terça-feira, 19 de novembro de 2024

Revolução expectável

 

Que tem a ver – por cá - com o tipo de educação – ou deseducação - que as novas políticas propuseram, no abandono de preceitos que as próprias literaturas iam estatuindo, de acordo com a razão e o sentimento, postos, de certo modo, à margem, pelos teóricos hodiernos da libertinagem supostamente democrática. Mas tanto a crónica de Patrícia Fernandes, como os comentários da maioria, revelam aspectos da sociedade de que nem sonhávamos, neste desequilíbrio que a suposta igualdade entre os sexos veio proporcionar, sobretudo na questão do machismo, que o feminismo acentuado, ao que parece, veio reverter para um machismo fêmeo castrador dos homens. Felizmente que filmes como os da mocidade de Júlia Roberts, de encanto pela sua graciosidade, mas também pelas lutas sociais do seu desempenho, nos concedem a esperança de uma sociedade que mesmo em reviravoltas sucessivas, não deixará nunca de assumir a nobreza de princípios específicos do pensamento racional próprio da condição humana – seja feminina ou masculina, ou até mesmo assim-assim.

A grande divergência (2)

Sem os velhos empregos e sem salários que permitam sustentar a família, não admira que os homens se preocupem mais com a economia – e este aspecto fundamental redesenha o modo como se integram, ou não.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR18 nov. 2024, 00:2020

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1“It’s the economy”

Quando, a propósito das recentes eleições, se procurou identificar o que mais preocupava os norte-americanos, os dados apontaram claramente para a economia – ainda que muitos especialistas considerassem este aspecto surpreendente: na sua perspectiva, a economia “está óptima”. Trata-se de uma espécie de “great disconnect”, que um artigo do The New York Times descreve desta forma:

 “De acordo com os parâmetros habituais, a economia está forte. A inflação abrandou significativamente. Os salários estão a aumentar. O desemprego está próximo do mínimo dos últimos cinquenta anos. A satisfação profissional está a crescer. No entanto, os norte-americanos não vêem as coisas necessariamente desta forma.”

Não é, na verdade, uma desconexão muito diferente da nossa e, provavelmente, repete-se em muitos países europeus:

“As pessoas não se estão a comportar como se comportam quando acreditam que a economia está má. Estão a gastar, a passar férias e a mudar de emprego como costumam fazer quando acreditam que a economia está boa.”

O que muitos norte-americanos afirmam é que, apesar de serem capazes de satisfazer os seus compromissos essenciais, no final do mês sobra muita “irritação e ansiedade com os preços, a pandemia e a política” e muito pouco dinheiro. E as dificuldades económicas são maiores para aqueles que não detêm diploma universitário: têm salários mais baixos, menos benefícios e trabalhos fisicamente mais exigentes – e estas pessoas constituem a maioria da população.

Talvez isto fosse o suficiente para indicar a decisão final do pêndulo eleitoral: afinal, a maioria das sondagens apontava Donald Trump como sendo mais competente em assuntos económicos, e Kamala Harris optou por focar-se em outros temas, sem se distanciar de Biden. Mas a dimensão económica também tem servido para analisar outra tendência eleitoral: os homens tendem a preocupar-se mais com a economia e isso reforçaria a divergência política face às mulheres, que têm revelado uma inclinação pró-democrata.

Afirmar, contudo, que os homens tendem a preocupar-se mais com questões económicas exige uma interpretação mais subtil. É que ela remete para uma realidade pouco falada, mas que tem vindo, aos poucos, a revelar-se e que se prende com o impacto que o novo mundo das políticas de igualdade está a ter nos homens.

2Os rapazes perdidos

Para nos debruçarmos sobre este tópico, temos de começar pelo trabalho de Richard Reeves, fundador do American Institute for Boys and Men. Depois de décadas a estudar questões de desigualdade, Reeves deparou-se com dados preocupantes no que diz respeito ao sexo masculino e documentou-os em 2022 com a publicação de Of Boys and Men: why the modern male is struggling, why it matters, and what to do about it. A conclusão do seu trabalho é simples: os rapazes (e os homens) encontram-se em dificuldades.

