quinta-feira, 4 de outubro de 2018

À beira-mar plantado



O nosso país, como tantos outros. Onde os casos são tantas vezes penosos, como esses de que tratam Paulo Rangel - sobre a indiferença “activista” no caso dos portugueses presos na Venezuela; e João Miguel Tavares, sobre a escolha arteira de um tal Ivo Rosa, para juiz no caso Sócrates. Limito-me a registar, pela singularidade “repetitiva” das nossas questões condenáveis, envolvendo os usuais artifícios de malandrice interventora. Os comentadores elucidam, para nosso prazer.
I - Em estado de choque: serão os emigrantes na Venezuela portugueses de segunda?
Com este Governo, a comunidade portuguesa na Venezuela foi deixada à sua sorte.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 25 de Setembro de 2018
1. Meço bem o peso das palavras: estou indignado, estou em estado de choque. Na sexta-feira, ao fim do dia ou já no sábado de manhã, surgiu a notícia – discreta, quase secreta, praticamente invisível – de que as autoridades venezuelanas teriam prendido dezenas de cidadãos, entre os quais se encontrariam dez portugueses. A notícia fez o seu caminho no fim-de-semana, sem nenhum eco de relevo. As televisões, as rádios, os jornais, as redes sociais ignoraram tranquilamente o assunto, relegando-o para as notas de pé de página. Tirando a RTP e a Antena 1, que abriram alguns noticiários com um relato rápido e neutral, quase asséptico, ninguém deu relevância nem importância ao assunto. Dez portugueses são presos por um regime ditatorial, que condenou à miséria grande parte da população, que a expôs à violência caótica nas ruas, que destruiu qualquer arremedo de sistema de saúde e que provocou centenas de milhares de refugiados, mas isso não abre noticiários, não é manchete, não tem qualquer lugar de destaque. É chocante e é obsceno: o lauto jantar de Nicolás Maduro num restaurante de luxo de Istambul – moralmente censurável – teve mais impacto e visibilidade do que prisão arbitrária de sete portugueses e três luso-descendentes! Prisão esta feita por um regime autocrático que não dá as mínimas garantias do mais elementar respeito pelos direitos fundamentais. Durante o fim de semana, não resisti a pôr-me a seguinte pergunta: se o governo húngaro de Viktor Orbán – que à beira de Maduro é um oásis de democracia – tivesse detido dez emigrantes portugueses em idênticas condições, qual seria a reacção das autoridades, da imprensa, das redes sociais e da sociedade portuguesa? Ou então uma outra: será que a prisão arbitrária de cidadãos portugueses na Venezuela – que envolve a violação das mais fundamentais liberdades e garantias de um ser humano – merece menos destaque e atenção do que a alegada, controvertida e discutível violação da liberdade criativa em Serralves? Já agora, vale a pena perguntar, olhando para casos paralelos em países afins: na sociedade espanhola ou italiana, a prisão inopinada de dez cidadãos nacionais em Caracas passaria fleumaticamente como uma espécie de “não-notícia”?
2. Não me conformo com esta letargia da sociedade portuguesa e, em particular, do “establishment” mediático. E não me conformo com estes anos de tolerância, de “diplomacia de pantufas” e de “política de veludo” do Governo português, que, com uma inércia incompreensível, deixou arrastar a situação ao ponto de expor a nossa comunidade emigrante ao arbítrio de Maduro. Repudio, de modo veemente e tão sonoro quanto possível, a cumplicidade do PCP e do Bloco para com a ditadura chavista e o profundo mal que ela faz à população venezuelana e, em particular, à comunidade portuguesa ali residente. Não esqueço que são estes dois partidos que sustentam o Governo no Parlamento. Não me conformo, repudio e não esqueço – alguém tem de pensar nesses nossos compatriotas.
3. A letargia do Governo português ao longo destes últimos anos é altamente condenável e conduziu-nos à situação de quase impotência e submissão, sem alternativas e sem capacidade de resposta ou reacção. Se se trata de pura incompetência, se se trata de nostalgia da aliança “socrática” de negócios e caudilhismo com o “chavismo”, se se trata de deferência para com os parceiros parlamentares de governação, não sei. Mas, na realidade, isso não é o mais importante. O que interessa é que temos dezenas de milhares de portugueses deixados ao abandono, muitos deles em situação de grave necessidade e agora até temos presos – provavelmente, a merecerem a qualificação de presos “políticos” ou, pelo menos, de presos “não de delito comum”. A verdade é que, diante de uma evolução absolutamente previsível de deterioração da situação política e económica, nada foi feito para salvaguardar e acautelar os interesses da nossa comunidade emigrante ou até para preparar um regresso cadenciado e ordenado daqueles que quisessem regressar. Tirando a acção persistente do Governo Regional da Madeira e do seu presidente, o Estado português tratou a comunidade lusa na Venezuela como uma comunidade de “segunda”. A diplomacia de veludo, sempre deferente, sempre tolerante, sempre paciente com Maduro, deixou os interesses vitais dos portugueses no olvido. Talvez nem todos tenham reparado, mas até hoje o primeiro-ministro ainda não teve uma palavra para os emigrantes e para a comunidade portuguesa e luso-descendente na Venezuela. Nada que possa surpreender. A sua prioridade foi anunciar um privilégio táctico para aqueles que saíram do país entre 2011-2015, mesmo quando o fez no momento mais agudo da crise para a comunidade lusa na Venezuela.
