Do nosso tempo movediço e apaixonante.
«Afinal quem foi
Leonora Carrington, a “rebelde” do surrealismo?»
No centenário da artista, o
seu percurso singular foi reconstituído pela Universidade Internacional
Menéndez Pelayo, em Santander, onde esteve internada numa clínica psiquiátrica
quando procurava salvar Max Ernst. Uma aventura com escala em Lisboa, e
que cruza boa parte da história do século XX.
MARISA FERREIRA
Público, 18 de agosto de 2017
Pintora e escritora,
Leonora Carrington (1917-2011) foi a última sobrevivente do movimento surrealista,
ao qual se juntou ao lado (e não pelo braço) de Max Ernst, de quem foi
amante na juventude. Mas afinal quem foi aquela que ficou
conhecida – pela liberdade com que viveu a sua filiação no movimento
– como a rebelde do surrealismo? A pergunta que se faz há
décadas tem agora resposta. Em ano de comemorações do centenário da artista
britânica, um curso da Universidade Internacional Menéndez Pelayo, em
Santander, reconstituiu a sua história, que em breve será apresentada no
Hay Festival de Segóvia (22 a 24 de Setembro).
Embora tenha sido Max
Ernst a abrir-lhe as portas do surrealismo, Carrington sempre se recusou a ser
vista como a musa do pintor alemão, umas das mais emblemáticas e fulgurantes
figuras daquele movimento, e a ser reduzida à condição de sua amante: “A
ideia de musa é algo que nunca vou compreender muito bem. Baseia-se na
divindade grega, mas eu entendo as musas como senhoras que se dedicam a coser
meias ou a limpar a cozinha. Quem foi a musa de Dostoiévski? A sua epilepsia,
talvez? Eu prefiro que me tratem pelo que sou: artista”, refutava
Carrington em entrevista ao
jornal El País, em 1993. Em plena primeira metade do
século XX, e numa sociedade ainda fortemente patriarcal, meio artístico
incluído, a artista sempre se afirmou enquanto mulher, exercendo a sua
liberdade sem limites.
Antes de se apaixonar por
Ernst, Carrington já se tinha apaixonado pela reprodução de uma pintura
dele, The Children Menaced by a Nightingale ("As
crianças ameaçadas por um rouxinol"), executada em 1924, quando a artista
tinha sete anos. Curiosamente, seria a sua a mãe a oferecer-lhe, quando era
uma jovem estudante de arte, o primeiro exemplar de Surrealism, editado
pelo crítico Herbert Read – mesmo assim, talvez não estivesse preparada para
receber, não muito tempo depois, a notícia de que Leonora tinha abandonado
Londres com o pintor surrealista. Carrington, então com 20 anos, e
Ernst, de 46, conheceram-se num restaurante da capital britânica, o Barcelona,
com Man Ray, Lee Miller e Paul Eluard. Foi com ele que percebeu que as
suas pinturas se inscreviam naturalmente nas vanguardas que viriam a definir o
modernismo no período entre as duas guerras mundiais. Cortou as ligações
com a família e refez a vida com Ernst. Amaram-se durante três anos em Saint
Martin d'Ardèche, em França, até que o avanço nazi destruiu o amor idílico e
artístico entre os dois.
Nos seus anos franceses,
Leonora Carrington e Max Ernst costumavam reunir-se à mesa do café Les Deux
Magots, em Paris, com outras personagens do movimento, como Joan Miró e André
Breton. Ao núcleo duro juntavam-se frequentemente Pablo Picasso e Salvador
Dalí. “Eram um grupo essencialmente de homens, que tratavam as
mulheres como musas. Isso era bastante humilhante. Por isso, não quero que me
chamem de musa de nada nem de ninguém. Jamais me considerei uma mulher-criança,
como André Breton queria ver as mulheres. Nunca quis que me entendessem assim,
nem tão pouco ser como os outros. Eu caí no surrealismo porque sim. Nunca
perguntei se podia entrar”, explicava a pintora na mesma entrevista feita na Cidade do México.
A detenção de Max Ernst,
primeiro pela polícia francesa e depois pelas autoridades nazis, que o enviaram
para um campo de concentração, separou-os. A guerra dividiu os surrealistas
como tinha dividido outras famílias. Leonora, que se confessava burguesa,
detestava política e não queria ouvir falar de comunistas, ficou sozinha e
fez-se à estrada para o salvar. Para ela, o surrealismo não era um movimento
político. “Foram os nazis que começaram a perseguir-nos. Éramos
fundamentalmente anti-fascistas, gente que sentia um profundo pesar por ver que
Pétain [primeiro-ministro francês à época] entregou França nas mãos de Hitler”,
diria a pintora ao jornal espanhol.
