Não consigo deixar de admirar
a forma como Bagão Félix manipula os seus discursos, com tanta sabedoria e
graça. Alegra-me não só o vasto reportório dos seus assuntos, como a leveza da
sua malícia, não ofensiva, mas de grande profundidade especulativa, ora risonha,
ora mais séria e certeira, da mensagem crítica que quer fazer passar. Do
primeiro texto - @
Entre acentos, géneros e beijos - do Público de
7/9, sobre os acentos ortográficos e sobre o signo arroba - @ - do endereço
electrónico, em várias línguas, nem sei o que mais deva distinguir: se a forma
como “tempera” a sua caracterização, com adjectivos e expressões
humanizadoras caricaturais - “Na linguagem da Net, foi
dada sentença de morte ao espartano acento
circunflexo, ao lânguido til, aos austeros acentos
agudo e grave, e às cerimoniosas cedilhas.” – se o
carácter informativo das mensagens que ilustram o seu tema, se a
graça das referências pessoais, jogando com os efeitos destruidores da
simplificação ortográfica no endereço electrónico – de que todo o
segundo parágrafo é exemplo hilariante, se a ironia relativa ao signo arroba
(@) adulterando o sexo, se a malícia em torno do alastramento beijoqueiro
destes tempos de sensibilidades e exaltações…
Quanto ao segundo artigo, de
15/8 “Há mais vida para além de
geringonçar” é um manancial sério de estocadas contra as
mentiras eleitorais para angariação de votos, neste caso acerca das promessas
orçamentais: “Refiro-me a essa prática muito selectiva de se ir deixando
cair as boas novidades orçamentais em regime de gota-a-gota. Sobretudo no
domínio da fiscalidade, assim se esfarelando ainda mais a coerência e a
congruência do sistema tributário e dificultando verdadeiras reformas com pés e
cabeça”.
Um valente e inteligente homem
bem-educado, este nosso Bagão Félix, que não receia desmistificar os
truques certeiros da “geringonça”, manipuladores da opinião pública, mas
esfarelando-se a breve trecho, por falta de consistência. Veremos.
Público, 7 de Setembro de 2017, 08:28
@ Entre acentos, géneros e beijos
Na
linguagem da Net, foi dada sentença de morte ao espartano acento circunflexo,
ao lânguido til, aos austeros acentos agudo e grave, e às cerimoniosas
cedilhas. Quanto ao diacrítico trema, já antes do internetês, foi ao ar na reforma
ortográfica de 1945, ainda que se use noutras línguas, como o alemão e até o
espanhol, sem ser uma vergüenza.
Dizia o grande escritor de língua portuguesa Machado de Assis que “escrever é uma questão de colocar acentos”.
Há acentos (às vezes confundidos com assentos) para todos os gostos nas línguas
do mundo. Por exemplo, o acento circunflexo invertido chamado cáron (Ă) próprio de
alfabetos eslavos e não só, ou o anel das
línguas escandinavas (Å).
No endereço electrónico,
fui dos sacrificados. Na primeira versão, tiram-me um til e um acento e juntaram-me
voluntariamente à força. Fui, assim, bagaofelix. Entretanto mudei, depois de
insistentes pedidos destes apelidos. Mas também os meus nomes próprios António
e José apanham com tal cerceamento de acentos. Como tentativa de aliciamento,
deram-me, desprezivelmente, uma arroba @, igual para todos, retirada da
tradição britânica de afixação de preços – at – nas velhas mercearias da ilha. Eu
que, da arroba, só sabia os quinze quilos! Curioso é que, cada país, cada
arroba, sobretudo zoológica. Em Itália o símbolo @ é o caracol (chiocciola), na Suécia é a tromba
de elefante (snabel),
na Holanda é o rabo de macaco (apenstaartje),
na Grécia é o patinho (papaki),
na Rússia é o cão (sobaka)
e na Polónia é o macaco (małpa).
À atenção do PAN!
Devido a ausência de um
género gramatical neutro em português (e também noutras línguas), movimentos de
(outros) géneros lembraram-se de usar o símbolo @ como substituto neutro para
se referirem a grupos de géneros mistos, em desfavor da regra que, na maioria
dos casos, dá preferência ao género … masculino. Tal parece ter resultado da
forma da própria @, uma quase fusão das letras a e o, que definem o género feminino e
masculino das palavras. Assim, a “correcção política” fica assegurada
exterminando essa diabolizada discriminação linguística, embora cá para mim, a
@ (ela própria feminina) esteja mais inclinada para, fisicamente, se associar a
um a do que
a um o.
Palavras como amigos, moradores, candidatos, caros, alunos, meninos são transformadas
em amig@s, morador@s, candidat@s, car@s, alun@s, menin@s, se o grupo citado for
composto por pessoas do sexo masculino e feminino. E, já agora, que tal portugues@s para evitar o
longo e inchado “portugueses e
portuguesas”?
