Mais um artigo de um jovem bem
formado, com os pés assentes no chão, e conhecedor do pretenso direito dos
povos à autodeterminação, para isso, segundo ele, lhes bastando agarrar na caneta
e votar.
Eu já ouvira isso em tempos,
quando se berrava sobre os direitos dos povos colonizados, e sempre vira na
questão um poderoso e eficaz esquema de malandrice e cinismo, dado que a
autodeterminação, na minha tímida opinião, só poderia ser atribuível a pessoas
com algum esclarecimento e luzes de entendimento no aparo da caneta, sem o que
seriam presa fácil de governantes ambiciosos e sem escrúpulos como se veria, no
nosso caso de colonizadores de longa data, com Moçambique, após a
autodeterminação, ou antes, a independência, porque aquela outra não existiu, ficando
Moçambique, à la longue, reduzido à condição de um dos mais pobres países do
mundo e o povo de Angola sujeito a um governante megalómano, esquecido do seu
povo, etc, etc, e apenas entregue ao seu próprio proveito, esquecido da
efemeridade deste mundo.
Nunca imaginara que a “nobre Espanha, como
cabeça ali de Europa toda” fosse tão pouco coesa e tão pouco patriótica –
apesar do separatismo basco e talvez também do galego – e gerasse em si povos tão
indiscretamente antipatriotas. É como se, por aqui, o Alentejo da minha’alma,
ou qualquer dos nossos outros compartimentos territoriais, decidisse erguer a
sua própria bandeira em luta contra a das quinas, a pretexto de não lhe
interessar mais ser celeiro da nação, com os seus trigos ou com as suas rolhas.
Sempre acreditei no sentimento que une cada nação, chamado patriotismo, mesmo
que este se revele apenas pelo fervor de vitória em termos futebolísticos, sendo
a ausência dele, hoje, substituída pelo de amor pela humanidade, como coisa de
jovens megalómanos, incapazes, contudo de amar seja o que for, tirante os
prazeres do corpo.
Não, não entendo as ânsias
separatistas numa nação coesa que me habituei a respeitar no seu todo, e essas
ambições do povo catalão à independência parecem-me pura traição a um ideal
nacionalista, válido como outro qualquer.
A nossa independência portuguesa
é de raiz, dos tempos em que começámos como condado e tivemos um condezinho
ambicioso a lutar por um reino, além de outras lutas posteriores, com gente
corajosa metida ao barulho e ao amor pela sua pátria. Não se trata de um país
como Espanha, de união forjada ao longo dos tempos, que numa altura de uniões e
coesões, como esta europeia, decide esfrangalhar-se sem decoro.
Por isso discordo de João
Miguel Tavares, que aqui se me afigura apenas estouvado e pretensiosamente buscador
de uma aura progressista, desejoso de, em função do seu ideal democrático, de
afirmação indispensável hoje em dia para quem se preze, aparentar liberdade em
relação ao preconceito, e, na realidade, estando preso a outros valores de um
conhecimento recente, que fazem que despreze essa coisa da bandeira, trocando-a
por uma caneta, possibilitando a alternativa de ser ou não rasgada essa bandeira.
Por amor dos seus filhos – de J.
M. T - e de todos os filhos nossos, ou netos ou bisnetos, eu desejaria que a
bandeira nacional espanhola não fosse rasgada. Discordo, pois, do povo catalão
que quer rasgar a bandeira dando um pontapé na sua pátria, pátria do mio Cid,
de Don Quixote ou de Sancho Pança, de tão risonha ou sensível expressão
artística, com o flamenco e o salero da mulher sevilhana, mais o Museu do Prado
e os Goyas e Dalis, e o Concerto de Aranjuez que nos penetra a alma de
suavidade e profundeza, mais o museu do Prado e o Escorial, nomes que enchem a
boca e o coração, de sonoridade e orgulho…
Como se pode deixar de amar um
todo que nos definiu no mundo, e propor um referendo idiota de consulta ao povo
sobre se quer ser independente ou não?! O povo não é sereno, deixa-se levar
pelas palavras sonoras de gente ambiciosa que quer dividir para poder reinar
também e lamber da gamela. Sem escrúpulos.
