Só desejo que o tempo se
mostre à altura do acontecimento. E que a televisão possa gravar tudo para nós,
os do sofá, para os nossos filhos e netos, para o nosso povo, para as pessoas
dos lares de idosos, para as dos hospitais, como poderia fazer, aliás, embora
menos ambiciosamente, com outros coros e espectáculos de dança e ginástica em
programas mais desenvoltos culturalmente, não confinados apenas à RTP2. Quem
dera que assim fosse, que pudéssemos partilhar de outras realidades e
realizações deste nosso país, que por vezes, quando eventualmente são expostas,
nos enchem de felicidade. A televisão deveria funcionar como um meio difusor de
várias áreas do saber, para poder alargar os domínios dos interesses gerais.
Carmina Burana, em
disco de 33 rotações, foi o meu primeiro contacto com a estranha obra. Oxalá faça bom tempo para o concerto de hoje,
sábado, e que seja um êxito, a pedir outros.
Carmina Burana, um estrondo no Vale do Silêncio
O Parque do Vale do
Silêncio, no bairro dos Olivais, em Lisboa, será palco de Carmina
Burana, de Carl Orff. Uma obra
monumental, com dois coros, três solistas e uma grande orquestra que promete
quebrar o silêncio no vale com esse nome. Sabemos porquê, como e qual o nível
de decibéis...
Público, 8 de setembro de 2017
Carmina
Burana é uma das mais famosas obras clássicas de
sempre. É quase impossível não ter ouvido pelo menos o seu número de
abertura e fecho, O fortuna, por ter sido
tantas vezes utilizado na publicidade, no cinema, na televisão, na rádio, na
rede. Mas este Carmina Burana quer ser
especial e não só “mais uma vez”. Numa iniciativa conjunta da Fundação
Gulbenkian e do Festival Lisboa na Rua, o concerto deste sábado, às 21h30,
realiza-se no Parque do Vale do Silêncio, nos Olivais, em Lisboa. Para
além da enormidade da obra de Orff, uma grande, longa, forte e excessiva
cantata cénica, é a localização que torna particularmente singular este
concerto.
O Festival Lisboa na Rua
propõe, de há nove anos para cá, uma série de actividades artísticas em parques
e jardins de Lisboa durante um mês. Neste Setembro, entre muitas outras
actividades, incluindo dança, cinema, circo, instalações, oficinas e muita
música de vários géneros, haverá um concerto “em grande” no bairro dos
Olivais.
Joana Gomes Cardoso, presidente da EGEAC, explicou ao Ípsilon a
ideia destes Carmina Burana: “Convidámos a
Orquestra Gulbenkian para tocar num lugar que não faz parte dos locais
'controlados' e habituais, como seria a Praça do Município ou o Terreiro do
Paço, por exemplo. É uma proposta mais arriscada, e corresponde a uma nova
forma de estar na cidade.”
A presidente da empresa
municipal gestora da cultura na cidade de Lisboa considera que “toda a cidade é
nobre" e não apenas o seu centro tradicional. "Muitas vezes há
equívocos e preconceitos, como achar que uma zona é perigosa.” A ideia foi, portanto,
fazer uma proposta menos óbvia, fora das zonas habituais. "Nesse sentido,
é quebrar o silêncio, com um projecto de grande dimensão e um grande palco
montado. São centenas de músicos e cantores, cerca de 200 músicos em palco. É a
primeira vez com um palco destes nesta zona”, diz.
Para Joana Gomes Cardoso,
trata-se de “dar a conhecer a cidade e trazer uma proposta de qualidade a um
público que muitas vezes não tem acesso a esse tipo de concertos.” E, ao
mesmo tempo, “criar novos hábitos de deslocação e hábitos culturais, com
projectos diferenciadores, de qualidade". Para a Orquestra
Gulbenkian, "é também sair da zona de conforto em que habitualmente
se movimenta”, diz Joana Cardoso. O convite à Fundação Gulbenkian foi bem
recebido, e foi a Gulbenkian que propôs fazer a cantata Carmina Burana, uma obra “facilmente impactante, que
não deixa ninguém indiferente”, nas palavras da presidente da EGEAC.
