sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Tudo isso se viveu já


Sim, bastou uma mudança de regime. Dizia-se que vivíamos numa paz podre, de carisma autoritário, e fez-se uma revolução atida a princípios que escorraçavam preceitos e preconceitos, segundo o mesmo ideal de repugnância por tudo o que significasse realização, trabalho, bem-estar que daqueles, sobretudo, resultou, (criadores, afinal, de riqueza e emprego), e que estabeleciam propostas de igualdade social, aparentemente justa, mas que se manifestou sempre, nos seus líderes, por uma defesa unilateral de direitos dos desfavorecidos, num ódio inexplicável pelos que eles consideram os favorecidos. E a debandada dos do regime anterior, para junto dos do novo regime, notou-se bem nessa altura, o que me impressionou como traição e sabujice e, como repúdio maior, o desamor pela história pátria. Formaram-se partidos, aparentemente mais equilibrados, e os quarenta anos deslizaram sem o afundar total noutra ditadura, que seria se imperasse o domínio da esquerda vinda do chefe primeiro e seus sequazes. Mas, em termos de escrita, pelo menos, esses que se deram a conhecer como mais à direita dificilmente puderam singrar no genérico dos apreciadores literários, e hoje, que a esquerda prevalece, mau grado a trafulhice que foi preciso fabricar para o seu domínio, ela vai lançando as garras que abafam as vozes de protesto, como o artigo de Maria João Avillez dá a entender, na sua prosa desassombrada: “Os novos proprietários querem-nos fora de pé, ao largo de nós próprios, cortados pela raiz do que somos e representamos. Querem que nos transfiguremos noutros, atraiçoando o nosso “nós” individual e anestesiando o “nós” colectivo.”
Sim, António Costa sabia o que fazia quando se apoderou do poder. Hoje, não há, na aldeia como na cidade, quem não entoe loas a esses da união governativa que lhes distribuíram mais uma côdea, no seu objectivo democrático de angariar votos para o próximo governo de coligação ou sem precisão dela. Este está no papo (de Costa), emudecidas as vozes de protesto, mais habituadas ao politicamente correcto da deferência, da submissão ou da indiferença. Vozes, como as de M.J.A. e algumas mais que nos habituámos a apreciar na sua qualidade crítica, logo merecem ataques mais ou menos perversos de comentadores acomodados com uma situação que lhes dá pano para mangas, no destempero da falta de classe e, a maior parte das vezes, de gramática.
O meu mundo não é deste reino
OBSERVADOR, 28/8/2017
Do outro lado da guerra cultural não há voz nem vontade. O comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de convocatória? Não sei, mas a fractura é grande.
1. Vigiam-nos. Estão atentos. Estão de serviço. Mobilizados pelo pensamento único, uma nova forma de vida. Nunca se cansam. São ferozes na vigilância, implacáveis na perseguição, sonoros na censura. A nova cartilha e os seus mandamentos não incluem desvios. A nobre arte de debater, a esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o valor da discordância, estão proibidos pela própria natureza da subversão civilizacional em curso.
Os novos proprietários querem-nos fora de pé, ao largo de nós próprios, cortados pela raiz do que somos e representamos. Querem que nos transfiguremos noutros, atraiçoando o nosso “nós” individual e anestesiando o “nós” colectivo.
Querem-no com ferocidade, não usando de contemplação: o castigo terá apenas o limite da sua própria obscenidade: a intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público, abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão. A extrema-esquerda, radical de seu nome próprio, é aliás exímia na aplicação destes instrumentos que manuseia com a habilidade ácida do ódio. Temo-lo visto. É preciso licença prévia para pensar e depois dizer alto o que se pensou.
Qualquer “forma mentis” que não encaixe no novo código de conduta está automaticamente banida do seu direito de cidade, privada do oxigénio da liberdade e da vitamínica possibilidade da interrogação e debate. Há uma guerra cultural em curso.
2. Os novos proprietários das mentes&costumes não valem grande coisa eleitoralmente, nunca governarão sozinhos, o seu número no país é inversamente proporcional ao eco mediático que os propaga mas para quem não estiver distraído nada disso tem porém grande importância. Não tem, porque não é disso que se trata. É mais substancial, mais fundo, mais grave. Por isso, eles valem pelo que os deixamos conseguir valer.
