quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Como se fosse um estranho


Um artigo de Bagão Félix sobre um programa televisivo musical na RTP2 – de um autor catalão - que merecia ser divulgado também na RTP1, ou noutro qualquer canal que se preze e tenha em vista a formação cultural do público, independentemente da luta pelas sondagens sobre as respectivas visualizações, no propósito medíocre de distrair apenas o povo, ou colher exemplos de casos individuais de utilidade pública, talvez, mas por vezes redutíveis a puras mexeriquices popularuchas, sob a capa da seriedade, que nos provocam um asco intolerável. O segundo artigo de Bagão Félix foca ainda o atentado em Barcelona, com observações pertinentes sobre a “coragem” dos “sem medo”, que aproveitam os actos terroristas apenas para incriminar o governo e exigir a independência da Catalunha. Concordando com as observações do articulista, não entendo, todavia, a sua observação final, sobre o pai da filha morta desejando abraçar o muçulmano, como acto de paz e aliança. Realmente, o homem que perdeu a filha num ataque terrorista, não desabou no seu desespero justo senão para abençoar o judeu ou muçulmano, inocente do acto do terrorista. A mim parece antes um acto de “simbolismo de intervenção” que me repugna, em atenção à criança morta, atitude de aparato profundamente pedante e descontextualizado.
Tudo isto é Ópera
Público, 31 de Agosto de 2017
Volto à televisão que nos é disponibilizada nos canais nacionais. Não já para acentuar a indigente mistura de parolice e alienação de alguns deles, nem para insistir na overdose futebolística por um qualquer (não) motivo, que vem transformando os canais informativos por cabo (privados) em canais temáticos desportivos. Ou é a previsão de um jogo, ou o comentário depois do jogo, ou perguntas tontas e repetidas a espectadores antes e depois, ou uma qualquer conferência de imprensa com prioridade a qualquer hora, ou uma douta análise sobre arbitragem ou uma especulação sobre qualquer nada, ou qualquer invenção para entreter o pagode. Custa-me até observar o mimetismo de canais respeitáveis a alinhar pelo pior padrão.
Não, hoje quero concentrar-me num conjunto de programas que a RTP 2 transmitiu e que merece ser destacado. Falo de “Tudo isto é ópera”, concebido e brilhantemente apresentado pelo catalão Ramón Gener. Foi um oásis no meio de tanto lixo que, em outros canais, nos querem impingir, mormente no Verão. Feito com criatividade, sentido de humor, alegria, tão didáctico quanto simples e original, tão expressivo quanto apelativo no modo como nos fala de compositores e óperas famosas com uma linguagem de profunda naturalidade.
Ramón Gener é genial. Formado em Humanidades, teve uma carreira musical como pianista e, sobretudo, como barítono representando papéis importantes em muitas óperas.  Há seis anos, resolveu deixar o canto e iniciar uma nova etapa da sua vida como divulgador musical. Foi já neste registo que concebeu “Tudo isto é ópera”, que tem sido apresentada não só em Espanha e Portugal, como na Alemanha, Áustria, Suíça, Itália, Austrália, Letónia, Austrália, Chile, Colômbia e Argentina, e ainda na Coreia do Sul, Singapura e Mongólia.
O autor e apresentador também é um brilhante poliglota, dominando não apenas as suas línguas maternas (castelhano e catalão), como o inglês, o alemão e o italiano. Para quem viu os programas, percebe como isto foi também determinante para o seu resultado final. Esta série ganhou muitos prémios, enquanto melhor programa de divulgação cultural e documental.
Vale a pena (re)vê-lo, mesmo que não se aprecie ópera. Ramón Gener consegue, com um soberbo dinamismo, conciliar o que muitos não conseguem no mundo da música: tornar popular a erudição, demonstrando que a música dita clássica pode ser divertida e atractiva e que a música e a palavra são não só conciliáveis, como irmãs siamesas. De um modo consciente e brilhantemente transversal. Como ele gosta de repetir, “a ópera é (também) a vida”.
Numa entrevista que deu, depois do início desta produção espanhola e alemã em 2015, o autor diz que há um cliché sobre a ópera que, para quase todos, significa algo de aborrecido, incompreensível e antigo. Afirma: “hoje vive-se muito depressa, tem-se pouco tempo, e há predilecção por conteúdos culturais que exigem menos esforço. O meu trabalho no programa é explicar que, afinal, não é necessário muito trabalho para usufruir da ópera que nos pode abrir também para o mundo”.
