Uma erudita análise de duas
personagens do nosso tempo, feita por José Pacheco Pereira, aclarando dados
sobre Marcelo Rebelo de Sousa, como expoente inovador de um jornalismo orientador
do pensamento, no antigo EXPRESSO, que fez a sua época, a que o INDEPENDENTE em
tempos, e hoje, o OBSERVADOR, parecem opor-se em função da valorização de um pensamento e de uma consciência mais livres
dessa retórica progressista específica e manipuladora, aceitando nas suas
fileiras articulistas que sobressaem no
apontar sem rebuço dessas manobras de uma esquerda fechada, essa sim, a um
pensamento livre, porque obcecado ainda pelos ardores combativos maniqueístas
notórios, das literaturas neo-realistas dos tempos de Salazar. Entre esses, conta-se António
Gedeão, criador de tantos poemas que, apesar da orientação socialista, primavam
por uma retórica sensível e elegante, que abria espaços ao conhecimento do
homem e da sua história. A “Pedra Filosofal” foi um desses, de que me lembrei
para definir o Marcelo Rebelo de Sousa da actualidade, que, nos tempos
do seu palco televisivo, como homem de soluções para tudo – como, hoje, Marques
Mendes, segundo bem lembra Pacheco Pereira – a minha Mãe chamava de
fala-barato, talvez pela rapidez do seu raciocínio que ela não acompanhava. O Marcelo
das entrevistas de Judite de Sousa, que o catapultaram para o lugar que hoje
ocupa, eu escutava-o com prazer, porque tinha o dom de ter um pensamento
moderador, que dava esperança e lhe forneceu a presidência do seu povo, assim
conquistado através dos media. E, no entanto, eu detestava a sua escrita banal
que às vezes lia, creio que no Público, tal como hoje me parece excessivo
o seu empenhamento nos eventos da nossa picardia jornalística.
É esse Marcelo de discurso
rápido e oco, com uns laivos de seriedade afectiva, que me levou à imagem do “bichinho
álacre e sedento” de António Gedeão na definição do “sonho”:
«é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre
e sedento,
de focinho
pontiagudo,
que fossa
através de tudo
num perpétuo
movimento.»
Mas nada disto tem grande relevância. O certo é que ele lá está, em todas,
inesgotável, tentando dar solução, “fossando através de tudo num perpétuo
movimento”. Como somos crédulos, acreditamos no milagre. Entretanto, Trump,
que afinal também lá está na sua, de uma outra dimensão – que até nos
envergonhamos do paralelo – vai regulando o seu mundo e o nosso conforme lhe dá
no goto, com o poder – isso sim – dos seus milhões, a verdadeira mola:
OPINIÃO
Marcelo e Trump
No Expresso, Marcelo inicia
uma escola de jornalismo que foi a primeira típica da nossa democracia, e que
veio mais tarde a trazer para a rádio e para a televisão.
José Pacheco Pereira
Público, 2 de setembro de 2017
A mera junção destes dois
nomes parece insultuosa, tanto mais que são duas personagens muito distintas e
que detestariam em se verem reunidos num mesmo título. Na verdade, Marcelo
tem pouco a ver com Trump e vice-versa. Marcelo é um político sofisticado,
culto, elegante, educado, honesto e Trump é uma personagem grosseira,
ignorante, brutal, corrupta e corruptora e ameaçadora. Acima de tudo, Marcelo
é um político democrata e Trump é um autocrata, a diferença mais substancial.
Porém há uma coisa que têm em comum: é o facto de ambos terem chegado
ao poder através de uma contínua utilização do sistema mediático moderno, com
criatividade e intuição, moldando o universo dos media aos seus interesses
pessoais e políticos. E aqui pode-se fazer uma comparação entre ambos, e
percebendo-os, perceber algumas das características da política em democracia,
em particular a sua ligação/sujeição aos mecanismos mediáticos.