Um enorme desafio
O maestro José Eduardo Gomes, que irá este sábado à noite
dirigir a peça no Vale do Silêncio, considera-a “uma obra emblemática”. O
jovem maestro, de 34 anos, já dirigiu a obra e também já participou uma vez
como cantor, no coro. Conhece a obra por dentro e por fora, mas é a primeira
vez que dirige a obra ao ar livre, num ambiente destes. “O convite da Fundação
Gulbenkian foi especial por todas as razões e mais alguma”, diz José Eduardo
Gomes. E explica porquê: “É uma obra grandiosa, vai ser feita no exterior, e
prevê-se que esteja muita gente. Vamos tocar para uma massa de gente. Ao mesmo
tempo é levar a música fora de portas, a públicos que não são frequentadores da
Gulbenkian.”
O maestro diz-nos quais os
grandes desafios da obra, no seu entender: “É uma orquestra com um efectivo
grande, com cerca de 80 elementos, e um grande coro e é necessário juntar as
massas sonoras orquestral e vocal, porque se trata de uma obra coral-sinfónica.
É preciso controlar isso tudo.” Para o jovem maestro, para além das dificuldades
rítmicas que a obra contém, o mais difícil é captar o carácter de cada quadro:
"São 24 números (mais O fortuna, que repete no
final) e cada quadro tem as suas dificuldades. Há cenas de taberna e outras de
amor. A dificuldade é transmitir tudo isso ao público. É preciso sobretudo
conseguir o balanço certo, gerir o equilíbrio sonoro para ouvir todas as
vozes.”
Carmina quê?
Carmina
Burana significa “canções da região alemã de
Benediktbeuern”. Baseia-se em 24 poemas de um manuscrito (com o mesmo nome) com
254 poemas, canções e peças dramáticas medievais (dos séculos XI, XII, XIII),
eróticas e satíricas, escritas em latim, alemão antigo e francês, nalguns casos
misturando línguas. A colecção medieval tinha o subtítulo de “canções profanas
para cantores e coros para serem cantadas com instrumentos e imagens mágicas”.
Os Carmina Burana medievais
interessaram o compositor Carl
Orff que neles se inspirou para escrever os seus Carmina Burana em 1935-36, uma obra estreada em Frankfurt em 1937.
Carmina Burana é a primeira parte
de Trionfi, um tríptico musical que
inclui ainda Catulli Carmina (Canções
de Catulo) e Trionfo di Afrodite (Triunfo
de Afrodite). Orff concebeu-a como uma ambiciosa cantata cénica que
correspondia à sua ideia de criar um “Theatrum Mundi”, em que música, palavra e
movimento seriam inseparáveis.
Hoje em dia Carmina Burana é uma obra feita simplesmente como
uma cantata sem elementos cénicos e visuais, mas é claramente audível a sua
intenção “dramática” e espectacular.
O maestro não parece assustado
por fazê-lo ao ar livre, em condições acústicas menos fáceis de controlar do
que num auditório. E prefere ver as felizes coincidências: “É uma feliz
coincidência fazê-lo no Vale do Silêncio, quando a obra tem canções internas
que são líricas, como se fossem serenatas ao amor e à natureza. E vamos estar
no verde, no meio de um parque, da natureza. Será muito interessante, não só
para o público, mas para quem toca também.” Mas, insistimos, não será
complicado fazê-lo ao ar livre? “Não é diferente musicalmente”, diz José
Eduardo Gomes. “Claro que há a questão de passar para o ar livre, pois vamos
ensaiar antes numa acústica confortável na Fundação Gulbenkian. Vamos
fazer o nosso papel e teremos lá um ensaio de som e colocação, que é o
normal. Claro que teremos de nos habituar”, diz.
Popular e erudita
O maestro acredita que há
um lado pedagógico nesta obra com tantos elementos musicais diferentes: “É
uma obra popular e erudita ao mesmo tempo, com uma escrita muito apelativa. Uma
obra erudita das mais populares. E muito completa, com orquestra, coro, coro
infantil e solistas. É muito enriquecedora para o público conhecer este
repertório. Julgo que pode atrair as pessoas e desmistificar ideias de que a
música clássica é para uma elite ou que é aborrecida. Nesse sentido, creio que
é uma iniciativa de muito valor, oferecer aos lisboetas, neste caso, vários
tipos de música e enriquecer o gosto.”