Valem pelo aparente êxito com que corroem os alicerces que sustentam o berço civilizacional de onde somos, valem pelo modo como vão calcinando o que conhecemos como nosso mundo. Valem porque exibem o fôlego e a mestria dessa demencial empreitada que é o determinarem-nos: formatando-nos as mentes, anestesiando–nos as reações, domesticando-nos o instinto, incutindo-nos o receio de destoar. De ser expulso do coro onde impuseram uma nota só.
E valem, claro, pela desenvolta segurança de quem se implantou – cá dentro e lá fora — com estratégia e método. Ocupando lugares chaves tão relevantes como a Academia e a Media, convocando a Ciência para o festim, não descurando parte dos sistemas partidários, não esquecendo as representações parlamentares, cuidando da propaganda e do espectáculo. Oficializando enfim um novo mapa cultural e um guia moral (?) desconexos, híbridos, convulsivos, sem raiz. Saídos do nada. Em nome de uma abstrata “culpa ocidental” abatem-se valores, padrões, referências, história, memória (mas saberão eles que não há organização social capaz de vencer sem valores e sem passado?). Abatem-se como árvores, em nome do repúdio pela herança civilizacional recebida. Os novos proprietários exigem-nos numa palavra, que mudemos de pele cultural.
A isto se chama uma guerra.
3. Lá fora tudo “isto” está em estado de mais adiantada convulsão mas é fraco consolo: algo nos separa – para pior — do resto da Europa democrática e dos Estados de Direito a que gostamos de dizer que pertencemos. Separa-nos uma fractura que agrava a vulnerabilidade da nossa condição face à dimensão da catástrofe: o caminho está livre (ou parece livre) para ela, não há entrave, nem resposta aos novos proprietários. Refiro-mo obviamente a esse imenso espaço (metade do país?) do PS para a direita. Pouco o representa, poucos dele cuidam a não ser partidos exaustos e envelhecidos e meia dúzia de respeitáveis (e resistentes) políticos ou intelectuais. Não há instituições que se reclamem desse espaço, há pouco vigor, são escassas as iniciativas doutrinadoras ou políticas por ele produzidas. A discordância é expressa quase em surdina e desastradamente, e basta pensar na CIP para só citar um exemplo. Quanto à Universidade, faz pagar caro a professores e mestres fora do reduto da esquerda e agora fora do jardim envenenado do pensamento único ou da tirania do politicamente correcto.
Desde 1974 que a “media” ignora, despreza ou suporta mal a “ideia” de direita ou mesmo de centro-direita, troçando ou destruindo os seus líderes e ajudando a acabar com eles, mesmo que o voto os legitime. Ao contrário da Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Holanda, e etc., em Portugal nunca se impôs, com substância e carácter definitivo, um jornal ou algo de parecido com um órgão de comunicação social de centro-direita, conservador ou menos conservador. O qual, como sucede nos países citados, funcionaria também como catalizador/produtor de opiniões, ideias, movimentos, debates ideológicos, pensamento político. Mas nem isso: o espaço continua semi-órfão, inorgânico, mal-amado. É um mistério.
A sociedade civil é tão débil quanto isso? As elites tão frágeis? A dependência do Estado tão avassaladora? Há metade do país sem voz nem vontade? O comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de convocatória? Não sei, mas a fractura é grande. Do outro lado da guerra cultural em curso há quase só anestesia, mutismo, distração, indiferença. E simpatia até, quem sabe?
Impressiona. Ou não?

4. Posso parecer um daqueles automobilistas que entram em contra-mão na auto estrada achando que todos os outros estão enganados. Mas, caro leitor, o pior de tudo seria achar que subitamente exibo um fatal pessimismo ou que exagero, ao dizer-lhe que o meu mundo não é deste reino (e o seu, é?). Que me deu para aqui e se calhar acordei mal disposta. Não se iluda. Não conduzo em contra-mão, não estou fora de pé, sempre pude com os inimigos e tenho-me livrado, graças a Deus, dos “amigos”. O que não é mais possível é acordar e constatar que aquilo que na véspera se tinha como normal afinal não é. Por decreto emitido pelos novos proprietários, deixou de ser. Far-me-ia por isso alguma impressão não ser capaz de contribuir para um alerta vermelho de perigo. Perigo sério, porque isto é a sério

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