Da nossa planura vergada no vento. E acusa, vigorosa, a estreiteza de um povo, que se deixa iludir pelas
baforadas petulantes de um governo estreito de princípios, no acaso das suas ambições.
Maria João Avillez aponta os casos recentes, interrogando sobre as respostas às
perguntas em vão feitas, sobre desmandos graves, do fogo, das armas, da
mentira, do alarde, da omissão, da arrogância, da insensatez, da indiferença
real perante factos reais indecorosos, mas que se chutam para o canto quando propícios
ao escândalo, até definhar o motivo que o provocou, no fluxo contínuo de novos
escândalos que deixam as plateias indiferentes ou que as forçam ao silêncio, na
chateza comodista da nossa patetice amedrontada. O texto de Maria João Avilez, que a revela altiva e íntegra, na autenticidade e firmeza da sua escrita tão expressivamente literária.
A plateia dos patetas
OBSERVADOR, 20/9/2017
1. Os governos é como as marés: vão e vêm.
Nascem, estão, partem e vêm novas marés. Mas o embaraço, não. O embaraço
constrangido que determinadas governações podem causar, fica. Um dia, daqui
a muito ou pouco tempo – é irrelevante para o que me traz – a geringonça
desconjuntar-se-á, mas aquilo que nos constrangeu, envergonhou ou embaraçou,
permanecerá, temo bem, impresso nas mentalidades e no ar do país. Não me refiro
a medidas, prioridades ou escolhas que competem a quem governa, mesmo não tendo
sido eleito para tal. Refiro-me a uma certa, como dizer? cultura do modo
como se está na política e do modo como ela se pratica. Um misto de leveza e
manha, de “tudo nos é permitido” e vale tudo. Da manipulação encenada a partir
do palco do poder para a plateia de patetas onde quem não é da geringonça, é
suposto estar sentado.
E onde, outros dos
(grandes) embaraços é certamente a fartura dos exemplos dessa forma de estar,
espécie de nova cultura.
2. Embaraço não chega para definir (?) a misteriosa
“forma mentis” do ministro da Defesa e a embaraçosíssima (e pelos vistos,
também eterna) questão do roubo de Tancos. Recorre-se a “inquéritos”, a
salvífica solução de sempre para salvar a honra de vários conventos, embora se
saiba à partida (e à chegada) que pouco ou nada se averiguará cabalmente.
Donde, não há remédio senão manter as mesmas perguntas de há meses: que se
passou que não merecemos ou podemos saber? Afinal não houve roubo? Ou
houve e quem roubou, “no limite”, caro ministro, fez-lhe o favor de arredar
aquela tralha de um perímetro mal guardado e fez muito bem porque o material
estava nas lonas? Ou, pelo contrário, ocorreu algo de muito mais chato, tão
chato que o melhor é tratar-nos como tontos que não justificam explicações
difíceis? Seja o que for, passou uma estação do ano (são só quatro) e pouco
sabemos. A não ser que há um ministro que é um erro de casting, entre
outros erros; que havia um chefe de Estado Maior que não fora esta
tragicomédia e não se adivinhava que era outro erro de casting; que com
esta “actuação” o poder deixou claro como trata os portugueses. E ainda: um
país, uma elite, uma classe política que convive tão bem com tudo isto não se
respeitam a si próprios. Não podem ser levados a sério ou tidos em conta fora
de portas. E pensar que pode não ficar por aqui… É que conforme me lembrou um
dia alguém avisado, “em política há sempre pior”.
3. Há dias foi o ministro das Finanças a
“brincar” à baixa de impostos (é de impostos que falamos), parecendo-nos
que ia ser muito bondoso para com o nosso esmifrado dinheiro para logo se
perceber que a bondade era magrinha e não era nova, a medida já estava programada.
Uma leviandade deste risonho Terreiro do Paço, assente – como tantas vezes
ocorre nesta governação – na peregrina ideia (?) de que se pode, sem limite
de vergonha, fazer a toda a hora de nós parvos.