Nessa comparação, Trump
aliás tem vantagem porque, mais do que Marcelo, combinou a manipulação
sistemática dos media, com a expressão de interesses sociais de grupos de
americanos que se sentiam excluídos da representação política, enquanto
Marcelo depende, no seu sucesso, da manutenção de uma conjuntura simbólica de
apaziguamento que lhe é favorável enquanto houver estabilidade política.
Por isso, Trump, para além do que trouxe de novo à relação da política e dos
media num contexto populista, criou um ponto sem retorno, e é um
revolucionário. Já Marcelo não pode ainda definir a sua presidência como um
tempo sem retorno, podendo ser aliás um momento de transição e passagem. Na
verdade, o que é novo no tempo de Marcelo não é a “política dos afectos”, é a
“geringonça”, e esta não é de sua autoria.
Trump e Marcelo são
políticos muito intuitivos e inventivos e perceberam como é possível usar os
media modernos, do jornalismo às “redes sociais” que não são jornalismo.
O caso de Marcelo é exemplar no jornalismo e na comunicação pós-25 de Abril. À
data do 25 de Abril não havia qualquer experiência de jornalismo em democracia,
pesem embora os esforços de várias gerações de jornalistas, em particular a
gerada nos anos sessenta, para oferecerem uma alternativa quer ao proselitismo
dos propagandistas do Estado Novo, quer ao silêncio demasiado longo da Censura.
Mas isso não é uma plena experiência de jornalismo em democracia, o que explica
que na euforia da liberdade, a maioria destes jornalistas, que vinha da
oposição política e estudantil, gerassem um jornalismo militante de esquerda,
que acompanhou os ciclos políticos do PREC até à “normalização” democrática.
Com uma excepção, o Expresso com Marcelo Rebelo de Sousa.
No Expresso,
Marcelo inicia uma escola de jornalismo que foi a primeira típica da nossa
democracia, e que veio mais tarde a trazer para a rádio e para a televisão.
Ele foi o mestre, mas os seus discípulos ainda hoje usam a “gramática” e o
“léxico” do estilo de jornalismo que ele criou. Usam a forma de pensar de
Marcelo e o seu vocabulário, naquilo a que chamam “jornalismo político”, mas
estão muito longe da mestria de Marcelo. Os artigos de opinião, as
perguntas em entrevistas, a lógica dos títulos, a enunciação dos “problemas”,
os “destaques”, toda a mecânica interpretativa nasce daí, embora se se fosse a
verificar a pertinência das questões da “agenda”, e os resultados de alguns
vaticínios veríamos que praticamente nada acerta, ou tem utilidade
analiticamente.
É um jornalismo
discursivo e narrativo, pouco metafórico (aí o Independente bate
todos), bastante a-histórico e onde não cabem surpresas. Inclui algum
psicologismo na interpretação das personagens, mas muito superficial e muito
dominado por uma lógica lúdica de intriga e mexerico, que davam ao “produto”
uma lógica popular de entretenimento.
Que estilo deixou
Marcelo nos media, que depois lhe criou o caminho aberto para a
presidência com a complacência e a cumplicidade de muitos dos jornalistas que
ele tinha “formado” ou “enformado”? Baseava-se em várias coisas: uma
obsessão com o calendário e a utilização do calendário – prazos, contextos
temporais, etc.- para cenarização da vida política. Os cenários eram
possibilidades hipotéticas de acção por parte de personagens da vida política,
umas vezes baseados em truísmos, outros em provocações, destinadas a obter
respostas dos provocados e a introduzir “picante” na vida política. Neste tipo
de jornalismo, uma espécie primitiva de “fake news”, os chamados “factos
políticos” criados por Marcelo tinham um papel.
Com a crescente simbiose
discursiva dos políticos em democracia com esta forma de mediatização, passava
a haver um contínuo entrelaçado entre os cenários e as personagens que
supostamente eram os seus actores. Este efeito de teatralização
da vida política ainda hoje é dominante, com a sua excessiva atenção á
coreografia e desprezo pela substância. O conteúdo das políticas foi subsumido pela
maneira como eram “comunicadas”, os célebres “erros de comunicação”, um aspecto
muito comum nos comentários de Marcelo, como aliás nos de Marques Mendes,
particularmente quando eles próprios concordavam com as políticas de fundo, mas
não o queriam dizer.