Deixem a Catalunha decidir o seu destino
Nenhuma democracia deve
impedir os seus cidadãos de exercerem o mais básico dos direitos: pegar numa
caneta e votar.
João Miguel Tavares
Público, 23 de setembro de
2017
Todas as críticas em
relação à forma como o referendo sobre a independência da Catalunha foi
convocado são justas, tal como é justo considerar que os partidos
pró-independência estão a apostar na violência das autoridades espanholas para
conseguirem nas ruas aquilo que possivelmente não conseguiriam nas urnas. Ainda
assim, apesar de todos os abusos e de todo o radicalismo, a intransigência de
Madrid tem como consequência uma acusação difícil de refutar: os catalães
estão a ser impedidos de votar e decidir o seu próprio destino.
Todos conhecemos a
objecção jurídica a um referendo: não é Madrid que o impede, mas a Constituição
espanhola. Certo. Só que essa foi a justificação utilizada para proibir
e combater todos os movimentos independentistas durante os séculos XIX e XX.
Hoje em dia, a utilidade política desse argumento é nula, e só convence quem já
está convencido. É próprio de qualquer Constituição defender a
integridade territorial do país. Mas se nenhuma parte de um território
puder algum dia sonhar em ser independente, dado esse desejo ser
invariavelmente inconstitucional, a única alternativa que resta é o recurso à
violência — porque só através da violência a independência poderá algum dia ser
alcançada. É isso que os espanhóis desejam que venha a acontecer na
Catalunha?
De um lado, está a
Constituição espanhola. Do outro, o direito — que é suposto ser universal — à
autodeterminação. O que temos na Catalunha são dois
direitos fundamentais em conflito. Para evitar o recurso à força, eles só
podem ser geridos politicamente, e não através de acórdãos do Tribunal
Constitucional, que está naturalmente obrigado a defender uma Constituição que
impede a independência da Catalunha. Se a Constituição espanhola não autoriza
as comunidades autónomas a referendarem questões relacionadas com a soberania
nacional, a única solução constitucionalmente aceitável seria mudar a
Constituição, ou então convocar todo o povo espanhol para decidir se os
catalães têm ou não direito à sua independência. O que significa que a
única solução é uma não-solução — seria como referendar se o tio milionário
deve continuar a fazer parte da família.
Embora o governo
espanhol tenha a força da lei do seu lado, não há como extirpar de um habitante
do século XXI a convicção do seu direito à autodeterminação. As leis são
bonitas e muito úteis, mas não resolvem todos os problemas da existência
humana. Juridicamente, Olivença é portuguesa. Só que existe esta
chatice: os seus habitantes preferem ser espanhóis. Estará alguém interessado
em invadir Olivença com uma G3 na mão direita e a acta do Congresso de Viena de
1815 na mão esquerda? Não é nos cartapácios de Direito que se encontram
soluções mágicas para os impasses políticos.
Tenho perfeita consciência
de todos os problemas que uma hipotética separação da Catalunha iria provocar,
desde a proliferação do separatismo pela Europa fora à afirmação de um
perigosíssimo egoísmo regional, típico das regiões ricas que querem dizer adeus
às regiões pobres. Contudo, previamente a todas estas considerações, é minha
convicção profunda que um país consiste num conjunto de pessoas que deseja
permanecer junta, seja por razões sentimentais, históricas, sociais ou
culturais. Espanha não pode reter a Catalunha contra a sua vontade. E,
sobretudo, nenhuma democracia deve impedir os seus cidadãos de exercerem o mais
básico dos direitos: pegar numa caneta e votar.
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