Curiosa esta “Carta ao Director” de Fernando Guedes, “I have a dream”. Lembrou-me velhas conversas do meu pai,
quando, na nossa adolescência, por vezes, à mesa, dissertava sobre a religião,
como algo que fanatizava o povo, o que não quadrava à sua visão de homem de
leitura, que desde cedo cavara os espaços da sua liberdade material e
espiritual. Também em África nunca íamos à missa aos domingos, único dia das
disponibilidades gerais, o meu pai entretendo-se a fazer capoeiras no quintal
ou a regar as suas sardinheiras, ou a ler o jornal, a minha mãe tratando do almoço, melhorado aos
domingos com o pudim ou a aletria da praxe, sem deixarmos, todavia, de respeitar
os padrões seguidos pela Igreja Católica, tendo nós aprendido as orações mais
comuns, o Pai Nosso, a Avè Maria ou a Salvè Rainha, mais umas quantas que
líamos eventualmente no catecismo que havia lá em casa, talvez do gosto da
minha mãe, ou como livrinho obrigatório das aulas de Religião e Moral que o
liceu impunha. O certo é que não punha em causa a existência de um Deus
benfeitor mas também castigador, coisa do consenso geral que o liceu também
fomentava. Era por isso que eu costumava rezar o terço, antes de adormecer,
para receber a protecção diária que só o sacrifício da reza me proporcionaria,
mas que ficava interrompido pelo sono às primeiras Ave Marias, daí o ter sempre
atribuído os meus azares na vida às interrupções das rezas desses tempos da
infância crédula, por conta de Morfeu, que se encarregava de desestabilizar o
esquema, impondo a sua presença em luta de fés teológicas. Mas quando, ao
regressarem a Portugal, após a reforma do meu pai, os meus pais ficaram algum
tempo no Carregal, terra da minha mãe, não se adaptaram ao ambiente de
desconfiança e crítica eivada de fanatismo das gentes de lá, por não manifestarem
zelo apostólico nem frequentavam a missa aos domingos, e por tal motivo foram habitando
outros lugares, até se fixarem neste espaço que agora ocupo - com devoção -
pois aqui estive algum tempo, após o meu regresso de África e toda a casa me
recorda os meus pais.
O artigo de Fernando Guedes é uma página que deveria ser meditada ou
discutida. Desde sempre que as religiões impõem rituais mortíferos, como
sacrifícios humanos de que a própria Bíblia se faz eco no sacrifício de Isaac,
por seu pai Abraão, sacrifício felizmente interrompido por Jeová, que apenas
quis pôr à prova a devoção e obediência daquele servo à sua ordem. Conta-se
também do sacrifício de Ifigénia a Artemisa, por seu pai Agamémnon,
para conseguir obter ventos favoráveis de partida para Tróia, mas as opiniões
divergem a respeito do real destino da pobre irmã de Orestes e de Electra. Geralmente,
é certo, os desgraçados bichos é que são sacrificados, mas o desrespeito pela
vida humana foi sempre, e é hoje mais do que nunca, prática seguida nas
religiões, como o comprova também o fundamentalismo islâmico que aterroriza o mundo.
Já o cristianismo foi um ver se te avias de condenações repugnantes, quer em
função do combate a heresias, ou a práticas de bruxaria, sobretudo nos tempos
inquisitoriais, quer por motivos de ambição enriquecedora do clero, pela extorsão
dos bens dos judeus, condenados nos seus rituais diferentes. Também o domínio
jesuítico foi responsável pela manutenção de um status de atraso espiritual
neste nosso país, fechado o ensino ao desenvolvimento racional, filosófico e
científico, libertador das consciências, por conta de uma escolástica medieval, aqui prolongada, perniciosamente
dogmática e vã, que em lugar das propostas filosóficas modernas que
enriqueceram o pensamento, se entretinha nas lucubrações silogísticas, de uma
lógica rebuscada e quantas vezes irrisória.
Escritores como Herculano, Júlio Dinis, Silva Gaio o condenaram, Eça o
satirizou, no nosso país, mas nos tempos de Salazar as ligações entre o Estado
e a Igreja mantinham-se firmes e propícias a esse atraso, por conta dos bons
costumes e dos preconceitos dogmáticos redutores do pensamento.
Julgo que o sonho de Fernando Guedes de destruição dos
templos, embora pertinente, substituindo as práticas do fanatismo pelas de uma
educação baseada em valores morais que dignificam o homem, não resolveria,
contudo, o eterno problema que se põe ao espírito humano, perante a grandeza de
uma Criação que leva, naturalmente, ao conceito da existência de um Criador,
mau grado as teorias científicas pragmáticas, desligadas de inquietações
filosóficas, mas não convincentes no seu dogmatismo científico, que não cobre a
necessidade humana de um apoio, espiritual que seja, da fraqueza humana, e da necessidade
de uma protecção superior que o seu egoísmo e debilidade apetecem, ao longo da
vida, ou a sua racionalidade argumentadora defende, como causa da origem.
De resto, mau grado algum fanatismo pernicioso, os rituais das missas, com
sermões e leituras propícias dos Evangelhos, além dos cânticos, servem de meio
de ensinamento e de espectáculo, por vezes única forma de retirar o homem do
povo de alguma crosta de apatia ou indiferença pelos valores do espírito, no
nosso país culturalmente desatento. O que não obsta a que as propostas de
Fernando Guedes para melhoria do carácter não sejam tão válidas e necessárias
quanto essas dos que entendem que há uma vida para além desta, ideia que
Fernando Guedes contraria, mas, como todos, afinal, não justifica. Trata-se de
fé. E, tal como o afirmava o bispo de Viseu, Alves Martins, que o meu
pai citava, “A religião deve ser como o sal da comida: nem de mais nem de
menos”.
I have a dream.
Fernando Guedes, Porto
Público, 22/8/17
Tomo emprestadas as palavras de Martin Luther King que as tomou também de
Thomas Jeferson. Eu tenho um sonho que num futuro ainda que distante, os
seres humanos prescindam da religião. Não quero ver proibida a religião
porque sabe-se quais são as consequências. Gostaria apenas que a humanidade
considerasse que grande parte dos imensos problemas nas sociedades seriam
atenuados com a demolição das mesquitas, igrejas e sinagogas. Simultaneamente
acabariam as catequeses e madrassas onde as mentes são inquinadas com falsos
valores que integram as superstições e os mitos.
Afinal quem quiser orar pode fazê-lo em sua casa e em paz consigo próprio.
Se a oração é um acto intimo com qualquer deus porquê fazê-lo colectivamente. A
oração a solo não tem o mesmo valor do que em coro? É nas aglomerações que as
pessoas são manipuladas por gente sem escrúpulos e que levam, como levaram, a
uma das maiores crueldades cometidas pela humanidade: as cruzadas (que não
diferem muito do Daesh).
Costumo ouvir a desculpa “eram outros tempos”, mas a capacidade
criminosa do ser humano é intemporal! E o que ensinar às crianças em vez
das superstições religiosas? O valor da solidariedade, a piedade, a
amizade, explicar que a morte é tão inevitável como a vida. Melhorar o carácter
e não dar valor ao negócio privado que cada um faz com o seu deus.
Isto é, de facto, uma utopia mas o ser
humano, mesmo tendo avançado pouco, só o fez apoiado em utopias.
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