4. A explicação de última hora para esta política de baixo perfil – que nunca para a passividade da esfera mediática e social – será decerto o risco que uma posição forte pode acarretar para os portugueses que estão expostos aos caprichos de Maduro e do seu regime. E, por isso, lá emergiu a centésima declaração piedosa do secretário de Estado responsável pelo assunto e parece que, ao terceiro dia, o ministro dos Negócios Estrangeiros terá despertado de um longo e conveniente sono. Agora, as autoridades portuguesas podem ter a justificação – talvez fosse melhor chamar-lhe “a desculpa” – de que uma reacção à altura pode ser contraproducente e pôr em maior risco os presos, as suas famílias e até a comunidade em geral. Mas antes o Governo podia e devia ter feito muito mais. Não faltou quem em diferentes ocasiões e por diversos meios o tivesse alertado para o elevado risco de desenlaces destes. Mas como se vê pelo silêncio dominante, este assunto não dá brado, não tem visibilidade, não gera impactos. Com este Governo, a comunidade portuguesa foi deixada à sua sorte.
COMENTÁRIOS:
Sergio Lopes,  25.09.2018: O dr. Paulo Rangel não tem a mínima ideia dos perigos que espreitam os portugueses (alguns terão dupla cidadania) numa Venezuela sem lei! Só quem lá viveu sabe. Nem tudo serve para fazer oposição imediatista, dr. Paulo Rangel. Este assunto não deve ser tratado publicamente, requer pinças e muito tacto. É preciso ter em linha de conta que os portugueses na área de actividade que levou às prisões são vistos como exploradores dos pobres e Maduro não terá dúvidas nenhumas em utilizar essa visão popular em seu benefício.
Rebelde, Aveiro 25.09.2018: Não sei se neste momento ainda são vistos como exploradores dos pobres ou se a maioria não os considera únicos abastecedores dos pobres. O problema a meu ver é que o regime castro comunista da Venezuela tem planos muito concretos de submeter a população pela fome. E não é por se tomarem medidas firmes que não somos respeitados, é precisamente o contrário, penso eu.
Wheeler Catarina,  25.09.2018: Esta mania de politizar os assuntos de Portugal, tal como nos fogos, é uma das causas dos descrédito da Política para a maioria dos Eleitores.
A NON DOMINO, Terra 25.09.2018: Boa comédia. Defender compatriotas presos em condições de legalidade duvidosa é uma forma de politizar um assunto. Acho que tem de ir ler bem a definição de política a um bom dicionário. Os "fogos" não são uma questão política, ou o que incomoda é a responsabilização de quem deveria ter governado melhor a "pólis"? Neste caso da Venezuela, o que incomoda é o PCP e o BE apoiarem um regime ditatorial que levou um país à miséria total? Ou é haver portugueses com graves problemas de subsistência? Será o facto de que a maior parte das forças políticas, jornais, TV e outros meios ignorarem a tragédia?
II - Quem tem medo de Ivo Rosa?
Não é difícil perceber que este é o caso mais importante da justiça portuguesa em 43 anos de democracia, e que o julgamento não pode deixar dúvidas a ninguém.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 2 de Outubro de 2018
Desta vez estou de acordo com José Sócrates: fico contente que o juiz escolhido para presidir à instrução do processo Marquês seja Ivo Rosa. Há, desde logo, uma razão prática para isso. A escolha de Carlos Alexandre iria quase de certeza dar origem a incidentes de recusa do juiz, que atrasariam ainda mais o processo. A acusação é de tal modo arrasadora que todas as fichas dos arguidos estão colocadas em cima de ilegalidades processuais que possam conduzir a uma vitória na secretaria, daí o enxame de recursos que se tem abatido sobre o caso. Só da parte de Sócrates eles já devem superar as quatro dezenas (infelizmente, nem a comunicação social especializada consegue acompanhar a velocidade a que são submetidos), o que dá uma boa dimensão do seu desespero – José Sócrates está (diz ele) absolutamente convicto da sua inocência e absolutamente empenhado em que o julgamento que a poderia demonstrar nunca chegue a acontecer.
