sábado, 2 de setembro de 2017

Como o sal na comida…


Curiosa esta “Carta ao Director” de Fernando Guedes, “I have a dream”. Lembrou-me velhas conversas do meu pai, quando, na nossa adolescência, por vezes, à mesa, dissertava sobre a religião, como algo que fanatizava o povo, o que não quadrava à sua visão de homem de leitura, que desde cedo cavara os espaços da sua liberdade material e espiritual. Também em África nunca íamos à missa aos domingos, único dia das disponibilidades gerais, o meu pai entretendo-se a fazer capoeiras no quintal ou a regar as suas sardinheiras, ou a ler o jornal,  a minha mãe tratando do almoço, melhorado aos domingos com o pudim ou a aletria da praxe, sem deixarmos, todavia, de respeitar os padrões seguidos pela Igreja Católica, tendo nós aprendido as orações mais comuns, o Pai Nosso, a Avè Maria ou a Salvè Rainha, mais umas quantas que líamos eventualmente no catecismo que havia lá em casa, talvez do gosto da minha mãe, ou como livrinho obrigatório das aulas de Religião e Moral que o liceu impunha. O certo é que não punha em causa a existência de um Deus benfeitor mas também castigador, coisa do consenso geral que o liceu também fomentava. Era por isso que eu costumava rezar o terço, antes de adormecer, para receber a protecção diária que só o sacrifício da reza me proporcionaria, mas que ficava interrompido pelo sono às primeiras Ave Marias, daí o ter sempre atribuído os meus azares na vida às interrupções das rezas desses tempos da infância crédula, por conta de Morfeu, que se encarregava de desestabilizar o esquema, impondo a sua presença em luta de fés teológicas. Mas quando, ao regressarem a Portugal, após a reforma do meu pai, os meus pais ficaram algum tempo no Carregal, terra da minha mãe, não se adaptaram ao ambiente de desconfiança e crítica eivada de fanatismo das gentes de lá, por não manifestarem zelo apostólico nem frequentavam a missa aos domingos, e por tal motivo foram habitando outros lugares, até se fixarem neste espaço que agora ocupo - com devoção - pois aqui estive algum tempo, após o meu regresso de África e toda a casa me recorda os meus pais.
O artigo de Fernando Guedes é uma página que deveria ser meditada ou discutida. Desde sempre que as religiões impõem rituais mortíferos, como sacrifícios humanos de que a própria Bíblia se faz eco no sacrifício de Isaac, por seu pai Abraão, sacrifício felizmente interrompido por Jeová, que apenas quis pôr à prova a devoção e obediência daquele servo à sua ordem. Conta-se também do sacrifício de Ifigénia a Artemisa, por seu pai Agamémnon, para conseguir obter ventos favoráveis de partida para Tróia, mas as opiniões divergem a respeito do real destino da pobre irmã de Orestes e de Electra. Geralmente, é certo, os desgraçados bichos é que são sacrificados, mas o desrespeito pela vida humana foi sempre, e é hoje mais do que nunca, prática seguida nas religiões, como o comprova também o fundamentalismo islâmico que aterroriza o mundo.
Já o cristianismo foi um ver se te avias de condenações repugnantes, quer em função do combate a heresias, ou a práticas de bruxaria, sobretudo nos tempos inquisitoriais, quer por motivos de ambição enriquecedora do clero, pela extorsão dos bens dos judeus, condenados nos seus rituais diferentes. Também o domínio jesuítico foi responsável pela manutenção de um status de atraso espiritual neste nosso país, fechado o ensino ao desenvolvimento racional, filosófico e científico, libertador das consciências, por conta de uma escolástica medieval, aqui prolongada, perniciosamente dogmática e vã, que em lugar das propostas filosóficas modernas que enriqueceram o pensamento, se entretinha nas lucubrações silogísticas, de uma lógica rebuscada e quantas vezes irrisória.
Escritores como Herculano, Júlio Dinis, Silva Gaio o condenaram, Eça o satirizou, no nosso país, mas nos tempos de Salazar as ligações entre o Estado e a Igreja mantinham-se firmes e propícias a esse atraso, por conta dos bons costumes e dos preconceitos dogmáticos redutores do pensamento.
Julgo que o sonho de Fernando Guedes de destruição dos templos, embora pertinente, substituindo as práticas do fanatismo pelas de uma educação baseada em valores morais que dignificam o homem, não resolveria, contudo, o eterno problema que se põe ao espírito humano, perante a grandeza de uma Criação que leva, naturalmente, ao conceito da existência de um Criador, mau grado as teorias científicas pragmáticas, desligadas de inquietações filosóficas, mas não convincentes no seu dogmatismo científico, que não cobre a necessidade humana de um apoio, espiritual que seja, da fraqueza humana, e da necessidade de uma protecção superior que o seu egoísmo e debilidade apetecem, ao longo da vida, ou a sua racionalidade argumentadora defende, como causa da origem.
De resto, mau grado algum fanatismo pernicioso, os rituais das missas, com sermões e leituras propícias dos Evangelhos, além dos cânticos, servem de meio de ensinamento e de espectáculo, por vezes única forma de retirar o homem do povo de alguma crosta de apatia ou indiferença pelos valores do espírito, no nosso país culturalmente desatento. O que não obsta a que as propostas de Fernando Guedes para melhoria do carácter não sejam tão válidas e necessárias quanto essas dos que entendem que há uma vida para além desta, ideia que Fernando Guedes contraria, mas, como todos, afinal, não justifica. Trata-se de fé. E, tal como o afirmava o bispo de Viseu, Alves Martins, que o meu pai citava, “A religião deve ser como o sal da comida: nem de mais nem de menos”.

I have a dream.
Fernando Guedes, Porto
Público, 22/8/17
Tomo emprestadas as palavras de Martin Luther King que as tomou também de Thomas Jeferson. Eu tenho um sonho que num futuro ainda que distante, os seres humanos prescindam da religião. Não quero ver proibida a religião porque sabe-se quais são as consequências. Gostaria apenas que a humanidade considerasse que grande parte dos imensos problemas nas sociedades seriam atenuados com a demolição das mesquitas, igrejas e sinagogas. Simultaneamente acabariam as catequeses e madrassas onde as mentes são inquinadas com falsos valores que integram as superstições e os mitos.
Afinal quem quiser orar pode fazê-lo em sua casa e em paz consigo próprio. Se a oração é um acto intimo com qualquer deus porquê fazê-lo colectivamente. A oração a solo não tem o mesmo valor do que em coro? É nas aglomerações que as pessoas são manipuladas por gente sem escrúpulos e que levam, como levaram, a uma das maiores crueldades cometidas pela humanidade: as cruzadas (que não diferem muito do Daesh).
Costumo ouvir a desculpa “eram outros tempos”, mas a capacidade criminosa do ser humano é intemporal! E o que ensinar às crianças em vez das superstições religiosas? O valor da solidariedade, a piedade, a amizade, explicar que a morte é tão inevitável como a vida. Melhorar o carácter e não dar valor ao negócio privado que cada um faz com o seu deus. Isto é, de facto, uma utopia  mas o ser humano, mesmo tendo avançado pouco, só o fez apoiado em utopias.




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