sábado, 16 de novembro de 2024

As análises


De JAIME NOGUEIRA PINTO, de relacionação historiográfica, como páginas a elevar-nos – e a alegrar-nos - na penúria da nossa actual vivência.

Acaso ou vaga de fundo?

Poderá a vitória de uma personalidade tão excessiva e controversa, mesmo para muitos dos seus apoiantes, não passar de um acaso gerado pelos erros do Partido Democrata e por uma conjuntura infeliz?

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 16 nov. 2024, 05:1247

O embaixador António Martins da Cruz, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Durão Barroso e assessor diplomático de Cavaco Silva, disse o que havia a dizer sobre o modo como a comunicação social tratou as eleições americanas: “Falharam as sondagens, falharam os comentadores e falharam os jornalistas, que não tiveram objectividade”.

O problema, sublinho, não é os jornalistas, os analistas e os comentadores serem contra ou a favor de Donald Trump, o problema é quererem transformar, nas suas reportagens e análises, o mundo naquilo que gostariam que fosse.

Mas o mundo não é o que gostaríamos que fosse. E ouvindo os enganados e enganadores explicarem, depois do embate com a realidade, porque é que se enganaramadmitindo, quando tanto, que talvez não tivessem dado “às pessoas” o que “as pessoas agora querem” (Jornalismo? Informação? Objectividade?)é de crer que vão continuar enganados.

The times they are a’changing

Aquilo a que estamos a assistir nos Estados Unidos é bem capaz de ser mais do que uma simples história de deploráveis manipulados pelas “redes sociais” e pelo “discurso de ódio” de políticos populistas. Talvez seja mesmo uma vaga de fundo.

Um dos argumentos perante o que foi uma votação inequívoca, é que “eles”, “os americanos” são bárbaros, básicos e incapazes de entender as luzes da modernidade e do progresso. É um argumento curioso que me lembra os primeiros anos 60, quando, na Administração Kennedy, Washington se mostrou hostil à presença portuguesa no então Ultramar: o tom geral da comunicação social oficial do Estado Novo era então insistir na boçalidade ou barbaridade dos americanos, no seu provincianismo de crianças grandes, perante nós, a velha Europa. Aparentemente, voltámos à mesma história – agora no rectângulo libertado pelos capitães de Abril e já sem Império.

Não são precisos polígrafos, só olhos, para ver que na América – e na Europa – “the times they are a’changing”. A dificuldade em vê-lo estará talvez no facto de os tempos e as vontades estarem agora a mudar de outra maneira; ou estarem a mudar, precisamente, contra a institucionalização das mudanças que Bob Dylan anunciava marginalmente em 1964.

A vaga que agora faz com que as águas extravasem das margens e inundem as seguranças instituídas é mais uma vaga de rejeição da mitologia e da ideologia da Esquerda que reinventou Marx nos anos 60, passando por Sade e Marcuse; uma ideologia que, fazendo “a longa marcha através das instituições” prescrita por Gramsci, passou a dominar culturalmente os Estados Unidos e a Europa. A última versão radical da Nova Esquerda foi a gota de água – com a elevação do imaginário ideológico a níveis de sofisticação e de absurdo estratosféricos, com a transformação da luta pela igualdade numa luta contra a realidade (biológica e social), com o “empoderamento” ou a instrumentalização de minorias essencializadas, com a entronização de uma superioridade moral indestronável e a licença para cancelar toda a expressão desviante e toda a contestação.

A luta contra todos estes absurdos usos e abusos não começou ontem nem se restringe à América, mas foi a América que agora a tornou flagrantemente visível. Donald Trump, que não estava ao lado deste povo, veio há dez anos ter com ele. E, contra todas as previsões, venceu.

De Nixon a Trump

A direita de que Trump é mediador perante os eleitores é complexa nas origens e nas causas. Tem, na sua História, uma linha de derrotas fundacionaisNixon em 1960, Goldwater em 1964 – que trazem as vitórias de Nixon em 1968 e 1972. Eram tempos difíceis, entre a questão racial e a guerra do Vietname; os Democratas não estavam bem; Chicago, onde fizeram a convenção em 1968, estava caótica e em grande desordem. Nesse ano foram assassinados Robert Kennedy e Martin Luther King. Nixon, com uma campanha de lei e ordem, foi eleito presidente.

Realista e pragmático, coadjuvado por Henry Kissinger, Nixon abriu as portas à China, aproveitou a lei dos direitos civis para criar uma burguesia e uma classe média negra e teve uma enorme vitória em 1972, varrendo 49 Estados. Depois, Watergate liquidou o presidente mais votado da História dos Estados Unidos, contribuindo, de passagem, para a sacralização do jornalismo como profissão e para dessacralização do cargo presidencial, acabando de vez com uma intocabilidade de que J. F. Kennedy ainda beneficiara.