Decorria o ano de 1940,
Espanha tinha acabado de sair de uma terrível guerra civil, ainda assim o
perigo não a deteve. Sozinha, atravessou os Pirinéus para salvar o seu amante.
Madrid era o destino, ia em busca de um passaporte para poder tirar o pintor da
prisão. A aventura não podia ter corrido pior. Leonora
não tarda a chamar a atenção das autoridades espanholas, que a internam, com a
aquiescência da embaixada britânica e dos próprios pais da
artista, primeiro num convento e depois numa clínica psiquiátrica no
Norte do país, em Santander. Para assegurar que a paciente
não causará problemas durante o transporte, dão-lhe doses maciças de luminal e
anestesiam-na com uma injecção na espinha dorsal. É neste estado que é confiada
ao responsável da clínica, Luis Morales, que por sua vez a atará de pés e mãos
e a medicará com Cardiozol, um medicamento que provoca alucinações
e que, antes da introdução dos electrochoques na terapia
psiquiátrica, era usado para induzir convulsões.
“Os meus pais andavam à
minha procura. Quando descobriram que estava em Espanha, que tinha acabado de
sair de uma guerra, a embaixada britânica encarregou-se de me internar num
hospício”, relembrou a autora e escritora britânica ao mesmo El País.
Depois de se ter recusado
durante algum tempo a falar do que sofrera no seu meio ano de
internamento, Leonora acabou por deixar o relato da sua experiência em Down
Below (1944), um livro agora reeditado para assinalar o seu centenário,
e que foi publicado em Portugal com o título Em Baixo (Black
Sun, 1990).
Após esses seis
meses de internamento – em condições atrozes, se dermos crédito ao
seu testemunho –, é entregue aos cuidados de uma enfermeira e dama de
companhia, com quem viaja para Lisboa, cumprindo instruções dos seus pais, que
pretendem embarcá-la rumo à África do Sul, onde seria novamente internada numa
instituição psiquiátrica. Mas a paciente estava mais lúcida do que a sua
guardiã esperaria e conseguiu escapulir-se, refugiando-se na
embaixada mexicana em Lisboa, onde trabalhava o diplomata e escritor
Renato Leduc, que conhecera quando este estava colocado em Paris e
frequentava os meios surrealistas.
Quis o fado que viesse a
encontrar também em Lisboa o próprio Max Ernst, o amante que perdera um ano
antes. Mas foi com Leduc que fugiu para as Américas, acabando por instalar-se
na Cidade do México em 1942. E também foi com ele que se casou.
Mas o que aconteceu em Lisboa?
Quando finalmente chegou
a Lisboa, em 1941, Leonora Carrington pensava que Max Ernst já estava morto.
Nalgumas versões da história, como a que Withney Chadwick recapitula
em Women Artists and the Surrealist Movement, os dois reencontram-se num
mercado; noutras, o reencontro dá-se sobre a Baixa da cidade, no topo do
Elevador de Santa Justa. Leonora tê-lo-á abraçado para se certificar de que
estava mesmo vivo.
Max Ernst chegara a
Lisboa acompanhado
da coleccionadora de arte americana Peggy Guggenheim, que o tinha
ajudado a libertar-se do campo alemão em que o haviam encerrado. Estavam
juntos, Ernst e Guggenheim. Não se sabe se o pintor terá confessado que tinha
companhia. Nem se sabe se ela lhe terá dito que fora internada como louca
apenas porque queria um passaporte para resgatá-lo da prisão.
O que disseram um ao
outro ficou em segredo. O que é certo é que voltaram a separar-se. Se
formos muito românticos, acreditemos que a despedida aconteceu com os dois a
olharem Lisboa desde o topo do Elevador de Santa Justa; ou entre os corredores
do mercado. Ele partiu de avião na companhia de Peggy Guggenheim, que
viajava ainda com o ex-marido e os filhos. Ela partiu com Leduc num barco que
levava, por coincidência, alguns dos quadros de Ernst para a América.