Podemos apresentar o argumento de Reeves considerando três dimensões: ensino, economia e integração social, embora elas se entrecruzem muitas vezes. Comecemos pelo ensino. Reeves apresenta geralmente o seu argumento a partir do seguinte dado: em 1972, quando o Title IX foi aprovado, procurando garantir condições de igualdade para as mulheres nas universidades norte-americanas, o intervalo entre homens e mulheres a completar o ensino universitário era de 16 pontos percentuais. Em 2023, esse intervalo passou a ser de 18 pontos percentuaismas em sentido inverso:

Para o autor, é surpreendente que este número não seja alvo de preocupação, uma vez que é revelador de um conjunto de dificuldades que os rapazes têm sentido na escola: reprovam mais, têm piores resultados, entram em menor número na universidade e desistem em maior número do que as raparigas. E parte relevante da justificação é biológica: não só é mais difícil para os rapazes adaptarem-se à disciplina física que a escola exige (sobretudo se considerarmos a crescente diminuição de atividades físicas e intervalos), como os meninos amadurecem mais tarde. Pensemos, nomeadamente, no amadurecimento do córtex pré-frontal: aquela parte fundamental do cérebro que nos permite tomar decisões de longo prazo e reprimir o desejo imediato (como jogar playstation) com vista a objectivos de longo prazo (como estudar para o teste de amanhã que nos permitirá ampliar a hipótese de entrar na universidade). Isto acontece mais tarde nos rapazes, o que os deixa em desvantagem na competição escolar.

Mas há um outro aspecto preocupante, e que já se vai sentindo entre nós. Nos Estados Unidos, praticamente um em cada quatro rapazes na escola é diagnosticado com problemas de desenvolvimento ou de concentração: como sentem mais dificuldades em estar sentados durante tantas horas e se revelam mais desafiantes, a solução tem sido medicá-los. Mas Reeves pergunta: são os rapazes que estão a falhar na escola ou é a Escola que está a falhar aos rapazes?

Em termos económicos, o cenário é igualmente desafiador: a maioria dos homens norte-americanos ganha hoje menos do que a maioria dos homens ganhava na década de 1970 (ajustado à inflação, naturalmente), sobretudo em resultado de os trabalhos que tradicionalmente lhes cabiam, e que eram bem pagos (há mesmo quem defenda que eram excessivamente bem pagos), terem desaparecido devido aos processos de relocalização e automação. Sem os velhos empregos e sem salários que permitam sustentar uma família, não admira que os homens se preocupem mais com a economia – e este é um aspecto fundamental que redesenha o modo como se integram socialmente.

Os estudos colectados por Reeves revelam que os homens têm menos amigos do que as gerações anteriores e afirmam sentir-se sozinhos regularmente. É quatro vezes mais provável que cometam suicídio, três vezes mais provável serem afectados por drogas e álcool do que as mulheres e são as vítimas principais das “deaths of despair”. Muitos estudos reportam o sentimento de se sentirem obsoletos (em resultado da emancipação laboral da mulher) e alvo de alienação parental.

Esclareçamos, quase desnecessariamente, este aspeto: Reeves não recusa que a igualdade entre homens e mulheres seja um valor político – simplesmente recorda que isto não é jogo de soma zero: uns não têm de perder para outros ganharem. E se os meninos se perderem, toda a sociedade perde. Devemos estar, por isso, atentos ao impacto que as nossas medidas têm e aos efeitos contraprodutivos que negligenciamos. Afinal,

“Não se derruba uma ordem social com 12 mil anos sem se experienciarem efeitos culturais colaterais. Neste caso, é o deslocamento de muitos dos nossos rapazes e homens.”

3A divergência política dos homens

No seu trabalho, Richard Reeves tem apresentado algumas hipóteses para lidar com este problema: os rapazes deveriam entrar para a escola um ano mais tarde do que as raparigas; o ensino vocacional, que entre nós é visto com bastante desprezo, deve ser promovido por ser especialmente vantajoso para os rapazes (Jonathan Haidt, em A Geração Ansiosa, defende o mesmo); e devemos abandonar o uso da expressão “masculinidade tóxica” e todo o peso ideológico que ela carrega.

