São as virtudes teologais, diz a cartilha, relacionando-as com
as pregações eclesiásticas a respeito do Deus benfazejo que nos orienta há
centenas de anos.
O artigo de Manuel de
Carvalho impõe-nos a mesma prática aplicada ao novo deus que se desenha no
nosso horizonte diário, horizonte várias vezes atamancado, sendo esta uma
delas, segundo as promessas e perspectivas desse que assim conquista os votos
da nossa crença, sem ter dado provas de que efectivamente os merece. Tenhamos, pois,
muita Fé nele, com Esperança numa vida melhorada em cada dia que
passa. Pratiquemos igualmente a Caridade, aliciados pelos apoiantes à
esquerda, desse deus dos nossos destinos. E seremos felizes sempre, assim
confiados, assim confiantes, como bem nos descreve Manuel de Carvalho.
Amen.
OPINIÃO
Uma década gloriosa para
António Costa
O país endividado até
à medula parece pronto para se deleitar com um novo ciclo de obras públicas.
Manuel de Carvalho
PÚBLICO, 30 de agosto de
2017
O cumprimento de uma
simples legislatura já não cabe na ambição de António Costa.
No seu longo
discurso na Pontinha, no fim-de-semana passado, o primeiro-ministro
desfez as vestes do líder circunstancial, vestiu a pele do estadista e rasgou
os horizontes do país para os próximos dez anos.
A mudança da perspectiva é muito mais do que uma declaração adaptada ao
momento: é todo um programa. O primeiro-ministro que chegou ao poder
depois de o seu partido ter ficado em segundo lugar nas eleições, o líder
frágil que embarcou na aventura incerta de governar com parceiros
historicamente rivais acumulou músculo para deixar de se preocupar com a
mercearia do quotidiano e ganhou confiança para meter as mãos na construção do
futuro. Mais do que o homem que “virou
a página à austeridade” e recolocou o país na senda das contas
estáveis e da economia a crescer, António Costa começa a ver-se imortalizado
num pedestal com o braço a apontar o lustro do Portugal que se reergueu dos
escombros da troika.
Ninguém esperaria
grandes novidades de um discurso de fim de Verão. Seria normal aguardar
palavras, ideias ou afectos carregados de propaganda, porque em causa estava em
primeiro lugar um abraço às hostes socialistas e um chega para lá aos
adversários. Ninguém estranharia uma ou outra promessa a inscrever no Orçamento
do Estado ou um gesto de afago à função pública.
Mas António Costa foi muito para lá da tradição. Num ápice, o Governo que
falhou clamorosamente no combate aos
incêndios florestais do Verão fez o reset de
todos os seus males e, com galhardia, diz-se capaz de convergir com os
parceiros mais ricos da União Europeia.
O país endividado até à medula parece pronto para se deleitar com um novo
ciclo de obras públicas. O tesouro que dá para as pagar as contas públicas com
um défice marginal apenas à custa de enormes
apertos na despesa pública – ou pela conjuntura externa excepcional -,
está aí pronto para distribuir IRS, pensões ou progressões nas carreiras do
pessoal do Estado em nome de “uma mudança de políticas”.
Já vivemos na nossa
existência pelo menos uma vez este clima morno baseado na profecia de um futuro
risonho baseado no devaneio do desejo. Na segunda metade dos anos 90, quando
Portugal começava a esgotar a sua energia e o efeito do choque da Europa e dava
sinais de derrapar, ouviam-se a cada passo os gurus do optimismo a garantirem
que, no prazo de uma geração, seríamos tão ricos como a rica Alemanha. Na
segunda metade dos anos 2000, quando o Governo
Sócrates dizia ter o défice controlado e
apostava na inovação e no conhecimento, havia quem prenunciasse uma
transformação por decreto de uma sociedade com fortes laivos de arcaísmo num
modelo de ciência capaz de fazer corar a Suécia de inveja.
