domingo, 3 de setembro de 2017

Um jornalista a cem por cento


Sempre atento e certeiro, Alberto Gonçalves, pondo o dedo na ferida da nossa pesporrência, debilidade mental, mândria, idiotia, que faz que tenhamos chegado a este ponto de um país sem Rei nem Roque, que o processo da Alta Europa sintetiza, neste jogar fora uma empresa que nos daria alguma estabilidade funcional. Que nunca as mãos lhe doam, a Alberto Gonçalves, de zurzir com tal perspicácia e arrojo nesses casos da nossa moléstia, corajosamente arrostando com os comentários inqualificáveis desses em quem porventura assentam as suas análises coerentes e corajosas, embalados na onda maquiavelicamente protectora de uma governança despudorada e ruinosa deste país a esmorecer. Ai daqueles bons de facto, que se esforçam por criar para os seus filhos um país assente em valores reais, como os que movem outros países, que olhamos por um canudo. Com inveja, talvez. Com apatia e sono, sem dúvida.
Rapsódia em Agosto: meninos, meninas, medricas e outras mariquices
0BSERVADOR, 26/8/2017
Dantes um dos critérios do sucesso público era a eficácia com que se escondia a cama. Hoje é muito útil trazê-la para a rua e mudar os lençóis na cara dos transeuntes. A alteração é boa? Má? É o que é.
1. Pela primeira vez, um político português “assumiu” a homossexualidade. Por azar, o político em causa é uma obscuríssima secretária de Estado, que permaneceria na obscuridade não fosse a entrevista encomendada ao “Diário de Notícias”. Na prática, a “revelação” não escandalizou vivalma, já que, descontados pervertidos terminais, os hábitos sexuais de anónimos deixaram de excitar as massas. Curiosamente, excitam os maluquinhos das “causas”, que vêem nestas trivialidades um acto de coragem sem precedentes.
Coragem? É um pouco excessivo. Coragem seria “assumir” que se é uma coisa abominada pela maioria das pessoas ou, sobretudo, pela maioria das pessoas que mandam aqui. Coragem seria, no Portugal de 2017, defender – defender de facto e não em língua de pau – a democracia, a liberdade, o Ocidente, os refrigerantes ou insignificâncias similares. Coragem seria tomar uma posição que colocasse a sra. secretária de Estado em risco de perder amigos, família, emprego ou pelo menos o sossego. Assim, o que no máximo perderá é a possibilidade de assistir à Festa do “Avante!”, nada permissível a esquisitices. No mínimo, ganhou a notoriedade de que não dispunha e a admiração de pasmados.
Do que conheço, sou incapaz de garantir que a sra. secretária de Estado tem coragem. Porém, a julgar pelo currículo profissional e não pelas preferências lúbricas, sei o que a sra. secretária de Estado não tem: vergonha. Muito mais revelador do que a “revelação” é o preâmbulo à entrevista ao DN, onde se nota que passou pelo centro de “estudos” do prof. Boaventura, pela Administração Interna do dr. Costa, pela autarquia do dr. Costa, pelo grupo parlamentar do dr. Costa e, enfim, pelo governo do dr. Costa. Se uma cidadã assume sem hesitação tamanha série de monstruosidades, “assumir” a homossexualidade, inclinação que não lhe trará sombra de problema, é canja.
