sábado, 30 de setembro de 2017

Como as abóboras


Autênticos fenómenos, de que se falava dantes, como coisas descomunais em dimensão, sobretudo, foi um mito criado por uma figura pública do Entroncamento desejosa de promover a sua terra. Houve abóboras e couves e outros legumes com fotos adequadas, que nos punham de boca aberta. João Miguel Tavares recupera o mito, mas em termos de grandeza abstracta – um avolumar de afirmações provavelmente falsas para eliminar responsabilidades, como essa do caso de Tancos transformada pelos interessados, e veiculada por um jornal responsável, em algo que nunca existiu: «Tancos é o novo fenómeno do Entroncamento».
Mas o seu segundo texto «Receita para pôr a extrema-direita a crescer» pode alinhar na mesma designação, como fenómeno de grandeza hiperbólica, porque se trata igualmente de acusações veiculadas pela opinião pública sobre o encaixe de enquadramentos toscos, à direita ou à esquerda, conforme os pontos de vista dos veiculadores. Ambos os textos são bem denunciadores de uma extremamente desenvolta capacidade reflexiva de João Miguel Tavares, que não alinha, contudo, na sua designação de “fenómeno do Entroncamento”, porque é efectiva e de se admirar e ler com prazer, pela agudeza de observação e ironia severa:
1- Tancos é o novo fenómeno do Entroncamento
O caso de Tancos deixa assim os campos político e militar para entrar nos domínios da parapsicologia.
26 de Setembro de 2017
Por favor, substituam o hino nacional pela banda sonora da série Twilight Zone: Portugal entrou na Quinta Dimensão. O Expresso divulgou um misterioso relatório dos “serviços de informações militares” sobre Tancos que tece violentas críticas ao ministro da Defesa e onde se alinham dez cenários sobre os possíveis responsáveis pelo roubo. Ou melhor: nove cenários sobre assaltantes e um sobre a inexistência de assalto, atribuindo-o (e cito) a uma “encenação de militares descontentes por não terem passado à reserva”. Como se não bastasse mais esta subida de degrau no patamar da irrealidade, eis que no dia em que a notícia é publicada o próprio António Costa vem afirmar desconhecer em “absoluto” tal relatório, e que ele não foi produzido por “nenhum organismo oficial do Estado português”.
O caso de Tancos deixa assim os campos político e militar para entrar nos domínios da parapsicologia. Há quinze dias, o ministro da Defesa disse que se calhar o assalto não existiu. Há dois dias, o primeiro-ministro disse que o relatório não existe. O Exército garantiu que o seu Centro de Informações e Segurança Militar (CISMIL) nunca produziu tal relatório. O Expresso afirmou que nunca disse que o relatório era do CISMIL. E, de repente, eis Tancos reeditado – basta substituir os foguetes anti-tanque por um relatório secreto e estamos no mesmo nível de ignorância e de absurdo. Desta vez – triste originalidade – com a cumplicidade do mais prestigiado semanário português, que tem culpas no cartório. Não porque o relatório não seja notícia. Mas porque a notícia é outra.
Expliquemo-nos. Que o Exército está num estado lastimável, já percebemos. Que o ministro da Defesa é o cúmulo da incompetência, estamos carecas de saber. Que o primeiro-ministro anda a empurrar as conclusões sobre Tancos para as calendas, parece bastante óbvio. Mas, até por tudo isto, dava jeito que o jornalismo não enveredasse pelo mesmo caminho de silêncios e de histórias mal contadas, e fosse mais eficaz a dar explicações. O Expresso apresentou o relatório como “um documento secreto elaborado pelos serviços de informações militares”, que “teve como destinatários a Unidade Nacional de Contra-terrorismo da Polícia Judiciária e os Serviços de Informação e Segurança (SIS)”. Se o relatório não é do CISMIL, convinha que o Expresso, ao ser desmentido, dissesse claramente de onde provém – coisa que não fez na sua alegada clarificação. Claro que o governo também sabe e não diz, mas neste caso não é sua obrigação dizer. Se o relatório não é do CISMIL, nem do SIS, sobra o SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa), mas que não pode ser classificado como um “serviço de informação militar”. Em que é que ficamos, então? Há por aí secretas desconhecidas?