Há infelizmente mais
exemplos. Irão certamente extenuar ou exasperar o leitor que já os conhece e
preferiria porventura ouvir falar das autárquicas ou dos discursos da ONU. Mas
se não contamos, repetimos e recordamos estes maus exemplos, estamos não só
– por omissão – a concordar com aquilo de que discordamos, como a consentir
continuar sentados na plateia dos patetas. Apreciando por exemplo a
leveza de alguns governantes e outros tantos legisladores. No caso, uma
iniciativa abismadoramente oportunística, e estou agora a pensar nas
barrigas de aluguer. Aprovadas de uma pernada só porque dá jeito ao PS,
ao governo, a António Costa, trocar algo que em nome de uma suposta boa causa
(para quem?) se utiliza como moeda de troca, comprando com ela um também
suposto sossego governamental. Ou seja, dá-se uma barriga ao Bloco e com isso
estica-se o prazo de duração em S. Bento. Se raríssimas vezes na minha
vida vi algo de tão essencial ser tratado com tamanha leviandade, o certo é que
um dia a geringonça parte-se mas os alugueres ficam.
Podia continuar. Relembrar,
pela enésima (tristíssima) vez os mortos de Pedrogão, os passas culpas,
o destino desconhecido de bens e dinheiros para “lá” enviados; a desresponsabilização
imediata (imediata, como um tique convulsivo) de todos os diversos actores ou
intervenientes nesta tragédia; o fantástico caso do “Siresp”, outro
mistério marca Portugal; o prazo dado pelo Presidente da República para
um definitivo esclarecimento deste caso mas o arrastar desta penosa história
permite todas as dúvidas: havia prazo? Qual era? Ou o Presidente já está afinal
“esclarecido”, nós é que não?
Ou seja: das barrigas de
aluguer, oferecidas sem hesitar como contrapartida à esquerda radical, à
sofreguidão das cativações para beneficiar a eleita fatia do funcionalismo público
(apesar das injustas consequências das mesmas cativações nos mais
desprotegidos); do luto sem responsáveis de Pedrogão à vergonha sem rosto de
Tancos; dos impostos que descem sem descer às iluminadas experiências dos dois
titulares da Educação, Mário Nogueira e Tiago Brandão Rodrigues, eis alguns
exemplos que mais do que aquilo que expressam, me interessam como radiografias
de um comportamento político. E de uma “cultura” com a qual não estávamos assim
tão bem relacionados: qualquer “actuação”, por menos recomendável que
seja, é logo totalmente secundarizada pela compensação que traz; e o não
assumir de responsabilidades ou o não prestar explicações públicas é praticado
com uma estarrecedora naturalidade. Uma estranha forma de uso e manejo do
poder, instigadora (e “instaladora”) de uma cultura de indiferença, de
relativização do erro, de jogo, manha, camuflagem, irresponsabilidade
políticas. Vale tudo?
Uma pena. Não era
preciso ser isto, nem ser assim.
4. No ambiente inquinado de irracionalidade (e não há nada
que a política mais deteste que a irracionalidade) duvido que os propósitos
acima emitidos sejam vistos ou lidos como o que são e nesse sentido, como eu
gostaria que naturalmente fossem: contributos normais de reflexão, perplexidade
ou critica face ao que espanta ou perturba um cidadão comum. Mas parece que
para gente como eu, sem assento no “novo olimpo”, não sobra esse direito. Temos
erisipela.
Desde há meses e meses
que o Governo dispara sem sombra de racionalidade, justeza, lucidez (para não
falar em seriedade intelectual) sobre a anterior governação, pretendendo
esconder sob os disparos o quanto tal pesada herança lhe forneceu uma
considerável (e indispensável) dose de oxigénio financeiro. Sem a qual nenhuma
bondade jamais teria lugar, nenhum brilharete disfarçado de generosidade,
nenhuma “reposição” mascarada de justiça social, nenhum aumento camuflado de
“nós somos bonzinhos, eles eram péssimos”, teriam jamais ocorrido.
De modo que pior ainda
do que os quadros de mau comportamento político que acima descrevi e deveriam
fazer acordar algumas boas almas, é o facto de eles irem ser lidos ao viés e
com acidez. Outra pena. Mas parece que é assim que está a ser adubada uma parte
do país: com ácido.
Outra pena, não: a maior
delas. E certamente a mais evitável.
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