O único ponto relevante na entrevista – na qual, de resto, entrevistadora e entrevistada trocam clichés com galhardia – é, como diriam os burgessos que discorrem nos programas de “cultura”, o sintoma de que o paradigma se alterou. Dantes, um dos critérios do sucesso público era a eficácia com que se escondia a cama. Hoje, é bastante útil trazê-la para a rua e mudar os lençóis na cara dos transeuntes. A alteração é boa? É má? É o que é: as regras de uma actividade desde sempre subordinada à demagogia. A nova heroína dos direitos “gay”, que vive assustadíssima com o sr. Trump e a extrema-direita, não gasta uma linha da entrevista a falar do islão.
Tudo espremido, sobra um golpe publicitário e, com jeito, uma ajudinha na espécie de carreira a que a sra. secretária de Estado se dedica. Ela própria confessa, mesmo que com outros propósitos: “Esta minha afirmação é completamente política”. Ninguém duvida.
2. Rita Ferro Rodrigues, filha do estadista com o mesmo nome (menos o “Rita”), indignou-se com uns livros de passatempos da Porto Editora. A sra. dona Rita, que deve ter imenso tempo livre e não se indigna com as figuras do pai ou com o tratamento que culturas exóticas dispensam à fêmea da espécie ou, sei lá, com um país a arder por incúria criminosa. Por sorte, lá reservou um pedacinho da agenda para achar indecente que os ditos livrinhos sejam orientados “para o menino” e “para a menina”.
De facto, é grave. Quase tão grave quanto, por exemplo, criar um site de opiniões e desabafos cometido exclusivamente por mulheres, onde se publicam textos acriançados sobre assuntos sérios e textos pedantes a propósito de patetices. Nas suas páginas virtuais, o primarismo do pensamento e o péssimo domínio da língua debatem-se para apurar quem leva a pior. Ambos saem vencedores por larga margem. O site “Maria Capaz” parece imaginado por um pervertido elemento do “heteropatriarcado”, a fim de tentar demonstrar que o cérebro feminino médio é vazio como os que se apresentam ali. O curioso é que foi imaginado pela sra. dona. Rita.
Entretanto, por contágio ou coincidência, o processo infantil pelo qual alguns querem reduzir o mundo às pastagens que lhes ocupam o crânio ganhou força. O zelo censório entrou em roda livre, os inquisidores das “redes sociais” exigiram fogueiras, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género – coisa que rivaliza em utilidade com um Trabant avariado – “recomendou” a censura dos livrinhos e a Porto Editora obedeceu. No que toca ao fim da desigualdade de género, e enquanto não retiram do mercado 99,7% da literatura universal, a actualização gradual do Index Librorum Prohibitorum é um passo importante. Porém, insuficiente: se queremos legar um mundo sem discriminação aos nossos filhos, ainda falta a castração compulsiva destes. Mas já faltou muito mais.
3. “Não temos medo”, gritaram milhares em Barcelona. O que significa isto? Que da próxima vez que um psicopata tentar atropelá-los eles correrão ao encontro da carrinha? Que não acham o terrorismo um perigo real? Que repetem o primeiro disparate que ouvirem? Que são imprudentes? Que são valentes? Que são estúpidos? Nada disso: apenas que são mentirosos. É claro que os catalães e os europeus têm medo, muito medo, tanto medo que recusam chamar pelo nome a ameaça que paira sobre eles – e que, com frequência, com crescente frequência, sobre eles literalmente avança. No fundo, esperam que a negação lhes compre a sobrevivência. Como se tem visto, é um bom plano.