O casamento com Leduc,
20 anos mais velho do que Leonora Carrington, terá sido a solução que ambos
encontraram para retirar a artista da tutela dos pais, evitando um novo
internamento e permitindo-lhe deixar Lisboa enquanto esposa de um diplomata.
Quando voltou a ver Max
Ernst em Nova Iorque, foi já como mulher de Leduc. E os encontros com o
ex-amante passaram a ser hábito. O marido da artista era amigo de Picasso, com
quem passava horas em Nova Iorque a discutir tauromaquia, e às conversas
juntava-se o agora esposo de Peggy Guggenheim, Max Ernst.
Em segredo ficou também
o que Leonora sentiu de cada vez que o encontrou nestas tertúlias em Nova
Iorque, entre 1941 e 1942, antes de se fixar definitivamente na Cidade do
México. A artista nunca respondeu a perguntas sobre a sua vida amorosa anterior
a 1945. Dos sentimentos de Max Ernst sabemos mais, a partir da
autobiografia do seu filho Jimmy Ernst: "Num minuto ele era o homem
que eu recordava de Paris – vivo, brilhante, espirituoso, e em paz – e de
repente via no seu rosto a expressão de quem acorda de um pesadelo. Cada dia em
que ele a encontrava, e isso acontecia muitas vezes, acabava assim."
Mas a história nunca foi contada na primeira pessoa.
Leonora Carrington
acabaria por divorciar-se de Renato Leduc e por voltar a casar, desta vez com
Emeric Weisz, fotografo húngaro amigo de Breton, que tinha chegado ao México,
juntamente com outros refugiados da Segunda Guerra Mundial, num barco português
saído de Casablanca.
“Foi então que conheci
Octavio Paz, Diego Rivera, Frida Kahlo e José Clemente Orozco. Na verdade, o
Orozco e o Rivera não me interessavam minimamente, por serem muralistas
políticos”, recordaria a artista ao El País.
Da pintura para a escrita
Filha rebelde de um magnata
do têxtil, Leonora Carrington tinha sido expulsa de vários colégios antes de
começar a estudar pintura em Florença e em Londres, com cerca de 16 anos. As
suas pinturas de figuras estruturadas e complexas ilustravam a sua própria
vida. No universo pictórico e literário que construiu ao longo da vida,
mostrava um mundo original, onde as fronteiras entre o humano e o desumano,
a fantasia e a realidade, a morte e a vida se dissolviam. Entre as suas
obras destacam-se La giganta, Quería ser pájaro, Laberinto, El
despertar, Y entonces vi a la hija del Minotauro e El juglar.
A par da pintura,
Carrington tinha um gosto especial pela escrita, e foi por aconselhamento
médico que voltou a escrever, já no México: Pierre Maville deu-lhe a solução
para se libertar das inquietações do passado. Ainda não tinha 30 anos quando
começou a entregar-se à ficção, reunindo-a mais tarde em The Complete
Stories of Leonora Carrington, histórias que falavam sobre si.
The Debutant, uma
das histórias compiladas nesse volume, dava conta das suas reinvidicações
contra a família, que acusava de a ter tratado como um objecto, ao prometer a
sua virgindade, o corpo que era seu. Os pais de Carrington queriam que se
casasse com um membro da realeza britânica, e por isso a artista debutou aos 17
anos na corte de Jorge V. O conto acompanha uma hiena, a personificação de uma
menina debutante que, tal como Leonora, não queria ser entregue a outros.
A mulher que fugiu de
casa e andou por vários países para ser fiel a si mesma, que foi símbolo da
vanguarda no México, preferiu nos últimos anos discrição e privacidade, mas não
a teve. A sua vida agitada, com muitas aventuras pelo meio, valeu à escritora Elena
Poniatowska, sua amiga durante mais de 50 anos, o prémio Biblioteca Breve
2011, com a biografia Leonora.
A rainha Isabel II
condecorou-a com a Ordem do Império Britânico em 2005. O seu mérito foi e ainda
hoje é reconhecido. Mas afinal quem foi Leonora Carrington? Na já
referida entrevista ao El País, a própria respondia: “[Foi] uma pessoa
como qualquer outra, que descobriu na vida o que podia. Ou talvez alguém que
tenha sobrevivido com muito 'cabrón trabajo', como se diz no México. É por isso
que eu não gosto que me chamem de musa”, concluía.
Leonora Carrington morreu a 25 de Maio de 2011 na Cidade
do México, com 93 anos.
Texto editado por Inês Nadais.
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