terça-feira, 26 de setembro de 2017

Um caso gritante silenciado q.b.


Não assim tanto, afinal. Falou-se até largamente no comandante da protecção nacional que se demitiu do cargo depois de um desastre para todos os efeitos descomandado em tão larga escala que incrimina todo um país de preconceito – da doutorice custe o que custar, com ou sem repercussão nas capacidades exigidas para o cargo a ocupar. O artigo de João Miguel Tavares o denuncia com firmeza, como um grito de alerta e de vergonha nacional, trazendo à baila as extraordinárias “Novas Oportunidades” de ascensão em grau académico sem os necessários estudos, implantadas nos tempos de Sócrates e as exigências de licenciatura, qualquer que fosse, para ocupar determinados cargos. Repito todo o seu final que tanto nos incrimina – como, aliás, todo o meritório artigo de João Miguel Tavares de 16/9, que tem por título «As licenciaturas honoris causa e a obsessão do sotôr»:
«Vale a pena citar o primeiro ponto do Artigo 22 do Decreto-lei 73/2013 (sucessor de uma lei mais antiga, que estabelecia uma transição de dez anos nesta área), acerca das regras de recrutamento para a Protecção Civil: “O recrutamento do comandante operacional nacional e do segundo comandante operacional nacional, dos adjuntos operacionais nacionais, dos comandantes operacionais de agrupamento distrital, dos comandantes operacionais distritais, dos segundos comandantes operacionais distritais é feito de entre indivíduos que possuam licenciatura e experiência funcional adequadas ao exercício daquelas funções.” Mesmo com “experiência funcional”, o resultado é óbvio: um licenciado em Estudos Asiáticos com três meses a segurar uma mangueira pode ser comandante da Protecção Civil; um não-licenciado com décadas de experiência não pode. A aplicação da lei ainda foi atrasada três anos, por obrigar ao afastamento de muitos operacionais experientes. Mas entrou finalmente em vigor em Janeiro, com a substituição de 19 comandantes distritais e os resultados que se conhecem. O licenciado Rui Esteves — nova ironia — foi um dos principais responsáveis por esse trabalho. Tal como no totobola, a culpa merece uma tripla: é de Rui Esteves; é do Politécnico de Castelo Branco, que lhe concedeu a licenciatura; e é também de um Estado que estimula a falcatrua através de leis insensatas.»

As licenciaturas honoris causa e a obsessão do sotôr
Chegou a vez de o comandante nacional da Protecção Civil ser apanhado com uma licenciatura de abrir o pacote e juntar água.
João Miguel Tavares
Púlico,16 de Setembro de 2017
Os doutoramentos honoris causa existem em todo o mundo. As licenciaturas honoris causa só existem em Portugal. Depois de José Sócrates, depois de Armando Vara, depois de Miguel Relvas, eis que chegou a vez de o comandante nacional da Protecção Civil ser apanhado na posse de uma licenciatura de abrir o pacote e juntar água. Rui Esteves já se demitiu, para infelicidade do próprio e felicidade do Governo, que queria correr com ele depois do desastre de Pedrógão. É uma ironia muito portuguesa: em vez de ter sido demitido pelos erros cometidos a fazer o seu trabalho, demitiu-se por causa dos erros cometidos a fazer a licenciatura de que precisava para trabalhar.
Há duas dimensões diferentes neste problema, ambas lamentáveis. A primeira é a trafulhice académica. Durante muitos anos, o espírito Novas Oportunidades andou à solta pelo país, e tirar uma licenciatura tornou-se mais fácil do que tirar a carta de condução. Desde que o aluno tivesse “conhecimentos”, bastava-lhe assistir a duas aulas, pedir três dúzias de equivalências com base na “experiência profissional”, fazer uma oral distendida com um professor amigo, entregar um par de “projectos”, e já estava. O trabalho intelectual era substituído pelo trabalho administrativo. Foi assim que estabelecimentos manhosos andaram a ganhar a vida durante anos a fio, aproveitando a expansão do ensino superior para expandir as fronteiras da cunha, essa grandiosa especialidade nacional.
Só que há uma outra especialidade nacional, e não menos grandiosaa parolice do canudo e a necessidade de todos sermos doutores, mesmo em áreas em que a experiência no terreno é infinitamente mais importante do que o cálculo integral ou as curvas de titulação. Esta é a segunda dimensão do problema. Tristemente, a lei portuguesa passou a exigir, no domínio da protecção civil, que as dezenas de comandantes operacionais do país possuíssem uma licenciatura. Notem: não uma licenciatura em Protecção Civil, que garantisse o profissionalismo de uma área fundamental de intervenção do Estadouma licenciatura qualquer.
Vale a pena citar o primeiro ponto do Artigo 22 do Decreto-lei 73/2013 (sucessor de uma lei mais antiga, que estabelecia uma transição de dez anos nesta área), acerca das regras de recrutamento para a Protecção Civil: “O recrutamento do comandante operacional nacional e do segundo comandante operacional nacional, dos adjuntos operacionais nacionais, dos comandantes operacionais de agrupamento distrital, dos comandantes operacionais distritais, dos segundos comandantes operacionais distritais é feito de entre indivíduos que possuam licenciatura e experiência funcional adequadas ao exercício daquelas funções.” Mesmo com “experiência funcional”, o resultado é óbvio: um licenciado em Estudos Asiáticos com três meses a segurar uma mangueira pode ser comandante da Protecção Civil; um não-licenciado com décadas de experiência não pode. A aplicação da lei ainda foi atrasada três anos, por obrigar ao afastamento de muitos operacionais experientes. Mas entrou finalmente em vigor em Janeiro, com a substituição de 19 comandantes distritais e os resultados que se conhecem. O licenciado Rui Esteves — nova ironia — foi um dos principais responsáveis por esse trabalho. Tal como no totobola, a culpa merece uma tripla: é de Rui Esteves; é do Politécnico de Castelo Branco, que lhe concedeu a licenciatura; e é também de um Estado que estimula a falcatrua através de leis insensatas.


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