O tempo sem Cavaco
OBSERVADOR, 2/9/2017
Há dias, Cavaco falou e não evitei certa saudade. Não é saudade do homem. É saudade de alguém, ou de alguma coisa, que não pertença à desgraceira que hoje temos.
A propósito do Grande Escândalo da semana passada, perguntei aos meus botões porque é que os novos censores se ofenderam tanto com os livrinhos “sexistas” da Porto Editora e não se ofendem com milhares de obras literárias de facto, facilmente condenáveis por “sexismo”, “racismo”, “xenofobia” “homofobia” ou qualquer outra calamidade equivalente. Dito de maneira diferente: a que título, em Portugal, os novos censores ignoram as inúmeras “discriminações” em Defoe ou Eliot, Twain ou Nabokov? Sensatos, os meus botões responderam: porque os novos censores nunca leram nada assim, e se leram não perceberam.
Na verdade, os novos censores exibiram vasta incapacidade em perceber os exactos livrinhos da “polémica”, conjuntos de exercícios e passatempos destinados a criancinhas de tenra idade. Conforme Ricardo Araújo Pereira mostrou no Governo Sombra, as edições “para o menino” e “para a menina” são rigorosamente iguais, excepto pelas ilustrações, assinadas por autoras diferentes. No meio das semelhanças, os novos censores lá conseguiram descobrir o rabisco de um labirinto cuja exigência era aparentemente maior na versão masculina do que na feminina. Alguns dos novos censores ainda estão a tentar sair de ambos.
Não estamos apenas no domínio da infantilidade: a coisa já roça a perturbação mental. Ao longo dos séculos, os partidários das repressões raramente se distinguiram pela inteligência. Os novos censores distinguem-se pela assustadora falta dela. Essa deficiência impele-os a farejar bibliotecas de creches, à cata de obras blasfemas para alimentar fogueiras. Ia acrescentar que é melhor isso do que andarem na droga. Mas a droga talvez envergonhe menos.
Naturalmente, o Grande Escândalo da semana passada não está totalmente desligado do Grande Escândalo desta: a “aula” de Cavaco Silva numa qualquer pândega do PSD. Cavaco falou e resmas de nulidades – grosso modo, as mesmas que exigiram e aplaudiram a recolha dos livrinhos – atropelaram-se para condenar o facto. Por definição, as nulidades não deviam importar. Cavaco importa um bocadinho e, hoje, não só um bocadinho. Durante os trinta anos em que influenciou o país, nunca me inspirou particular simpatia ou antipatia, e frequentemente dei por mim a tentar escolher se lhe preferia as óbvias virtudes ou se me repeliam as diversas limitações. Há dias, porém, Cavaco falou e não evitei certa saudade.
Não é saudade do homem. É saudade de alguém, ou de alguma coisa, que não pertença à desgraceira que hoje temos, por ironia e fraqueza consagrada no final da presidência anterior. E o principal mérito de Cavaco consistiu justamente em não “pertencer” – embora pertencesse mais do que ele gostaria e do que os seus devotos julgam. Não sendo o herói imaculado que estes imaginam, a comparação de Cavaco com os destroços vigentes eleva-o ao céu. Apesar dos obstáculos, próprios e alheios, acabou por se assemelhar a um estadista, emprestar à sua época uns vestígios de razoabilidade e, ocasionalmente, ajudar a fingir que isto é um lugar frequentável. As espantosas criaturas que, oficial e oficiosamente, agora distribuem ordens não merecem um adjectivo que caiba num jornal familiar. E os ansiosos escusam de vir lembrar os erros que Cavaco cometeu e os corruptos que Cavaco promoveu: por um lado, a incompetência e a corrupção são essenciais à política; por outro, não me interessa (e não preciso) argumentar que a “nomenclatura” actual é especialmente incompetente ou corrupta. Ou demasiado matarruana até para os padrões caseiros.
O nosso problema é a “nomenclatura” ser – desculpem o jargão técnico – doida varrida. No último ano e meio, sob as “notícias” amestradas do “milagre económico” e uma oposição muda ou cúmplice, desatou-se a transformar o país remendado e periférico da praxe num imenso seminário de actividades circenses. Deixo a cada um a tarefa de decidir quem são os malabaristas e os palhaços. Certo é que, em circunstâncias “normais”, o episódio dos livrinhos da Porto Editora não passaria de um interlúdio cómico. Nas circunstâncias presentes, é uma peça trágica, repleta de personagens inverosímeis e unidimensionais: os que, no ócio, inventaram um pretexto para se sentirem ultrajados; os que, nos “media” e nas “redes”, amplificaram o ultraje; os que, no governo, proibiram o ultraje. É claro que, no tempo de Cavaco, tais personagens já se contorciam por aí. A diferença é que, no tempo depois de Cavaco, as personagens mandam, e mandam sozinhas. Vale que o caldo de toleima, prepotência, fanatismo, ignorância e poder absoluto costuma correr bem, e tão bem para as meninas quanto para os meninos.
Nota de rodapé

Para quem não tenha habitado o planeta durante o último século, o caso da Autoeuropa é uma pertinente aula prática sobre os propósitos, os métodos e as consequências do socialismo “científico”. Há uma empresa multinacional relevante para as dimensões da economia nacional, viável há muitos anos e com um apreciável currículo de razoabilidade nas relações entre empregadores e empregados. Há uma proposta, ou decisão, para alargar o expediente aos sábados, com troca de folgas e aumento desproporcionado (no bom sentido) dos salários. Há um bando de preguiçosos daninhos, de facto serventuários do PCP, que toma aquilo de assalto e promove uma greve inédita. Há uma enxurrada de referências cínicas à “luta” e aos “direitos”, aos “piquetes” e à “paralisação”. Há a suspeita de que, não tarda, os donos da coisa cansam-se desta Venezuela à beira-Sado e vão produzir carrinhos em paragens menos folclóricas. Há a certeza de que, logo que os trabalhadores fiquem sem trabalho nem dinheiro (mas com sete dias livres por semana), a culpa será do capitalismo selvagem. Há esperança de que, sobre os escombros e a miséria, o PCP decrete a vitória das forças revolucionárias. Não há esperança de que isto sirva de lição.

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