O jornalismo português abusa, e muito, das fontes anónimas. Convém não inventar agora o “relatório anónimo”. Não há relatórios anónimos. Uma coisa é um jornalista não divulgar a fonte que dá os documentos. Outra coisa é não dizer claramente que documentos são esses, quem os fez e quem os encomendou. A verdadeira notícia do Expresso não é, pois, a existência de um relatório bizarro que concorre com Marques Mendes ao nível do comentário político. É o facto de entre os militares haver, como bem se vê, quem ande a conspirar fervorosamente para demitir Azeredo Lopes. Deus sabe como é nobre essa missão. Só que não compete aos jornalistas alimentarem-na com base em notícias obscuras.
2- Receita para pôr a extrema-direita a crescer
Um dia destes, só se uma pessoa for de extrema-esquerda é que não é de extrema-direita.
28 de Setembro de 2017,
Sabem qual é a melhor forma de pôr a extrema-direita a crescer? É alargar tanto o conceito de extrema-direita que cada vez mais pessoas cabem lá dentro. A receita está disponível em qualquer jornal. Todos os que acabaram de votar AfD, na Alemanha, são de extrema-direita. Todos os que votaram UKIP, no Reino Unido, são de extrema-direita – e os que votaram "Brexit" andam lá perto. Votar em Donald Trump? Só mesmo se alguém for doido ou de extrema-direita – palavras, aliás, sinónimas. Votar André Ventura em Loures? Naturalmente, um eleitor de extrema-direita. Achar que há problemas com a integração da comunidade cigana em Portugal? Extrema-direita. Excesso de islamização na Europa? Extrema-direita. Controlo apertado das fronteiras? Extrema-direita. Falhanço do multiculturalismo? Extrema-direita.
Um dia destes, só se uma pessoa for de extrema-esquerda é que não é de extrema-direita. Se acham que exagero, atentem neste texto publicado no DN de segunda-feira, após as eleições alemãs. O artigo chamava-se “Como a AfD (Alternative for Germany : German: Alternative für Deutschland, AfD)  passou de partido de universitários a partido populista” e procurava explicar esse verdadeiro saco de gatos que é a Aliança para a Alemanha (AfD), grande vencedora das legislativas de domingo. A certa altura, lia-se isto: “o essencial do seu programa, mantendo os temas iniciais, assenta em tópicos clássicos entre os partidos de extrema-direita, como a negação às alterações climáticas, a oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por aquelas”. Como podem verificar, se a minha lista inicial pecou por alguma coisa não foi por excesso, mas por defeito. Segundo o DN, negar o aquecimento global já é um “tópico clássico de extrema-direita”, e ser contra o casamento gay e a adopção por casais homossexuais também – o que basicamente inclui toda a gente que siga o Catecismo da Igreja Católica. Quem pode admirar-se que a extrema-direita esteja a crescer por esse mundo fora?
A frase do DN é absurda, claro, mas extraordinariamente clarificadora: ela demonstra que todos aqueles que hoje em dia não partilham da agenda progressista deixaram de ser classificados como conservadores, para passarem a ser militantes de extrema-direita. Também não parece mais possível ser-se nacionalista sem se ser xenófobo. As consequências desta postura são trágicas: ao empurrar tanta gente para o campo da extrema-direita, aquilo que se está a fazer é criar um muro – afinal, “não se dialoga com fascistas” – que impede qualquer tentativa séria de compreender os sentimentos e as preocupações de milhões de pessoas. Quem vota "Brexit", ou Donald Trump, ou AfD só pode estar mal informado ou ser malformado.

Sendo eu liberal e europeísta, não tenho qualquer simpatia pela AfD. Contudo, num país que recebeu 1,3 milhões de refugiados desde 2015, não me parece que um discurso anti-imigração seja necessariamente xenófobo. A AfD cresceu graças aos votos da CDU, sim, mas também do SPD e da esquerda do Die Linke. E uma das suas líderes mais destacadas, Alice Weidel, é uma lésbica de 38 anos que vive na Suíça com uma mulher que nasceu no Sri Lanka – um curto-circuito simultâneo na homofobia, na xenofobia e no isolacionismo. Mas será que isso nos faz parar dois minutos para tentar compreender coisa tão estranha? Claro que não. Com os depósitos de empatia no zero, saca-se do carimbo da extrema-direita e vai tudo a eito. A Afd, tal como Trump, não se recomenda – mas demonizar os seus eleitores é uma completa patetice.

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