quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Et lux facta est


 Foi logo no primeiro dia, segundo reza a crónica bíblica, nomeadamente nos seus inícios, começando no Génesis, mas já Deus tinha criado o Céu e a Terra, esta envolta em trevas, que era uma coisa por demais aterradora, se pensarmos bem, com o Espírito do Senhor a mover-se sobre as águas, às escuras, a luz veio só depois, para separar das trevas, tudo bem explicado, logo no versículo 3. E logo as coisas surgiram à vista, mas só do espírito do Senhor, que se fartou de trabalhar nos dias seguintes, já com luz, pois o Adão e a Eva são posteriores, o primeiro vindo do pó, a segunda duma costela, um autêntico vexame, pertencem ao sexto dia, já nos versículos 26 a 31, mas com um vasto domínio sobre o resto da fauna e da flora, como Deus bem mandou, o domínio sendo preceito logo dos inícios. Finalmente, ao sétimo dia, Deus pôde descansar, embora não por muito tempo, pois a desobediência de Adão e Eva, comendo do fruto proibido, (é certo que por maus influxos da serpente maligna, a qual Jeová também criou), fez que do paraíso terreal onde viviam, inocentes, fossem precipitados neste, que para alguns, afinal, também é paradisíaco, embora numa ínfima parte, já que nem todos têm acesso à maçã, e Jeová andou numa fona a ordenar e a castigar, pela Bíblia além.
Tudo isto vem na esteira do que Bagão Félix muito bem conta no seu artigo do Público, de 26 de Agosto de 2017, que informa sobre o “antes” comunista das forças revolucionárias africanas – mais especificamente as angolanas - que tiveram acesso à maçã, com muito apoio de luzes internas e externas, e foram, por tal, defensoras do povo colonizado, maltratado pelo colonizador, desejosas, pois, de distribuir as riquezas dessas suas terras, pelo seu povo desfeiteado e lutando contra isso. É certo que, assim que alcançaram o poder para a repartição dos bens, fez-se-lhes luz nos espíritos, e preferiram açambarcar em proveito próprio as benesses que o espaço terreno em seu redor lhes proporcionou, esquecidos dos bons propósitos de satisfação das necessidades dos milhões de famintos no seu governo, que parece que não era tanto assim antes da revolução, apesar da propaganda dos comedores da maçã esclarecedora.
Bagão Félix bem esclarece também sobre a evolução doutrinária da família Santos e seus sequazes, que puderam gerir as riquezas desses espaços submissamente cedidos, para seu próprio proveito, o caso é sabido, mas o artigo de Bagão Félix informa melhor. Frisemos com um parágrafo ao acaso, pois todos eles são o máximo na questão das luzes, vê-se que Bagão Félix também foi dos que comeu da maçã, não por glutonaria mas para ilustração espiritual:
«A razão desta identificação ideológica e política com a direita portuguesa tem uma razão (a elite angolana assumiu a sua passagem do “marxismo-leninismo” para os encantos do capitalismo) e um efeito (facilitar a máquina de lavagem de dinheiros). Estão por isso irmanados com a direita neoliberal. Depois de ter lutado pela independência contra o colonialismo português, depois de ter ganho a longa guerra civil contra a UNITA, o MPLA passou a ser um instrumento de acumulação de capital para as famílias dominantes – e anunciou que era mesmo isso que pretendia. Percebo por isso o incómodo dos que aligeiram a sua bênção ao regime angolano com a reclamação do respeito pela soberania nacional, como se esse direito inalienável do povo angolano a escolher o seu destino obrigasse a fazer vénia aos plutocratas que pilham Angola – e que não respeitam outra soberania que não seja o seu próprio enriquecimento à custa do seu país. Ora, do que certamente não se pode acusar Dos Santos e a sua família é de esconderem essa escolha.»