José Eduardo Gomes está contente também por trabalhar
com solistas que considera excelentes: “Já trabalhei com o Carlos Cardoso, que é um
jovem mas já com uma carreira assinalável. Todos são cantores de belíssimo
nível.” O jovem maestro premiado tem tido grande actividade nos últimos
anos, com inúmeros concertos. Mas este é de responsabilidade acrescida:
“Tenho 34 anos. Claro que na nossa vida todos os concertos são importantes, mas
este, pela quantidade de pessoas que envolve e pelos seus ingredientes, é
especial. A responsabilidade de partilhar o palco com todos eles é grande. Para
além de que é o início de uma temporada...”
Para além dos solistas e
da Orquestra Gulbenkian, este Carmina Burana conta com o Coro Gulbenkian, aqui
nos jardins da fundação em Lisboa
“É uma obra que afecta o
ouvinte imediatamente, sobretudo em algumas passagens em fortissimo. É muito
forte ao vivo, não é como na televisão ou numa gravação.”
Para além de Carlos Cardoso, tenor premiado em Portugal e internacionalmente, este
concerto vai contar ainda com outras duas estrelas solistas: Carla Caramujo, soprano, e Benedict Nelson, barítono.
Carla Caramujo já cantou Carmina Burana cinco vezes, em diferentes versões:
“Fiz versão com dois pianos e percussão, fiz com orquestra sinfónica e
orquestra de sopros, fiz todas as combinações. A sensação atmosférica é
diferente, porque os espaços são diferentes – e é diferente também num concert hall ou ao ar livre.” A soprano
também já cantou a obra ao ar livre, no Funchal, com a Orquestra da Madeira, e
por isso está bem preparada para a aventura da noite de sábado.
Para além das versões para
diferentes formações orquestrais, há versões que usam diferentes formas de
articular o latim: “A dicção germânica, que é a que usaremos, nalgumas passagens
serve melhor a obra, mas eu seria tentada a misturar as diferentes dicções do
latim.”, explica Carla Caramujo. Para a soprano, é sempre bom
revisitar Carmina Burana: “Conheço bem a obra
e estou sempre a renascer para a obra, é sempre interessante.” A cantora
acha importante a ideia de que a música possa, através de projectos destes,
“abrir portas, abrir-se à cidade e procurar novos públicos.” E julga que Carmina Burana é a obra ideal para o fazer: “Serve
bem este modelo, porque agrada a um espectro muito alargado de público. Estou
muito motivada e creio que será um sucesso. É uma obra majestosa, muito
imponente.”
A voz de soprano entra
na terceira parte da obra, Cour d'amours, em pleno
contraste com a secção anterior que se intitula In taberna. Carla Caramujo destaca um momento
fulcral da sua participação nesta obra: “Claro que há o Dulcissime, com uma linha que culmina no
agudíssimo. Mas eu destacaria o In trutina (“em
equilíbrio”), que é um momento de beleza incomparável, como se toda a acção
parasse. No meio de uma obra tão densa, complexa, com um coro grandioso e uma
grande orquestra, há este momento de filigrana. Gosto particularmente dos
solos de soprano desta obra, extremamente femininos, com elementos que vêm da
poética medieval e de rituais de iniciação.”
Carla Caramujo considera
que este momento “é ao mesmo tempo lírico e muito sensual” e que requer uma
cantora com determinadas capacidades técnicas e expressivas: “Requer um
soprano coloratura e um soprano
lírico. Creio que tenho o tipo de voz ideal para o soprano de Carmina Burana.” Quanto ao ar livre, Caramujo não
crê que haja grandes diferenças: “A responsabilidade é a mesma, depois cabe
aos técnicos de som... Confio muito na equipa da Gulbenkian. E na projecção de
voz e de texto é o mesmo.”
Questões de volume
O barítono Benedict Nelson é outra das estrelas da noite.
Em Novembro de 2014, na Gulbenkian, integrou o projecto Carmina Burana com coro participativo, sob a
direcção de Paul McCreesh, juntamente, aliás, com o tenor Carlos Cardoso.