Diz ainda que “música culta” é uma expressão que deveria ser evitada, porque “é o zénite do pejorativo. Digamos, apenas, música e é tudo”. Num dos últimos programas, o autor consegue oferecer-nos o pai da ópera (Claudio Monteverdi, 1567-1643) e a considerada primeira obra lírica há 410 anos (“Orfeu “) numa abordagem quase contemporânea, ao estilo da música pop. Notável!
Agora que a série terminou na RTP 2, bom seria que a televisão pública voltasse, em breve, a transmiti-la, em bom horário e com uma extensa promoção. Vale a pena, ainda que perca, na obsessão das audiências, para a indigestão telenovelista, futebóis e música apimbada.
Barcelona entre o terror, a vergonha e o exemplo
4 de Setembro de 2017
Passaram quase três semanas sobre os trágicos acontecimentos em Barcelona. As Ramblas voltaram ao frenesim do Verão e de um turismo apopléctico. “Não tenho medo” (“No tinc por”) foi a exortação, ainda que naturalmente o haja. Mas – para o bem ou para o mal – a memória já não é o que era. Acontecimentos graves ou ligeiros, profundos ou efémeros, tenebrosos ou divertidos esfumam-se, anulados ou esbatidos pelos que se lhes sucedem numa girândola vertiginosa onde quase só há espaço para o estar e onde parece já não caber o ser. Tudo se transforma numa futura efeméride ou num fugaz regresso por associação de acontecimentos. De uma maneira quiçá rude, a única memória que perdura é a da irreversibilidade da morte. Há sempre candentes chamamentos, exaltação de sentimentos, lutos sociais e palmas, palavras pesadas e creio que sinceras de circunstância, promessas inúteis e declarações pomposas. Depois, é o lugar para o sótão da memória. Para os que desapareceram, passado o percurso dos dias seguintes, resta a memória dos próximos. A “normalidade” volta às notícias, às conversas, aos facebook e outras expressões virtuais de relação. A tudo isto acresce o desvalor da morte, quase banalizada. Primeiro, é um choque telúrico e também de medo, depois é um registo estatístico e comparativo. Tudo graduado e hierarquizado. Morte aqui é assunto grave. No Iraque, na Síria, no Paquistão, no Afeganistão, no Mediterrâneo, sempre em escala brutal e recorrente, é rodapé noticioso e é indiferença ou atenção de desacompanhados neurónios na nossa Europa.
Volto a Barcelona e à impressiva manifestação de 26 de Agosto. O que vimos nos ecrãs televisivos e nas fotos na comunicação social?  Protestos constantes contra o Rei e o governo central e vivas à Catalunha independente e a outras acções afins. Momentos de luto, de respeito, de solene e profunda homenagem aos mortos? Houve, evidentemente, mas engolidos e trucidados por deslocadas e oportunistas expressões de contestação. Quem ali tivesse chegado e não soubesse do que se tratava, até poderia deduzir que a culpa daquele hediondo atentado foi do Rei Felipe VI e do Governo de Rajoy (evidentemente de direita, pois que de esquerda ou do Podemos outro galo cantaria). Havia cartazes que diziam “as vossas políticas são os nossos mortos”. Outros cartazes sentenciavam “Felipe, o povo quer paz, não negócios de armas”, paradoxalmente depois de um atentado em que a terrorista arma letal foi uma banal furgoneta! Uma vergonha inqualificável.
Os que assim agiram não tiveram, ao menos, o pejo de guardar os seus legítimos protestos para outra altura. Mas, o pior ainda estava para vir. Entre uma profusão de cartazes de protesto de política interna, nem um que se tenha visto a condenar, preto no branco, os terroristas. Havia muitos dizendo “Não à islamofobia”, enquanto eram explícitas ou sugeridas outras fobias, como ao rei e monarquia, à Espanha e à direita democrática. Enfim, sempre moderados para o Islão radical, sempre radicais para a diferença democrática. Felizmente vivem em liberdade!

No meio de tanta hipocrisia e aproveitamento, houve um gesto que vale mais do que toda a manifestação. O pai espanhol de uma criança de três anos que morreu no atentado, disse que sentia “necessidade de abraçar um muçulmano”, para esbater e amenizar a dispersão de ódio, tendo o imã muçulmano, que vive na localidade daquele pai, acedido ao seu pedido. O momento do abraço ocorreu à porta da mesquita onde foi realizada a homenagem e encerra, em si, um gesto corajoso e de incitamento à paz, mesmo nas mais terríveis circunstâncias em que pais jovens perdem um filho do seu sangue. Ao ver as imagens, ainda quero crer na vitória do Bem.

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