Ouvi hoje um programa, creio que na RTP 3, com Mariana
Mortágua e Duarte Marques - este do CDS, com parecer, naturalmente, oposto e mais equilibrado - em que um dos temas propostos
foram as viagens pagas aos deputados por empresas particulares, tendo aquela
usado os seus conhecimentos de economista para atacar com grande sobranceria e
facúndia displicente o facto, com relevo absurdo de um caso banal, bem
denunciador da nossa irreversível tendência, não para o trabalho consciente,
mas para o ataque maldoso e fútil, escorraçador do erro alheio, por vezes apenas
como exibição de virtude e saliência próprias. Fiquei abismada, pois, tendo
lido em tempos coisas sobre o seu pai, pouco abonatórias, entendia que ela
devia ser mais comedida nos discursos de ataque, atida ao princípio dos
telhados de vidro que não admitem que neles se joguem pedras, mas o facto é que
os telhados de vidro são do pai, não são dela, embora se reveja nas histórias
criminosas do progenitor, ao que parece.
A verdade é que as tinha
perdido de vista, às chefes do Bloco de Esquerda, decididamente avessa ao modo
beatamente prestável com que se solidarizam com os infortúnios, pretendendo dispor
dos dinheiros do poderoso empréstimo nacional de uma forma atrevidamente
desonesta, pois não conta saldar a dívida, aparentemente para criar postos de
trabalho ou aumentar as pensões, com o dinheiro do trabalho alheio,
estrangeiro, no caso. E, procurando informar-me, fiquei ofuscada com a
saliência da Mortágua no You Tube, a sua campanha eleitoral em proveito
próprio, e para isso acusando o PSD e o CDS e o próprio PS, desejosa de a todos
eles se sobrepor, no atropelo repetitivo dos seus argumentos, caindo para a
mesma banda, tais os pingos de chuva dos telhados.
Não, não perco mais tempo com
as Três Graças – a mana incluída - talvez o povo os eleja, a esses do Bloco,
inocente Capuchinho Vermelho na boca do Lobo Feroz.
Prefiro os textos
desempoeirados de um jovem democrata a sério - João Miguel Tavares - com a argúcia temperada de
sensatez, na sua crítica ousada:
Lá tenho eu de falar de meninos e meninas
João Miguel Tavares
29 de agosto de 2017
Não estava a planear falar
sobre o assunto dos livros para meninas e para rapazes, até porque tenho
abusado de crónicas sobre políticas de identidade e o Ricardo Araújo Pereira
disse tudo o que importa no último Governo Sombra. Aliás, a sua intervenção
tornou-se tão ou mais viral do que o caso que lhe deu origem, e por isso a
decisão apressada e mal fundamentada de recomendar a retirada dos livros já foi
denunciada como devia. Contudo, ao ver Teresa Fragoso, presidente da
Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), defender o indefensável
na SIC Notícias, sinto-me obrigado a regressar ao tema.
Primeiro ponto: qualquer
pessoa consideraria inaceitável a existência de livros diferenciados para
rapazes e para raparigas nos currículos escolares. É o caso? Não.
Estamos a falar de cadernos de actividades pré-escolares lançados num mercado
livre. Só compra quem quer. A questão que se coloca, pois, é se uma editora
privada deve ou não ter liberdade para fazer os livros que entender, sejam para
meninos ou meninas, novos ou velhos, cristãos ou hindus. Parece-me bastante
óbvio que essa liberdade deve existir e que os livros para meninos e para
meninas não necessitam do imprimatur da CIG para serem postos à venda.
Segundo ponto: existindo
uma Comissão para a Igualdade de Género, deve ou não ela poder pronunciar-se
sobre o conteúdo de um livro? Sim, deve. Convinha, contudo, que mantivesse
alguma coerência na sua acção e não embarcasse na gritaria das redes sociais. Quando
a CIG declara que uma publicação deve ser retirada do mercado “por
recomendação” do ministro da tutela (Eduardo Cabrita, que está muito
caladinho), é evidente que isso tem um peso significativo e obrigações
acrescidas. Desde logo, esta: a de fundamentar muito bem a sua decisão. Onde
está essa fundamentação? Ninguém a viu. O que se viu foi uma nota à comunicação
social com cinco parágrafos onde são citados dois exemplos que podem ser
contraditados por outros em que as meninas aparecem melhor tratadas do
que os rapazes.
Terceiro ponto: desmontada
a patranha, eis que a polémica deixou de ser sobre a dificuldade dos exercícios
e passou a ser sobre o excesso de princesas e piratas. As meninas, afinal, já não
eram tratadas como burras – estavam apenas a impingir-lhes demasiado
cor-de-rosa. Foi essa a linha adoptada por Teresa Fragoso na sua argumentação
na SIC Notícias. Má ideia: não só não foi isso que aqueceu os “ânimos” que ela
achou por bem “apaziguar”, como, se quiser ser minimamente coerente, a CIG terá
de passar a recomendar a retirada de todos os produtos diferenciados para rapaz
e rapariga que existam no mercado (como muitos desejam, aliás) e decretar
guerra ao azul e ao cor-de-rosa.
