António Barreto resume bem o
estado de sítio em que vivemos, apresenta vasto leque de informações sobre os
desmandos generalizados, sem se comprometer, todavia, pois não identifica as
personagens da nossa cascata de danos, neste seu “Raide sobre o Estado”
de 17/9, que, de resto, são em grande parte identificáveis. Mas o chamar a
terreiro a esquerda para ajudar a limpar atropelos, parece-me irrisório e
contraditório com o seu pensamento crítico, de oposição geral à esquerda, a
menos que pretenda demonstrar um espírito democrático, de aceitação plural, que
não parece carne nem peixe, de bem com todos, embora lhes deixe as vísceras de
fora.
Mas as suas fotos parecem-me sempre
espectaculares. Desta vez, a do Mosteiro da Batalha, com um camião-cisterna a
encobri-lo, merecendo-lhe comentários de grande justeza e nobreza – neste caso,
sobre a bruteza de gesto de um qualquer camionista, pouco sensível à arte e à
nossa História, grotesco incendiário da cultura, com tal grosseria a denotar uma
irreparável bestialidade, a que os governos são indiferentes, aliás. Uma
expressiva fotografia, bem denunciadora do crítico que subjaz ao fotógrafo, crítico de lenço branco, aliás, sempre imaculado, sempre grande senhor à parte da escumalha.
Raide sobre o Estado
António Barreto
DN, 17/9/17
Diz o dicionário: "Um
raide é um ataque rápido e de surpresa através de uma força de grande
mobilidade." Não corresponde exactamente aos factos recentes que
caracterizaram as últimas duas ou três décadas. Mas o resultado parece ter
sido o mesmo: a apropriação, por forças organizadas, de grande parte dos
recursos, das empresas, das infra-estruturas e dos proventos da actividade
económica. Foi uma espécie de OPA sobre o Estado, a economia, as empresas, os
empreendimentos de obras públicas, as grandes public utilities ou
serviços públicos, os fundos europeus ... Só que não foi pública nem de
aquisição a preços de mercado. Foi verdadeiramente a mão baixa sobre a
República.
Vendeu-se tudo.
Ao que parece, até se utilizaram, por vezes, métodos honestos. Pontes,
estradas, aeroportos, aviões, turismo, hotelaria, bancos, seguros,
electricidade, energia, gás, petróleos, cimentos, redes eléctricas, telefones,
televisão, centros comerciais, hospitais, resíduos, sucata e o que só deus
sabe. Por ajuste directo, por compras com barrigas de aluguer, por vendas a
testas-de-ferro, por compra em bolsa, por concurso "pintado", por
luvas, por PPP (parceria público-privada), por autorização do Estado, por
licença camarária ou por alvará oficial: por todos estes métodos e outros que
só de falar envergonha, uma parte muito importante do património do Estado, da
economia nacional e de serviços públicos transitaram de proprietário, de
nacionalidade e de organização. Quando não foram empresas e recursos que
mudaram de mãos, foram actividades legalizadas e alvarás devidamente
autorizados graças a luvas, comissões e decisões legislativas.
Toda a gente estava
metida. Ou antes, esteve metida gente de toda a espécie. Vários governantes e
não dos menores. Deputados. Directores-gerais. Presidentes de instituições.
Altos funcionários. Banqueiros e empresários. Gestores. Comerciantes.
Industriais. Jornalistas. Amigos e familiares de gente de dinheiro. Mas sempre
com a conivência do Estado, com a ajuda de políticos, sob a protecção e o
conselho de alguns bancos ou banqueiros, públicos ou privados, portugueses ou
estrangeiros.
Começa agora a
perceber-se a monumental rede criada, desenvolvida e preparada para a maior
operação predadora do Estado e da economia. A ser verdade o que é publicado nos
jornais, a coberto de um famigerado segredo de justiça, que nada tem de segredo
e muito menos de justiça, estamos perante uma das maiores operações de
corrupção e crime jamais intentadas! A liberalização da economia teria sido um
grande progresso, caso não tivesse proporcionado este festim.
Já não é a primeira vez.
Mas foi talvez a altura em que se foi mais longe, desta vez quase sempre a coberto
da lei, com protecção das autoridades e com a colaboração de grande parte da
banca. E quando os políticos não ficaram a ganhar directamente, receberam
"por fora" ou "debaixo da mesa" os prémios por serviços de
peculato.
É sabido que este
universo de corrupção tem estado sob averiguação. Mas tem demorado anos a
investigar. De mais. Há ou houve arguidos e detenções preventivas durante anos
a mais. Não há argumentos para defender tal situação. Quanto mais demorar, mais
a justiça perde prestígio e serenidade para julgar. E menos evidência e factos
obtém. Quanto mais for burocrática, morosa, atabalhoada e incompetente, menos
crível e capaz será.
Será que o PS, apesar do
seu passado recente e dos seus laços com tantos arguidos, tem força e liberdade
para ajudar a que a justiça apure e resolva? Terão o PSD e o CDS, mau grado o
seu currículo, capacidade para, mesmo na oposição, ajudar a deslindar? Quanto
ao PCP e ao Bloco, é difícil prever. Têm folha limpa, pela simples razão de que
não estão no governo desde há quarenta anos. Poderão, pois contribuir para
levar a bom termo esta operação de justiça? É paradoxal imaginar que os
partidos de extrema-esquerda possam convencer os socialistas a consolidar o
Estado de direito. Veremos nos próximos episódios.
FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO BARRETO
Camião-cisterna em
frente ao Mosteiro da Batalha
Exemplo notável do
gótico tardio ou manuelino, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da
Batalha, é um dos mais interessantes monumentos nacionais e um dos mais
visitados do país. É Património Mundial desde 1983. A sua construção, ordenada
pelo rei D. João I, iniciou-se há mais de 600 anos. É Panteão Régio e Nacional.
Ali estão os túmulos de D. João I e de D. Filipa, D. Duarte e D. Leonor, D.
Afonso V e D. Isabel, D. João II e os príncipes da Ínclita Geração, Altos
Infantes. A Sala do Capítulo é a principal morada do Soldado Desconhecido. O
que resta dos vitrais originais revela a que foi a principal escola portuguesa
dedicada a essa arte. A Batalha merece visita, atenção e estudo. Não merece
certamente é esta EN1, Estrada Nacional N.º 1 que, há muitas décadas, estraga a
paisagem, ameaça a pedra e destrói a estética. Os reis, os monges, os
veteranos, as gárgulas e todos nós merecíamos melhor!
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