Mas, acima de tudo, o seu diagnóstico é útil para analisar as actuais tendências de voto: considerando tudo o que foi dito, será surpreendente que se registe uma divergência política dos jovens do sexo masculino para o partido republicano, como revela a análise das recentes eleições presidenciais?

Os estudos realizados ao longo do último ano já tinham mostrado que, apesar desta tendência pró-republicana, a maioria dos jovens não apresenta um perfil tipicamente conservador e tende a estar de acordo com um conjunto amplo de valores que são entendidos como progressistas – como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto (dentro de prazos razoáveis) e a igualdade entre homens e mulheres (vejo isto nos meus alunos constantemente). Mas sentem que as suas preocupações não são tidas em conta – pelo contrário, são demonizadas.

A jornalista Claire Cain Miller tem-se debruçado sobre o assunto e, ao entrevistar jovens que planeavam votar em Trump, notou que

 “eles se sentem desvalorizados. Disseram que se tem tornado mais difícil ser homem e valorizavam a força num presidente. No entanto, não exprimiam uma misoginia amarga, nem elogiaram as exibições exageradas de força adoptadas pela campanha de Trump. As suas preocupações eram sobretudo económicas, como a capacidade de cumprirem o papel tradicionalmente masculino de sustentar uma família.”

Encontramo-nos, contudo, no fio da navalha, como chama a atenção Daniel A. Cox:

“Devido a um sentimento de insegurança crescente, cada vez mais homens jovens estão a adoptar uma visão de soma zero da igualdade de género: se as mulheres ganham, os homens inevitavelmente perdem. É uma perspectiva que os torna defensivos e os encoraja a ignorar ou desprezar os desafios persistentes que as mulheres ainda enfrentam, e pode até estimular a misoginia.”

Regressemos a Reeves: se os dados nos mostram que os jovens do sexo masculino estão em dificuldades e as estruturas sociais não têm respostas para eles, não é surpreendente que sejam atraídos por líderes fortes ou figuras que não têm as melhores respostas. Voltaremos ao tema na próxima semana.

ELEIÇÕES EUA      ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA      AMÉRICA      MUNDO      HOMEM      SOCIEDADE      IGUALDADE DE GÉNERO

COMENTÁRIOS (de 20)