Porque é que este longo
tirocínio comunicacional abriu a Marcelo o caminho da Presidência, que a sua
própria actividade política não abriu? Primeiro, a longa exposição
mediática é de um modo geral uma vantagem para quem tem que fazer um
comentário. Não precisa de perder tempo com preliminares, visto que o seu
público conhece-o muito bem, e de um modo geral sabe o que ele pensa. Pode não
saber como ele o vai dizer, a intensidade de uma crítica ou até de uma
desculpa, mas não há muitas surpresas. Contrariamente ao que os media
valorizam, - a novidade, - esta só é relevante quando o produto “velho” é mau e
o novo muito bom, o que raras vezes acontece.
O resultado desta longa
exposição é uma espécie de intimidade, o “homem está lá em casa todas
as semanas”, tornou-se um hábito que gera um núcleo fiel de leitores, mesmo
críticos, e Marcelo foi capaz como ninguém de criar essa intimidade que se
manifestava inclusive nas formas de tratamento entre o próximo e o deferencial.
Por outro lado, havia um
aspecto nos comentários de Marcelo que exercia uma função cívica:
explicava procedimentos, processos, comparações que davam ao seu público uma
pedagogia da democracia, que é um dos aspectos mais positivos do bom comentário
político. Mas Marcelo ia mais longe, ao apresentar-se com
a persona do “professor” dando notas, um mecanismo adoptado por toda
a comunicação social nas setas do sobe e desce, valorizava o classificador
reduzindo o classificado ao papel de aluno. Na verdade, poucas coisas eram mais
absurdas do que ver Marcelo a classificar com notas Cavaco ou Clinton, mas o
facto de nós não vermos essa absurdidade, remete para o seu poder mediático. A
verdadeira subversão seria classificar o próprio Marcelo, como aliás analisar
os seus comentários com uma fact checking que eles muitas vezes
falhavam, por exemplo em política internacional.
Estes são alguns dos
aspectos da “escola de Marcelo”. A ela se soma, depois do 25 de Abril, dois
momentos de alternativa, todos anti-Marcelo, também com algum sucesso, um a
escola do Independente de Portas e Miguel Esteves Cardoso, outra a
linha da Alt-rightportuguesa que começou nos blogues de direita e que desembocou
no Observador.
Fora destes três
momentos, o resto são cópias e imitações, embora haja alguma capilaridade entre
estas experiências, quer com a imprensa tablóide, quer com a de referência,
umas vezes no noticiário, outras vezes no jornalismo cultural, ou no comentário
desportivo. Falo essencialmente da imprensa escrita, mas é possível também
passar para a rádio e para a televisão, embora aí outras personagens como
Emídio Rangel ou José Eduardo Moniz, tenham deixado marcas.
Em seguida, veremos como
a sociedade e o eleitorado pode hoje ser manipulado, é esta a palavra certa,
pela capacidade mediática de personagens como Marcelo e Trump.
Comentário de A. C. Magalhães
03.09.2017
Não existem grandes dúvidas que, tanto Trump, como Marcelo, estabeleceram
as suas estratégias "moldando o universo dos media aos seus interesses
pessoais e políticos". O que difere é a escala e a diversidade dos meios
envolvidos. Trump
vai ganhando apoios e conquistando eleitores, com o trabalho dos sapadores das
plataformas criadas na Internet, como o Breithbart e outros, mais do que com a
sua prestação nos programas televisivos em que intervinha. Trump é o escolhido,
com adesão e entusiasmo, por uma ultra-direita que o apoia. Marcelo, ao
contrário, cria o seu próprio movimento, próximo e na proximidade que cultiva
junto do seu eleitorado, que suplanta em muito os apoiantes e votantes de
partidos que, sem entusiasmo ou convicção, acabam por aderir à sua candidatura.
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