O partido da plutocracia em Angola
Bagão Félix
Público, 26 de Agosto de 2017
Enquanto decorre a contagem dos votos em Angola e o apuramento se transforma num imbróglio, o MPLA clama vitória anunciando uma perda de quase 10% em relação a eleições anteriores, mas mantendo uma margem confortável. Se se confirmarem esses resultados e o novo presidente aceitar o seu papel, a dinastia Dos Santos continuará no poder: o pai como presidente do partido, controlando as nomeações nas forças armadas e segurança, os filhos à frente dos pilares do negócio do petróleo.
O que está em jogo é um imenso império que fez com que Isabel dos Santos se tornasse a mulher mais rica de África (ao Financial Times ela resumiu a sua história empresarial explicando que já aos seis anos vendia ovos, mas o antigo primeiro-ministro do MPLA, Marcolino Moco, ri-se e explica que “toda essa fortuna vem do facto de o pai ser a lei”),enquanto se descobre que um destacado general transferiu 300 milhões de dólares pelo BES do Dubai e que um vice-presidente cessante é acusado de comprar os serviços de um magistrado português.
corrupção da cúpula angolana é o que define o seu poder. Mas o governo de um país que é dos grandes produtores de petróleo do mundo tem vastos recursos, utilizando Portugal como um centro de lavagem de dinheiro e de reciclagem de influência. É esse poder e influência que suscita espantosos equívocos, descontando mesmo o entusiasmo de um ex-ministro do PSD e consultor do governo angolano que compara Dos Santos a Mandela.
O roteiro do equívoco é evidente: o PCP é o partido que mais se identifica com o MPLA, mas o MPLA é parte da Internacional Socialista com o PS; entretanto, o MPLA virou-se para o PSD e o CDS (escrevia o órgão do regime que Paulo Portas é “um grande amigo do país, que está a ser lançado para liderar a direita portuguesa em caso de as coisas correrem mal à atual coligação, o que mostra que é possível, afinal de contas, um entendimento com Portugal”, Jornal de Angola, 4.2.2013).
A razão desta identificação ideológica e política com a direita portuguesa tem uma razão (a elite angolana assumiu a sua passagem do “marxismo-leninismo” para os encantos do capitalismo) e um efeito (facilitar a máquina de lavagem de dinheiros). Estão por isso irmanados com a direita neoliberal. Depois de ter lutado pela independência contra o colonialismo português, depois de ter ganho a longa guerra civil contra a UNITA, o MPLA passou a ser um instrumento de acumulação de capital para as famílias dominantes – e anunciou que era mesmo isso que pretendia. Percebo por isso o incómodo dos que aligeiram a sua bênção ao regime angolano com a reclamação do respeito pela soberania nacional, como se esse direito inalienável do povo angolano a escolher o seu destino obrigasse a fazer vénia aos plutocratas que pilham Angola – e que não respeitam outra soberania que não seja o seu próprio enriquecimento à custa do seu país.
Ora, do que certamente não se pode acusar Dos Santos e a sua família é de esconderem essa escolha. Num discurso ao parlamento, o presidente explicou que “A acumulação primitiva do capital nos países ocidentais ocorreu há centenas de anos e nessa altura as suas regras de jogo eram outras. A acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade. A nossa lei não descrimina ninguém. Qualquer cidadão nacional pode ter acesso à propriedade privada e desenvolver atividades económicas como empresário, sócio ou acionista e criar riqueza pessoal e património” (discurso no parlamento, 16.10.2013). O Jornal de Angola já tinha resumido este processo de acumulação: “as riquezas do Estado passaram para as mãos de privados, desde as casas onde viviam até aos espaços comerciais, às fazendas, propriedades industriais, minas e tudo o que era estatal”. De forma ainda mais lapidar, o jornal oficial anuncia que “Angola tem direito a ter uma burguesia nacional que seja cada vez mais forte e mais rica” (JA, 26.11.2012).
Esta “burguesia nacional”, “cada vez mais forte e mais rica”, reclama vitória nas eleições angolanas para continuar o seu negócio. Percebo que haja quem em Portugal se vanglorie com essa extorsão a Angola, mas por favor não finjam que é por solidariedade e respeito pelo povo que é roubado.


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