabilização
individual.
Se
o jornalismo quer, de facto, ser útil, talvez devesse promover mais a busca de
soluções ponderadas e sensatas agora que o assunto morreu, e não voltar lá
apenas quando uma nova desgraça se der e tiver espaço mediático para ocupar. Podemos
perfeitamente estar a desperdiçar muitos dos nossos possíveis melhores em
benefício de coisa nenhuma. Excepto as minorias de criminosos e as minorias de
radicais, os grandes conquistadores de terreno. O
jornalismo-activista, incluído nesta última minoria de radicais, infelizmente,
vai ganhando espaço para agir em prejuízo dos mais fracos, e talvez se contente
assim. Mas quem tem poder, mediático, constitucional ou
ambos, e não está ainda doido varrido, tem obrigação de fazer muito mais e melhor.
MINORIAS MUNDO VIOLÊNCIA CRIME SOCIEDADE COMUNICAÇÃO
SOCIAL MEDIA
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Jorge Frederico Cardoso Vieira
Barbosa: Excelente
artigo que vejo como uma lufada de ar fresco numa democracia em degradação
progressiva, pela mão das agremiações profissionais que estão a ser os partidos
do arco da governação, os primeiros grandes responsáveis pela fraca qualidade
dos políticos susceptíveis de serem eleitos pelos cidadãos. Obrigado ao autor
de excelência que pacientemente continua a servir a missão de se salvar ainda a
democracia portuguesa.
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