A grande reviravolta – depois da presidência “franciscana” de Jimmy Carter, que trouxe a queda do Xá do Irão e criou o medo de que a União Soviética ganhasse a Guerra Friairia dar-se com Ronald Reagan. Com uma política articulada entre os valores tradicionais, religiosos e patrióticos, e a liberdade económica, Reagan chegava com a “revolução conservadora”. Na altura, todos, da esquerda comunista à esquerda moderada e à direita da esquerda, se indignaram: Como é que a América escolhera um “actor de segunda” para Presidente, um cowboy tão básico como os red-necks que o apoiavam, alguém que iria certamente pegar fogo ao mundo? Falavam então do mesmo Ronald Reagan que depois passaria a ser, para os mesmos, um senhor distinto e moderado, quando comparado com Trump – um “actor de reality shows”, um pistoleiro tão básico, selvagem e deplorável como os deploráveis que o apoiavam, alguém que se preparava para pegar fogo ao mundo.

A América ganhou a Guerra Fria e Bush-pai regulou a vitória, procurando não humilhar a Rússia pós-soviética e impedir a sua fragmentação em senhores da guerra com armas nucleares. Veio depois a Administração Clinton e a grande ilusão de estender a todo o globo a democracia americana. Bush-filho, eleito em 2000, ficou condicionado pelo 11 de Setembro. Na sua administração, Cheney e os neoconservadores exploraram a situação para impor, através de guerras diversas, uma pax americana que levou o caos ao Médio Oriente e se prolongou em intermináveis guerras mal-sucedidas na Líbia, no Iraque, na Síria, no Afeganistão. Obama seguiu, no tempo das “primaveras árabes”, com mais algumas tentativas falhadas de exportação democrática.

A primeira presidência Trump, ganha contra a representante acabada do “liberal-chic”, Hilary Clinton, saldou-se sem novas guerras, apesar da roda-viva de nomeações/demissões entre os conselheiros nacionais de segurança, a economia andou bem, mas não resistiu ao COVID. E Biden, o escolhido pela cúpula operacional democrática, acabou por ganhar.

O regresso

Poderá o regresso de Donald Trump não passar de um revés da sorte, de um fenómeno extemporâneo gerado pelos erros do Partido Democrata e por uma conjuntura infeliz? Poderá a vitória de uma personalidade tão excessiva e controversa e a gerar tanta hostilidade, mesmo entre aqueles que apoiam o seu programa, não passar de um acaso? Ou será esta vitória contra os poderes da Grande Informação, contra grande parte do Dinheiro, contra a nova cultura radical, tolerada ou promovida institucionalmente por radicais e moderados, um sinal de que os tempos estão mesmo a mudar?

A verdade é que a vaga nacional e popular,  de que a vitória do Partido Republicano é sinal, também já se faz sentir na Europa – e promete ganhar força com o exemplo americano.

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COMENTÁRIOS (de 47)