José Barros: A Patrícia Fernandes apenas aborda uma pequena parte do problema. Alguns exemplos: 1) há mais de 30 anos milhares de inquéritos sociais e estudos  meta-analíticos (Archer - 2006; Langrichtsen - 2012, Soares - 2018, Hammel - 2023)  vêm indicando taxas semelhantes de perpetração de violência doméstica entre géneros nos países ocidentais (sendo 50% da VD bidireccional e 50% unilateral, mas esta até prevalentemente feminina). Em Portugal, estudos sobre violência no namoro indicaram o mesmo. Porém, todos os países ocidentais tratam a VD como crime de género, referindo-o como violência contra mulheres e raparigas, não só nas políticas públicas, mas, em alguns países (Espanha), na lei. Curiosamente, o infanticídio que é praticado maioritariamente por mães (mais do dobro dos casos por comparação com os pais nos EUA e 80% mais nos países europeus) não é crime de género; 2) algumas formas de VD (como a alienação parental ou as alegações falsas) não são consideradas VD e até são socialmente aceites, porque vitimizam, sobretudo, homens (as mulheres vítimas desses fenómenos são um dano colateral do feminismo que quer a todo o custo negar que algumas mulheres possam ser agressoras para manter a narrativa de opressão); 3) em termos de meios de apoio, tomando Portugal como exemplo, há 40 casas de abrigo para mulheres e 1 para homens, apesar de os homens serem 1/3 das vítimas que necessitam de atendimento hospitalar (RASI - 2021); não há linhas de apoio para homens (várias para mulheres) e a CIG apenas reconhece a violência contra mulheres nos documentos publicados no seu site. Podia falar da mesma discriminação dos homens nos crimes sexuais ou nos direitos reprodutivos (os casos de fraude na paternidade, ou seja, de homens que são pais e não são informados disso pelas mulheres...e outros que acham que são, cuidam da criança e, anos depois, vêm a saber que não o são sem qualquer consequência para as mulheres que os enganaram). Há, pois, exemplos bem mais claros de desigualdades que prejudicam os homens do que aqueles referidos no artigo. Dito isto, a solução não passa por criar políticas de identidade para homens, mas sim, tratar todas as pessoas como iguais em direitos e deveres perante a lei. Até porque estas situações vitimizam não só homens, mas as mulheres à sua volta, como a VD sobre mulheres também afecta os homens à sua volta. A violência familiar afecta a família no seu todo.  Para isso, toda a política de prevenção e combate da VD teria de ser neutra do ponto de vista do género e ser repensada, mas ninguém se atreve sequer a questionar o feminismo radical nesse domínio                 Paulo Silva: Pensemos, nomeadamente, no amadurecimento do córtex pré-frontal [...] que nos permite tomar decisões de longo prazo e reprimir o desejo imediato [...] acontece mais tarde nos rapazes. A cara Patrícia Fernandes está a afirmar que existem ‘homens’ e ‘mulheres’, e que têm diferenças, mas o comunismo woke não pode tolerar isso... Não tarda vai ter uma trupe de wokes à perna como o colega do lado já tem.                 José Piçarra > José Barros: Bom dia. Muito agradeço o seu comentário a contribuir para este debate. Aguardemos pelos próximos textos da cronista, a ver até onde abordará o problema.  Eu creio que ninguém no seu perfeito juízo quererá políticas identitárias masculinas para contrabalançar, tal como a maioria concordará que igualdade entre os géneros perante a lei é a via a ser seguida. Fico é satisfeito de haver em Portugal quem finalmente reconheça as diferenças naturais entre os géneros e que as mesmas devem ser preservadas a bem das nossas relações sociais e que se questione também o caminho que está  a ser feito neste momento, com custos muito elevados para o género masculino, mas, ao mesmo tempo, que esse reconhecimento não implica que se queira pôr em causa todos os progressos feitos na emancipação feminina               Meio Vazio: Vale a pena manter a assinatura.                    Américo Silva: No Reino Unido o suicídio é a primeira causa de morte nos homens de menos de cinquenta anos, nos Estados Unidos e Canadá é a segunda, em 2022 mais de quatro vezes do que as mulheres. Os homens são cada vez mais vítimas de violência doméstica por parte das mães, das namoradas, das esposas, e também de violência sexual.                Paul C. Rosado: Excelente, mais uma vez. O problema é mesmo sério. E mais profundo. A hipergamia agudizou-se. As raparigas são educadas para terem um ego hiper inflacionado em relação aos rapazes. O resultado já é que uma grande parte dos homens jovens são completamente desprezados pelo sexo oposto. A historia demonstra-nos o que acontece quando temos um grande número de homens jovens, sem par romântico...                     Ana Maria Caldeira: Excelente. Sempre.                 João Floriano > José Piçarra: Concordo integralmente com o seu comentário sobretudo no que diz respeito à emancipação feminina. Contudo essa emancipação está muitas vezes a ser feita com prejuízo do lado masculino. Nesse aspecto a emancipação masculina que também se justifica à luz da emancipação feminina não é positivamente aceite pela sociedade que continua ainda a ver o homem como o sustento da família. Repare como um casal em que ela vai trabalhar e ele fica em casa a tratar das tarefas domésticas, dos filhos e do passeio do cão, é entendido com desconfiança e cepticismo pela família e pela sociedade. Ainda há muito preconceito e ideias feitas que atingem sobretudo o homem. Este é mais alvo de estereotipos do que  a mulher. Chegamos ao ponto de os homens terem medo das mulheres e uma relação equilibrada não se pode basear no medo geral de não ser compreendido, não ser aceite., ser excluídoEm 1992, Paulo Gonzo lançou uma canção lindíssima e premonitória chamada Jardins Proibidos. Já lá vão 38 anos e na altura pareceu-nos algo estranho. Hoje é perfeitamente compreensível que as mulheres têm os seus Jardins Proibidos, onde cada vez menos os homens entram e onde são cada vez mais os excluídos. Ambos perdem!

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