quinta-feira, 7 de setembro de 2017

«Lana caprina et alia»


Ouvi hoje um programa, creio que na RTP 3,  com Mariana Mortágua e Duarte Marques - este do CDS, com parecer, naturalmente, oposto e mais equilibradoem que um dos temas propostos foram as viagens pagas aos deputados por empresas particulares, tendo aquela usado os seus conhecimentos de economista para atacar com grande sobranceria e facúndia displicente o facto, com relevo absurdo de um caso banal, bem denunciador da nossa irreversível tendência, não para o trabalho consciente, mas para o ataque maldoso e fútil, escorraçador do erro alheio, por vezes apenas como exibição de virtude e saliência próprias. Fiquei abismada, pois, tendo lido em tempos coisas sobre o seu pai, pouco abonatórias, entendia que ela devia ser mais comedida nos discursos de ataque, atida ao princípio dos telhados de vidro que não admitem que neles se joguem pedras, mas o facto é que os telhados de vidro são do pai, não são dela, embora se reveja nas histórias criminosas do progenitor, ao que parece.
A verdade é que as tinha perdido de vista, às chefes do Bloco de Esquerda, decididamente avessa ao modo beatamente prestável com que se solidarizam com os infortúnios, pretendendo dispor dos dinheiros do poderoso empréstimo nacional de uma forma atrevidamente desonesta, pois não conta saldar a dívida, aparentemente para criar postos de trabalho ou aumentar as pensões, com o dinheiro do trabalho alheio, estrangeiro, no caso. E, procurando informar-me, fiquei ofuscada com a saliência da Mortágua no You Tube, a sua campanha eleitoral em proveito próprio, e para isso acusando o PSD e o CDS e o próprio PS, desejosa de a todos eles se sobrepor, no atropelo repetitivo dos seus argumentos, caindo para a mesma banda, tais os pingos de chuva dos telhados.
Não, não perco mais tempo com as Três Graças – a mana incluída - talvez o povo os eleja, a esses do Bloco, inocente Capuchinho Vermelho na boca do Lobo Feroz.
Prefiro os textos desempoeirados de um jovem democrata a sério - João Miguel Tavares - com a argúcia temperada de sensatez, na sua crítica ousada:
Lá tenho eu de falar de meninos e meninas
João Miguel Tavares
29 de agosto de 2017
Não estava a planear falar sobre o assunto dos livros para meninas e para rapazes, até porque tenho abusado de crónicas sobre políticas de identidade e o Ricardo Araújo Pereira disse tudo o que importa no último Governo Sombra. Aliás, a sua intervenção tornou-se tão ou mais viral do que o caso que lhe deu origem, e por isso a decisão apressada e mal fundamentada de recomendar a retirada dos livros já foi denunciada como devia. Contudo, ao ver Teresa Fragoso, presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), defender o indefensável na SIC Notícias, sinto-me obrigado a regressar ao tema.
Primeiro ponto: qualquer pessoa consideraria inaceitável a existência de livros diferenciados para rapazes e para raparigas nos currículos escolares. É o caso? Não. Estamos a falar de cadernos de actividades pré-escolares lançados num mercado livre. Só compra quem quer. A questão que se coloca, pois, é se uma editora privada deve ou não ter liberdade para fazer os livros que entender, sejam para meninos ou meninas, novos ou velhos, cristãos ou hindus. Parece-me bastante óbvio que essa liberdade deve existir e que os livros para meninos e para meninas não necessitam do imprimatur da CIG para serem postos à venda.
Segundo ponto: existindo uma Comissão para a Igualdade de Género, deve ou não ela poder pronunciar-se sobre o conteúdo de um livro? Sim, deve. Convinha, contudo, que mantivesse alguma coerência na sua acção e não embarcasse na gritaria das redes sociais. Quando a CIG declara que uma publicação deve ser retirada do mercado “por recomendação” do ministro da tutela (Eduardo Cabrita, que está muito caladinho), é evidente que isso tem um peso significativo e obrigações acrescidas. Desde logo, esta: a de fundamentar muito bem a sua decisão. Onde está essa fundamentação? Ninguém a viu. O que se viu foi uma nota à comunicação social com cinco parágrafos onde são citados dois exemplos que podem ser contraditados por outros em que as meninas aparecem melhor tratadas do que os rapazes.
Terceiro ponto: desmontada a patranha, eis que a polémica deixou de ser sobre a dificuldade dos exercícios e passou a ser sobre o excesso de princesas e piratas. As meninas, afinal, já não eram tratadas como burras – estavam apenas a impingir-lhes demasiado cor-de-rosa. Foi essa a linha adoptada por Teresa Fragoso na sua argumentação na SIC Notícias. Má ideia: não só não foi isso que aqueceu os “ânimos” que ela achou por bem “apaziguar”, como, se quiser ser minimamente coerente, a CIG terá de passar a recomendar a retirada de todos os produtos diferenciados para rapaz e rapariga que existam no mercado (como muitos desejam, aliás) e decretar guerra ao azul e ao cor-de-rosa.