Vitor Batista: Mais um artigo excepcional de Jaime Nogueira Pinto,  Trump ganhou porque a esquerda quis ou quer transformar o mundo numa seita de patetas. As pessoas ou a maioria delas, mais Conhecidos como "fascistas" não estiveram pelos ajustes, e destaparam de forma solene a estupidez caricata desta forma de gente.                 Elizabeth Coelho: Bom dia. Mais uma vez obrigada por este artigo. Quanto ao Sr Embaixador, os meus parabéns. Demasiado lúcido e  contundente para os srs jornalistas. Obrigada                   Carlos Chaves: Caro Jaime Nogueira Pinto, obrigado por esta resumidíssima apresentação das últimas presidências dos EUA. Nunca mais irei esquecer a intervenção que menciona do embaixador António Martins da Cruz, num dos canais da nossa televisão (se não me engano a SIC notícias), em que os jornalistas que pediam a sua opinião, reagiram a essa sua resposta de uma forma intempestiva e que chegou a ser malcriada, como se tivessem sido ofendidos! Portanto sim, (...) “é de crer que vão continuar enganados.” E se me permite, acrescento eu, continuar a enganar os mais incautos!               Roberto Carlos: Todas as crónicas do JNP são boas, mas esta é simplesmente excelente. Aqueles que têm hoje à volta de 70 anos de idade, entendem bem o preço que Portugal pagou pelo capricho da administração dos Kennedy. Talvez tenha chegado agora a vez de a Europa, então marxista, dos subsídios aos libertários avarentos, pagarem o preço que Trump vai cobrar. Vamos ver.             Joaquim Almeida: Excelente. Quero crer que será uma vaga de fundo que tardará a chegar à ocidental praia lusitana.                Rui Lima: Será que vai ser possível inverter o plano inclinado que está a levar o Ocidente para o abismo? Tenho receio de que o destino já esteja traçado, a eleição de Trump, que nunca seria possível num Ocidente pujante, é sinal dos tempos . Será que o USA se salvará?  Quanto à Europa, o seu destino está traçado entre a invasão vinda do Sul e os inimigos de leste não sei qual a mais destrutiva (nenhum jornal faz reportagem sobre a multidão de Africanos do outro lado do Mediterrâneo à espera de uma passagem, talvez porque o que lá se passa é muito feio) é urgente definir, de preferência ouvido o povo, o que deve ser feito.                Ana Luís da Silva: Excelente súmula histórica! Muito obrigada a Jaime Nogueira Pinto… novamente, e uma e outra vez mais.                 João Floriano: As crónicas de Jaime Nogueira Pinto têm o enorme mérito de ligar os acontecimentos e fazer-nos compreender que os grandes acontecimentos a nível nacional e mundial não estão isolados nem tão pouco são fruto do acaso ou dos humores de presidentes do momento. Desta vez temos um rápido «colar de pérolas» entre a administração Nixon e a que agora trump irá iniciar. Cada acontecimento significativo é uma pérola que se acrescenta ao colar que é colocado no pescoço da História, não a que os wokes querem contar mas a que realmente aconteceu. Todos têm direito  a interpretar a História de várias maneiras, de acordo com  a sua visão. Mas não têm direito  a deturpar os factos históricos para irem ao encontro das suas interpretações. O último parágrafo é na minha opinião o mais significativo da crónica. Que irão fazer os wokes democratas? Que irão fazer os democratas que não são wokes? Que acontecerá na Europa? Duas hipóteses são viáveis: ou o wokismo está ferido de morte e  a partir de agora começa a  agonia, ou tratou-se de um revés momentâneo do qual irá recuperar. Em ambos os casos o garrote bem apertado do wokismo europeu vai-se fazer sentir sobretudo na sua mais que reconhecida ponta de lança: a Comunicação Social.               Joaquim Almeida > Henrique Frazão: Repare, meu caro, que só agora começaram a dar â costa as  primeiras criaturas woke  da AD-PSD    - a  Balseiro, a Rita Machado  dos cartões vacinais sem  sexo (amarelos)  e o ministro  Alexandre que não ata  nem  desata na  abolição da "Cidadania" e, em vez de seguir o  modelo proposto pelo Prof. Valadares Tavares, diz que vai retocâ-la, etc.                      GateKeeper: Top 5. Clara e objectivamente uma vaga de fundo, caro Jaime. E que vaga!               Joaquim Almeida > João Floriano: Muittos  parabéns à deputada do Chega Rita Matias, que acaba de reduzir a ministra  Dalila Matias à condição de triste figura  de  woke serôdia  -  com 64 anos  e sem siso.               vitor gonçalves pronouncer: O "Muro" foi inicialmente, começado a construir pelo Clinton, quando na altura já se estava a sentir o efeito da imigração desregrada.                    Carlos Real: Pode parecer à primeira vista que o Mundo está a virar para a direita. Contudo genericamente os povos têm votado maioritariamente no centro e na direita. São 63% dos paises. Apenas 8% votam em governos da esquerda. Os restantes são ditaduras 21% e governos sem clareza ideológica 8%. É certo que o marxismo apenas convenceu as elites, porque o ser humano sempre percebeu que o colectivismo significa pobreza e, sobretudo é anti natural. Queremos ter propriedades individuais, sejam terras, casas ou carros. Queremos ter a familia restrita e não partilhada. Queremos ser livres, mesmo quando o Estado domina politicamente. A China usando o modelo maoista teve a lucidez de perceber que a economia tinha de funcionar na base do capitalismo. Com as redes sociais, o individualismo exagerado, a tendência para o radicalismo aumenta. Não admira que as posições e os partidos mais extremistas ganhem vantagem. Sempre no campo da direita. Os de esquerda, que também crescem, não tem sociologicamente possibilidades de ganhar. A excepção temporária foi na Grécia porque a economia colapsou. O povo acaba sempre por ter algum bom senso, mesmo quando preferencialmente olha para o seu umbigo.                Joaquim Almeida > Joaquim Almeida: Junte-lhe a ministra Dalila Rodrigues, com 64 anos, e a triste figura que fez no Parlamento perante a brilhante deputada Rita Matias, do Chega. Tem essa  Dalila boa idade para ter siso.                 Henrique Frazão > bento guerra: Benditos sejam estes "malucos", noutro contexto, malucos são os que agora por aqui governam.                 Manuel Magalhaes: Pois esperemos que Trump entenda que tem uma enorme responsabilidade entre mãos e que está muito para além do próprio Trump, esperemos que não a estrague com os seus “repentes”, a oportunidade pode ser única tanto para a América como para a Europa assim haja bom senso e realismo, porque, se falhar, o caso será muito sério e perigoso…

 

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