Nos dias que correm, só uma dúzia de tontos e meia-dúzia de vendidos continuam a proclamar aos sete ventos que Sócrates é um político impoluto, e Carlos Santos Silva o mais generoso mealheiro da Via Láctea. Mas aqueles que gostariam que a Operação Marquês caísse pela base são bem mais numerosos do que aqueles que ainda têm a lata de o defender em público. Entre fazer-se justiça e salvarem a própria pele, eles naturalmente escolhem a pele. Velhos amigos e velhas amigas de Sócrates, antigos ministros, militantes assolapados do Partido Socialista, jornalistas vesgos ou colunistas sabujos estão mortinhos para que o processo impluda, porque a condenação de Sócrates seria o atestado final da sua própria estupidez ou falta de carácter (há quem acumule). Para estes senhores e senhoras, Carlos Alexandre é o bode expiatório do momento. Ora, convém que no final deste processo não reste um único bode para expiar. E é por isso que Ivo Rosa é preferível a Carlos Alexandre. Um juiz para o inquérito e outro juiz para a instrução é a melhor forma de o exercício da justiça ser transparente, exigente e inatacável.
Sei que muita gente ouve o nome de Ivo Rosa e começa a tremer. Os seus conflitos com o Ministério Público têm sido constantes e as garantias que atribui a quem está a ser investigado são com frequência consideradas excessivas – inclusivamente pelo Tribunal da Relação, que já várias vezes decidiu contra ele. Eu tendo a concordar com essa visão, na medida em que me parece que a lei já dá demasiadas garantias aos suspeitos de corrupção. Se,ainda por cima, o juiz que preside à fase de inquérito for picuinhas e excessivamente legalista, então é meio caminho andado para não se conseguir provar nada e acusar ninguém. Dito isto, considero que a Operação Marquês é um caso à parte e exige uma responsabilidade acrescida por parte de quem investiga e por parte de quem avalia os indícios recolhidos.
Sabem quantos primeiros-ministros já foram condenados e presos desde a fundação de Portugal? Zero. Até aí José Sócrates pode vir a revelar a sua imensa originalidade. Não é difícil perceber que este é o caso mais importante da justiça portuguesa em 43 anos de democracia, e que o julgamento não pode deixar dúvidas a ninguém. Ivo Rosa pode ser picuinhas, mas ainda ninguém o acusou de ser um Rui Rangel. Assim sendo, acho muito bem que seja ele a analisar com minúcia a legalidade e solidez da acusação e a necessidade de levar aquelas pessoas a julgamento. Se queremos que se faça justiça, não podemos ter medo dela.
COMENTÁRIOS
manusreis20: as partes envolvidas neste lamaçal queriam o outro, então vamos a sorteio, e não é que o sorteio ditou mesmo o outro? Coincidência da informática, isto é demais para a minha carroça, as voltas que deram para em nada dar, esta é a nossa justiça ao mais baixo nível! Serei vivo para ver o resultado?
mário borges, 03.10.2018: Só uma correcção. O Ivo Rosa não foi escolhido. Foi "sorteado". Ainda assim acho de uma certa candura a esperança do JMT no sistema judicial português. A não ser que o arqui-inimigo do José Sócrates seja poderoso ao ponto de conseguir manipular a Justiça, acho que ele pode acabar ilibado. Porque neste julgamento a justiça há muito que foi colocada de parte e é um julgamento político baptizado pelo próprio arguido. Ainda que vá preso (o que seriamente duvido) ele regressará, tal como o ex recluso e condenado por corrupção, Isaltino, que regressou e ganhou o voto popular para continuar a corromper, desta feita com o aval explícito de quem nele votou. Eu acho que apesar de ser contra a prisão preventiva foi o único castigo que o Sócrates verá na vida. Ou então será mais um caso de "pena suspensa"!
Tuberosum Sassy, 03.10.2018 : Eu tenho, diante de leis com vários alçapões, que o garantismo é obviamente o "modus operandi" de um juiz corrupto!
Henrique Duarte,  Portugal 03.10.2018: João Miguel Tavares, você está a sofrer um ataque agudíssimo de ingenuidade...
fernando jose silva, LUSO 03.10.2018 Num país onde há justiça para políticos, para ricos, para pobres, e talvez mais ainda, alguém pode acreditar nessa justiça? Estamos a falar entre cegos, surdos e mudos ???? Se os jornalistas perguntarem ao português comum o que vai acontecer neste caso, dir-lhe-ão na grande maioria, nada. Alguns dirão que ainda lhe temos de pagar uma indemnização choruda. É a voz do povo choruda. Depois muda-se a procuradora, nomeia-se um juiz entre dois apenas, um deles com uma relação duvidosa com os superiores, enfim, somos todos santinhos????
cisteina, Porto 03.10.2018: Análise e conclusão curiosas, até eu aplaudo e concordo com elas, Como assim, não haverá desculpas. Mas, se houver prescrição do(s) processo(s) por manobras e expedientes dilatórios, então também teremos de concluir e continuar a afirmar existir uma justiça para muito ricos e outra para pobres (chega assim, são muitos e as prisões já não têm lugar para todos). Por outro lado, se o galáctico mecenas for condenado por fuga ao fisco ou não conseguir provar a origem da majestática fortuna acumulada em pouco tempo, também é bem feito por não ter destravado a língua. Como tal, pague as mentiras, justificações e invenções com língua de muitos palmos, isto de servir de testa de ferro tem que se lhe diga.


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