Reencontram-se agora In taberna, ali a meio da
peça, numa zona bastante ébria de Carmina Burana. Falámos ao
telefone com Benedict Nelson, que parece entusiasmado com a ideia de regressar
a Lisboa. Também ele conhece bem a obra de Carl Orff: “Já fiz quatro ou cinco
vezes a obra, a última vez em Londres. É uma obra extremamente interessante.”
Para Benedict Nelson, a
obra levanta problemas técnicos que não são fáceis de resolver: “É uma obra
extensa, com uma orquestra ampla e estrondosa em termos de volume sonoro. A
tessitura do barítono é muito grande, vai até ao limite do agudo, indo até ao
sol agudo no Estuans interius, por
exemplo. Há partes em que é preciso ser rápido e ter grande volume sonoro.” Nelson
vê Carmina Burana como uma obra
de extremos, e um grande desafio técnico: “É uma obra que vai até ao extremo,
requer muita energia, muito vigor. E depois tem efeitos vocais interessantes,
como no Omnia Sol temperat (na
primeira parte da obra), que obriga a algumas astúcias vocais complicadas.”
Para o barítono, a obra, no seu conjunto, é muito curiosa: “É em latim,
mas ao contrário da maior parte das peças em latim não é uma obra sagrada. Tem
canções profanas. Isso cria uma certa estranheza. E, ao mesmo tempo, é uma obra
dramática. Musicalmente é épica, muito visceral e quase paralizante. Tem um
impressionante volume sonoro de vozes.”
Benedict Nelson não tem
dúvidas de que vale a pena ouvir esta obra ao vivo: “É uma obra que afecta o
ouvinte imediatamente, sobretudo em algumas passagens em fortissimo. Penso que é muito interessante ouvi-la ao
vivo, porque é muito forte ao vivo, não é como na televisão ou numa gravação.”
O barítono vê também Carmina Burana como uma
obra de contrastes: “Ao mesmo tempo tem momentos líricos, contrastantes com a
energia visceral de outras partes. Tem momentos de paz. É uma peça secular, com
momentos de reflexão e filosóficos. Mas tem também momentos ébrios, de
bebedeira. Outros de raiva, tudo numa grande escala, e depois momentos de
alívio e beleza lírica.”
Ligações perigosas
A estreia de Carmina Burana aconteceu em 1937, na
Alemanha, em pleno regime nazi. Depois da estreia, a obra recebeu
uma crítica negativa do musicólogo nazi Hans Gerigk, que disse que a obra
sofria de um “equívoco regresso a elementos primitivos de instrumentação e um
ênfase estrangeiro nas suas fórmulas rítmicas”. Criticaram-lhe também os sons
“exóticos” e os temas demasiado “sexuais”.
Mas a proximidade de
Carl Orff com altas figuras do regime, a sua colaboração permanente mas
“discreta” com o nazismo e o sucesso estrondoso da obra junto do público não
deixaram cair em desgraça o compositor e transformaram Carmina Burana num grande êxito ainda naqueles
anos.
Na Alemanha do
pós-guerra, punha-se o problema oposto (ter estado demasiado próximo do regime
nazi), mas Orff conseguiu apesar de tudo distanciar-se das suas colaborações
anteriores com o regime e manter-se um compositor activo e respeitado. Quanto à
obra, manteve-se sempre no repertório e continuou a ser um greatest hit, como se nada fosse.
Conhecido sobretudo pela
sua obra de pedagogia musical, Orff tinha a ideia de que a música estava
intimamente ligada à dança e à palavra. Carmina
Burana foi concebida com uma cantata cénica que deveria
incluir dança, artes visuais e acção em cena. Hoje, contudo, ela é quase sempre
apresentada apenas como uma cantata sem estes elementos cénicos.
Para além dos solistas e da
Orquestra Gulbenkian, este Carmina Burana conta com o Coro Gulbenkian, que terá um papel
muito importante ao longo de toda a obra. E participa ainda o Coro Infantil do Instituto Gregoriano de Lisboa.
Vozes projectadas (e bem forte) no Vale do Silêncio, para um estrondo sonoro
que promete abanar os Olivais.
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