Não assim tanto, afinal. Falou-se
até largamente no comandante da protecção nacional que se demitiu do cargo
depois de um desastre para todos os efeitos descomandado em tão larga escala
que incrimina todo um país de preconceito – da doutorice custe o que custar,
com ou sem repercussão nas capacidades exigidas para o cargo a ocupar. O artigo
de João Miguel Tavares o denuncia com firmeza, como um grito de alerta e de
vergonha nacional, trazendo à baila as extraordinárias “Novas Oportunidades”
de ascensão em grau académico sem os necessários estudos, implantadas nos
tempos de Sócrates e as exigências de licenciatura, qualquer que fosse, para
ocupar determinados cargos. Repito todo o seu final que tanto nos incrimina –
como, aliás, todo o meritório artigo de João Miguel Tavares de 16/9, que
tem por título «As licenciaturas honoris
causa e a obsessão do sotôr»:
«Vale a pena citar o
primeiro ponto do Artigo 22 do Decreto-lei 73/2013 (sucessor de uma lei
mais antiga, que estabelecia uma transição de dez anos nesta área), acerca
das regras de recrutamento para a Protecção Civil: “O recrutamento do
comandante operacional nacional e do segundo comandante operacional nacional,
dos adjuntos operacionais nacionais, dos comandantes operacionais de
agrupamento distrital, dos comandantes operacionais distritais, dos segundos
comandantes operacionais distritais é feito de entre indivíduos que possuam
licenciatura e experiência funcional adequadas ao exercício daquelas funções.” Mesmo
com “experiência funcional”, o resultado é óbvio: um licenciado em Estudos
Asiáticos com três meses a segurar uma mangueira pode ser comandante da
Protecção Civil; um não-licenciado com décadas de experiência não pode. A
aplicação da lei ainda foi atrasada três anos, por obrigar ao afastamento de
muitos operacionais experientes. Mas entrou finalmente em vigor em
Janeiro, com a substituição de 19 comandantes distritais e os resultados que se
conhecem. O licenciado Rui Esteves — nova ironia — foi um dos principais
responsáveis por esse trabalho. Tal como no totobola, a culpa merece uma
tripla: é de Rui Esteves; é do Politécnico de Castelo Branco, que lhe concedeu
a licenciatura; e é também de um Estado que estimula a falcatrua através de
leis insensatas.»
As
licenciaturas honoris causa e a obsessão do sotôr
Chegou a vez de o
comandante nacional da Protecção Civil ser apanhado com uma licenciatura de
abrir o pacote e juntar água.
João Miguel Tavares
Púlico,16 de Setembro de 2017
Os
doutoramentos honoris causa existem em todo o mundo. As
licenciaturas honoris causa só existem em Portugal. Depois de
José Sócrates, depois de Armando Vara, depois de Miguel Relvas, eis que chegou
a vez de o comandante nacional da Protecção Civil ser apanhado na posse de uma
licenciatura de abrir o pacote e juntar água. Rui Esteves já se demitiu,
para infelicidade do próprio e felicidade do Governo, que queria correr com ele
depois do desastre de Pedrógão. É uma ironia muito portuguesa: em vez de
ter sido demitido pelos erros cometidos a fazer o seu trabalho, demitiu-se por
causa dos erros cometidos a fazer a licenciatura de que precisava para
trabalhar.
Há duas dimensões
diferentes neste problema, ambas lamentáveis. A primeira é a trafulhice
académica. Durante muitos anos, o espírito Novas Oportunidades andou à
solta pelo país, e tirar uma licenciatura tornou-se mais fácil do que tirar a
carta de condução. Desde que o aluno tivesse “conhecimentos”, bastava-lhe
assistir a duas aulas, pedir três dúzias de equivalências com base na
“experiência profissional”, fazer uma oral distendida com um professor amigo,
entregar um par de “projectos”, e já estava. O trabalho intelectual era
substituído pelo trabalho administrativo. Foi assim que estabelecimentos
manhosos andaram a ganhar a vida durante anos a fio, aproveitando a expansão do
ensino superior para expandir as fronteiras da cunha, essa grandiosa
especialidade nacional.
Só que há uma outra
especialidade nacional, e não menos grandiosa — a parolice do canudo e a
necessidade de todos sermos doutores, mesmo em áreas em que a experiência no
terreno é infinitamente mais importante do que o cálculo integral ou as curvas
de titulação. Esta é a segunda dimensão do problema. Tristemente, a lei
portuguesa passou a exigir, no domínio da protecção civil, que as dezenas de
comandantes operacionais do país possuíssem uma licenciatura. Notem: não uma
licenciatura em Protecção Civil, que garantisse o profissionalismo de uma área
fundamental de intervenção do Estado — uma licenciatura qualquer.
Vale a pena citar o
primeiro ponto do Artigo 22 do Decreto-lei 73/2013 (sucessor de uma lei
mais antiga, que estabelecia uma transição de dez anos nesta área), acerca
das regras de recrutamento para a Protecção Civil: “O recrutamento do
comandante operacional nacional e do segundo comandante operacional nacional,
dos adjuntos operacionais nacionais, dos comandantes operacionais de
agrupamento distrital, dos comandantes operacionais distritais, dos segundos
comandantes operacionais distritais é feito de entre indivíduos que possuam
licenciatura e experiência funcional adequadas ao exercício daquelas funções.” Mesmo
com “experiência funcional”, o resultado é óbvio: um licenciado em Estudos
Asiáticos com três meses a segurar uma mangueira pode ser comandante da
Protecção Civil; um não-licenciado com décadas de experiência não pode. A
aplicação da lei ainda foi atrasada três anos, por obrigar ao afastamento de
muitos operacionais experientes. Mas entrou finalmente em vigor em
Janeiro, com a substituição de 19 comandantes distritais e os resultados que se
conhecem. O licenciado Rui Esteves — nova ironia — foi um dos principais
responsáveis por esse trabalho. Tal como no totobola, a culpa merece uma
tripla: é de Rui Esteves; é do Politécnico de Castelo Branco, que lhe concedeu
a licenciatura; e é também de um Estado que estimula a falcatrua através de
leis insensatas.
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