Quarto ponto: tristemente,
as palavras “diferente” e “discriminatório” tornaram-se um joguete no mundo
delirante das políticas de identidade. Nalguns casos, se eu não
assumir a diferença estou a discriminar (por exemplo, nas inúmeras variantes de
LGBTQ+). Noutros casos, estou a discriminar se assumir a diferença (por
exemplo, nos livros para meninos e meninas). A gente nunca percebe bem qual
é a lógica que preside a estes raciocínios, talvez por não terem lógica alguma.
Que isto se passe assim entre jovens universitários, eleitores do Bloco de
Esquerda e docentes do ISCTE, eu ainda percebo. Que entidades estatais
embarquem nesta conversa da treta sem sequer fazerem o seu trabalho de casa, já
me custa um bocadinho a aceitar.
O meu problema com Aníbal Cavaco Silva
João Miguel Tavares
Público, 2 de setembro de
2017
Não tenho dúvidas de que uma das principais razões para Cavaco Silva
ser tão odiado se deve o facto de ele ser a prova viva, como nenhum outro
político o é, da existência de um fosso largo, longo e profundo entre as elites
portuguesas e o português comum. Cavaco sempre foi encarado como um arrivista,
não tanto por ter vindo da província, mas por nunca ter deixado de ser
provinciano. Nascer e crescer em Boliqueime não tem mal algum para a corte
lisboeta – pelo contrário, é até uma prova de que o elevador social funciona –,
mas tem muito mal permanecer em Lisboa com os trejeitos da província, sem nunca
assimilar a cultura oligárquica e os bons modos da capital. Era isso que
a direita de O Independente não suportava,
e é isso que a esquerda queque socialista e os privilegiados do Bloco ainda não
conseguem engolir – como foi possível que aquele homem tivesse
conseguido quatro maiorias absolutas, feito único e dificilmente repetível na
História de Portugal?
Para esses, Cavaco é tanto mais irritante quanto mais incompreensível
lhe parece o seu sucesso político. Todos nós, que temos voz nos media, gostamos
de acreditar que sabemos aquilo que o povo sente e pensa, e não poucas vezes
atrevemo-nos até a falar em nome dele. As quatro maiorias de Cavaco demonstram
a arrogância desse olhar – do qual, diga-se, não me estou a excluir. Para mim,
há dois Cavacos completamente distintos, e eu só percebo metade. Tendo
atravessado toda a adolescência e o início da minha vida adulta com Cavaco
Silva como primeiro-ministro, compreendo muito bem o período 1985-1995 e as
razões do seu sucesso. Sobretudo para quem, como eu, cresceu em Portalegre, as
melhorias na qualidade de vida foram gigantescas e bem mais palpáveis do que
nos circuitos privilegiados da capital.
Já a metade de Cavaco presidente da República é todo um outro mundo,
que me é impossível de elogiar e, em boa parte, de compreender, na medida em
que falhou em tudo o que era mais importante. Cavaco foi aquilo que cada tempo lhe permitiu: um
bom primeiro-ministro numa altura em que chovia dinheiro da CEE e o país queria
mudar; um mau presidente da República quando a economia parou e o país se
atirou para os braços de José Sócrates. Prosperou politicamente em tempos de
prosperidade e afundou-se em tempos de estagnação económica e insídia moral. É
legítimo duvidar que tenha marcado o seu tempo – é bem mais provável que se
tenha deixado marcar por ele.
É por isso que o Cavaco Silva que apareceu na Universidade de Verão do
PSD tanto me desagradou. Não foi por o ver atrevido e crítico daqueles que
pregam o fim da austeridade pela frente e fazem cativações e aumentos de
impostos por detrás, mas pelo discurso impante e altivo sobre o uso restrito
da palavra presidencial. Vê-lo criticar a “verborreia frenética da maioria dos
políticos dos nossos dias”, que falam muito sem que digam “nada de relevante”,
demonstra bem o seu autismo político e a absoluta incapacidade para analisar a
desgraça dos seus mandatos presidenciais. Sim, Cavaco nunca poderá ser
acusado de verborreia – apenas de se deixar reduzir à absoluta irrelevância
enquanto via o país afundar-se financeira e moralmente entre 2005 e 2011.
Durante seis anos, Cavaco ou não viu ou, se viu, não agiu. Ora, se um
presidente não serve para nos avisar de que há um primeiro-ministro a afundar o
Estado e a assaltar todos os poderes, ele serve para quê, afinal? Entre uma
múmia e Marcelo, Marcelo é a boa opção.
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