Deu no que deu. No alheamento, na passividade, no torpor, no endividamento,
na corrupção ou na criação ou reforço das velhas redes clientelares que adoram
governos refastelados e autocomplacentes.
O Portugal que
ardeu, o Portugal que conserva dos mais baixos índices de produtividade da Europa,
o país que tem uma economia em desenvolvimento incapaz de pagar o seu estado
social do primeiríssimo mundo, a extensão do trabalho precário,
mal remunerado e mal pago ou o universo das empresas sem margens para investir
não cabem no augúrio da convergência decretado por António Costa.
Mais do que palavras e despesa pública, o combate a essas amarras do atraso
exigem trabalho, disciplina, um Estado amigo da iniciativa privada, uma
fiscalidade incentivadora do risco e do investimento, um discurso realista e
exigente ou um caldo de cultura política capaz de atrair mais capitais
estrangeiros.
É bom que um
primeiro-ministro fale do futuro e o faça com convicção e confiança. É bom que
António Costa sublinhe a importância da educação e da ciência, uma feliz
recuperação das políticas de Mariano Gago que, ao contrário do que a direita
neoliberal apregoava, foram decisivas para que a agricultura, a têxtil ou o
calçado sejam o que são hoje. É importante que se destaque a urgência de um
compromisso político para as obras públicas ou para o próximo ciclo dos fundos
estruturais da União Europeia – embora esse apelo soe a falso no meio de críticas
infundadas a Pedro Passos Coelho sobre a sua avaliação dos bombeiros ou
remoques “àquela senhora” do CDS. Essas apologias,
porém, arriscam-se a exprimir apenas ideais abstractos e intemporais. Como
na década
perdida de Durão/Santana/Sócrates, em que Portugal
acumulou o terceiro lugar mundial entre as economias que menos cresceram, o
país volta a distender-se e a dedicar-se aos milagres. Não há cura para
recidivas assim.
Envolto nas
discussões sobre a ideologia do género que fazem emergir o vazio de uma elite
jactante e distante do mundo real, amparado numa reforma florestal que nasce já
ultrapassada pela dimensão dos incêndios, o Governo sente necessidade do futuro
para, como se dizia no salazarismo, “viver habitualmente”.
Criar despesa certa sem nos preocuparmos na receita incerta é, afinal,
uma das grandes tradições nacionais. Agora com uma justificação suplementar: a
“devolução dos rendimentos” é o esqueleto que mantém a estabilidade política.
António Costa pedala uma bicicleta empurrada por Catarina Martins e por
Jerónimo de Sousa e a despesa pública é o combustível que os alimenta. Nada
parece existir para lá dessa necessidade, a não ser um rancor visceral a Passos
Coelho. António Costa e o ministro das Finanças têm sabido com mérito controlar
a dose de combustível que o Estado distribui. Mas governar parece ser cada vez
mais a gestão de trunfos eleitorais.
Concebida para
resistir o tempo possível, a actual solução de Governo está presa à sua
transitoriedade original e dificilmente poderá projectar o país para tempo
algum a não ser o do quotidiano.
Nem o “optimismo crónico e às vezes ligeiramente irritante”
de António Costa chega para apagar a imagem de que é um primeiro-ministro limitado
pela sua minoria no Parlamento e pela necessidade de negociar com partidos que,
na economia pelo menos, falam uma língua diferente. O modelo poupa-nos à
instabilidade política, o que é uma dádiva, mas não dá para muito mais. O
equilíbrio entre as pressões de Bruxelas e as exigências dos seus parceiros
obriga a que o imediatismo tenha prioridade sobre a visão a prazo. Com greves
como a da Autoeuropa, com palavras como investimento, risco, exportação,
competitividade ou produtividade cada vez mais distantes do quotidiano, vai-se
vivendo um dia de cada vez. O diabo, é certo, não está ao virar da esquina, mas
foi num manto de lassidão assim que o défice, a dívida e a troika encontraram o
ecossistema ideal para prosperar.
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