Ora, de quando em vez, lá
me aparecem no telemóvel ou no computador mensagens de atacado enviadas
para car@s senhor@s ou querid@s amig@s fazendo da @
um símbolo assexuado em termos gramaticais. Como @ puxa @, lembrei-me,
por associação, da contracção abreijos,
que evita os “beijos e abraços” no final das ditas mensagens. Curioso, se a
contracção fosse ao contrário, daria beiços e o seu aumentativo beiçolas. Não me agradam
os abreijos, devo
dizer. Primeiro, porque não sei como se dão. Segundo, porque não sei se beijo e
abraço são simultaneamente obrigatórios. Terceiro, porque ainda fico mais
confuso quanto à decisão de dar um beijo numa face ou optar por dois ósculos
nas duas faces. É que há uma senha ou um código para distinguir o grupo dos
“beijos-dois-em-um”. Em certos grupos sociais pretensamente poderosos, ricos,
ou “bem-educados”, o beijo deve ser em dose mínima, não vá o diabo tecê-las. Já
a larga maioria beija-se em dose facialmente dupla. Custa o mesmo e não paga
imposto. Ainda não desisti de tentar perceber a razão daquela, literalmente
falando, singularidade beijoqueira.
15 de Setembro de 2017
Há mais vida para além de geringonçar
Não
há partido que resista à tentação eleitoral. Ou de abrir a bolsa em tempos de
conjunturas mais fáceis. E, por consequência, de apresentar um sedutor
Orçamento do Estado. Como dizia Oscar Wilde – aqui aplicado à política –
resiste-se a tudo menos às tentações!
Refiro-me a essa prática
muito selectiva de se ir deixando cair as boas novidades orçamentais em regime
de gota-a-gota. Sobretudo no domínio da fiscalidade, assim se
esfarelando ainda mais a coerência e a congruência do sistema tributário e
dificultando verdadeiras reformas com pés e cabeça. Por exemplo, o
anúncio do aumento do número de escalões e do valor a partir do qual se paga
IRS, com a conclusão de que tais medidas irão beneficiar 1,6 milhões de
contribuintes. Aliás, o empenho foi tanto que o SE Pedro Nuno Santos,
obnubilado pela misteriosa dádiva governamental e atrapalhado pelo seu
desconhecimento, até começou por dizer que seriam beneficiadas 3,6 milhões de
famílias … mais do que as que pagam IRS! Neste caso, porém, ainda estará
por definir o alcance da medida (escalões, limites, taxas a aplicar, deduções,
etc.) e vai-se, por ora, discutindo com os parceiros do Governo, qual deles
mais fingidor na divergência para ganhar ao outro, mas já se anunciou (!) o
número dos beneficiados pela medida! É obra, esta galinha antes do ovo.
E não há vivalma no seio dos jornalistas que questione o Primeiro-ministro ou o
ministro das Finanças sobre esta inversão de causa-efeito. Aliás, lamento
dizer, mas nos media há muita gente
(com boas excepções, evidentemente) que se limita a pôr a notícia, quais
carteiros polivalentes.
E do lado da despesa?
Será um fartote? Mais dinheiro para a Educação (então aqui a
demografia da natalidade já não conta, ou só conta a demografia do
envelhecimento para os actuais e futuros reformados?), mais carreiras e
carreirinhos, maior volume de emprego no Estado e satélites, cativações zero
(com Catarina Martins sempre à frente), etc.? Bem sei que algumas
medidas de reversão são necessárias, sobretudo do ponto de vista social, depois
dos excessos anteriores e que tantas vezes critiquei. Mas será que ainda não
aprendemos com os brutais sacrifícios que, mais tarde ou mais cedo, sempre têm
voltado em dose agravada? Será que estamos condenados a ter pirómanos
orçamentais, seguidos de bombeiros orçamentais? Será que uma excelente
conjuntura se transforma, por osmose, numa estável e sustentada estrutura? Será
que a cigarra partidária não aprende com a formiga e não quer ou não sabe
preservar o celeiro em tempo de boa colheita para os dias difíceis? Será que se
julga que os estímulos monetários do BCE são eternos? Será que se vai manter
esta extraordinária conjuntura planetária em que quase não há países em
recessão? Será que a dívida (pública e privada) é um pormenor para ladear? Será
que o sector bancário já está estabilizado? Será que este tempo de bonança não
deveria ser o tempo ideal para aprofundar reformas, e não meras e
oportunísticas contra-reformas, que criem uma sustentação desenvolvimentista e
socialmente justa para o futuro?
Devo dizer, porém, que
apreciei a resposta do Primeiro-ministro aos parceiros da esquerda: “não podemos dar passos maiores do que as pernas”.
Catarina Martins chamou-lhe “estados de alma do PM”.
Vamos ver o que acontece e, ainda assim, receio que, no fim, haja “festa”, ou
seja, um OE risonho e de visão de curto-prazo. Talvez o Presidente da
República possa ter aqui uma palavra de necessária moderação do entusiasmo da
maioria. E, aproveitando o tão invocado “há mais vida para além do défice”,
talvez possa contribuir para um também “há mais vida (e Portugal) para além
de geringonçar”.
É que não devemos
esquecer o que gostaríamos de ter esquecido.
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