Quarto ponto: tristemente, as palavras “diferente” e “discriminatório” tornaram-se um joguete no mundo delirante das políticas de identidade. Nalguns casos, se eu não assumir a diferença estou a discriminar (por exemplo, nas inúmeras variantes de LGBTQ+). Noutros casos, estou a discriminar se assumir a diferença (por exemplo, nos livros para meninos e meninas). A gente nunca percebe bem qual é a lógica que preside a estes raciocínios, talvez por não terem lógica alguma. Que isto se passe assim entre jovens universitários, eleitores do Bloco de Esquerda e docentes do ISCTE, eu ainda percebo. Que entidades estatais embarquem nesta conversa da treta sem sequer fazerem o seu trabalho de casa, já me custa um bocadinho a aceitar. 
O meu problema com Aníbal Cavaco Silva
João Miguel Tavares
Público, 2 de setembro de 2017
Não tenho dúvidas de que uma das principais razões para Cavaco Silva ser tão odiado se deve o facto de ele ser a prova viva, como nenhum outro político o é, da existência de um fosso largo, longo e profundo entre as elites portuguesas e o português comum. Cavaco sempre foi encarado como um arrivista, não tanto por ter vindo da província, mas por nunca ter deixado de ser provinciano. Nascer e crescer em Boliqueime não tem mal algum para a corte lisboeta – pelo contrário, é até uma prova de que o elevador social funciona –, mas tem muito mal permanecer em Lisboa com os trejeitos da província, sem nunca assimilar a cultura oligárquica e os bons modos da capital. Era isso que a direita de O Independente não suportava, e é isso que a esquerda queque socialista e os privilegiados do Bloco ainda não conseguem engolir como foi possível que aquele homem tivesse conseguido quatro maiorias absolutas, feito único e dificilmente repetível na História de Portugal?
Para esses, Cavaco é tanto mais irritante quanto mais incompreensível lhe parece o seu sucesso político. Todos nós, que temos voz nos media, gostamos de acreditar que sabemos aquilo que o povo sente e pensa, e não poucas vezes atrevemo-nos até a falar em nome dele. As quatro maiorias de Cavaco demonstram a arrogância desse olhar – do qual, diga-se, não me estou a excluir. Para mim, há dois Cavacos completamente distintos, e eu só percebo metade. Tendo atravessado toda a adolescência e o início da minha vida adulta com Cavaco Silva como primeiro-ministro, compreendo muito bem o período 1985-1995 e as razões do seu sucesso. Sobretudo para quem, como eu, cresceu em Portalegre, as melhorias na qualidade de vida foram gigantescas e bem mais palpáveis do que nos circuitos privilegiados da capital.
Já a metade de Cavaco presidente da República é todo um outro mundo, que me é impossível de elogiar e, em boa parte, de compreender, na medida em que falhou em tudo o que era mais importante. Cavaco foi aquilo que cada tempo lhe permitiu: um bom primeiro-ministro numa altura em que chovia dinheiro da CEE e o país queria mudar; um mau presidente da República quando a economia parou e o país se atirou para os braços de José Sócrates. Prosperou politicamente em tempos de prosperidade e afundou-se em tempos de estagnação económica e insídia moral. É legítimo duvidar que tenha marcado o seu tempo – é bem mais provável que se tenha deixado marcar por ele.

É por isso que o Cavaco Silva que apareceu na Universidade de Verão do PSD tanto me desagradou. Não foi por o ver atrevido e crítico daqueles que pregam o fim da austeridade pela frente e fazem cativações e aumentos de impostos por detrás, mas pelo discurso impante e altivo sobre o uso restrito da palavra presidencial. Vê-lo criticar a “verborreia frenética da maioria dos políticos dos nossos dias”, que falam muito sem que digam “nada de relevante”, demonstra bem o seu autismo político e a absoluta incapacidade para analisar a desgraça dos seus mandatos presidenciais. Sim, Cavaco nunca poderá ser acusado de verborreia – apenas de se deixar reduzir à absoluta irrelevância enquanto via o país afundar-se financeira e moralmente entre 2005 e 2011. Durante seis anos, Cavaco ou não viu ou, se viu, não agiu. Ora, se um presidente não serve para nos avisar de que há um primeiro-ministro a afundar o Estado e a assaltar todos os poderes, ele serve para quê, afinal? Entre uma múmia e Marcelo, Marcelo é a boa opção


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