O nosso país, como tantos
outros. Onde os casos são tantas vezes penosos, como esses de que tratam Paulo Rangel - sobre a indiferença “activista”
no caso dos portugueses presos na Venezuela; e João Miguel Tavares, sobre a escolha arteira de um tal Ivo Rosa, para juiz no caso Sócrates. Limito-me
a registar, pela singularidade “repetitiva” das nossas questões condenáveis,
envolvendo os usuais artifícios de malandrice interventora. Os comentadores elucidam, para nosso
prazer.
I - Em estado de choque: serão os emigrantes na Venezuela
portugueses de segunda?
Com este Governo, a comunidade portuguesa na
Venezuela foi deixada à sua sorte.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 25 de
Setembro de 2018
1. Meço bem o peso das palavras: estou indignado, estou em estado de
choque. Na sexta-feira, ao fim do dia ou já no sábado de manhã, surgiu a
notícia – discreta, quase secreta, praticamente invisível – de que as
autoridades venezuelanas teriam prendido
dezenas de cidadãos, entre
os quais se encontrariam dez portugueses. A notícia fez o seu caminho no
fim-de-semana, sem nenhum eco de relevo. As televisões, as rádios, os jornais,
as redes sociais ignoraram tranquilamente o assunto, relegando-o para as notas
de pé de página. Tirando a RTP e a Antena 1, que abriram alguns noticiários com
um relato rápido e neutral, quase asséptico, ninguém deu relevância nem
importância ao assunto. Dez portugueses são presos por um regime ditatorial,
que condenou à miséria grande parte da população, que a expôs à violência
caótica nas ruas, que destruiu qualquer arremedo de sistema de saúde e que
provocou centenas de milhares de refugiados, mas isso não abre noticiários,
não é manchete, não tem qualquer lugar de destaque. É chocante e é obsceno: o lauto jantar de Nicolás Maduro num
restaurante de luxo de Istambul – moralmente censurável – teve mais impacto e
visibilidade do que prisão arbitrária de sete portugueses e três
luso-descendentes! Prisão esta feita por um regime autocrático que não dá as
mínimas garantias do mais elementar respeito pelos direitos fundamentais. Durante
o fim de semana, não resisti a pôr-me a seguinte pergunta: se o governo
húngaro de Viktor Orbán – que à beira de Maduro é um oásis de democracia –
tivesse detido dez emigrantes portugueses em idênticas condições, qual seria a
reacção das autoridades, da imprensa, das redes sociais e da sociedade
portuguesa? Ou então uma outra: será que a prisão arbitrária de cidadãos
portugueses na Venezuela – que envolve a violação das mais fundamentais
liberdades e garantias de um ser humano – merece menos destaque e atenção do
que a alegada, controvertida e discutível violação da liberdade criativa em
Serralves? Já agora, vale a pena perguntar, olhando para casos paralelos em
países afins: na sociedade espanhola ou italiana, a prisão inopinada de dez
cidadãos nacionais em Caracas passaria fleumaticamente como uma espécie de
“não-notícia”?
2. Não
me conformo com esta letargia da
sociedade portuguesa e, em particular, do “establishment”
mediático. E não me conformo com estes anos de tolerância, de “diplomacia de
pantufas” e de “política de veludo” do Governo português, que, com uma inércia
incompreensível, deixou arrastar a situação ao ponto de expor a nossa comunidade
emigrante ao arbítrio de Maduro. Repudio, de modo veemente e tão sonoro quanto
possível, a cumplicidade do PCP e do Bloco para com a ditadura chavista e o
profundo mal que ela faz à população venezuelana e, em particular, à comunidade
portuguesa ali residente. Não esqueço que são estes dois partidos que sustentam
o Governo no Parlamento. Não me conformo, repudio e não esqueço – alguém
tem de pensar nesses nossos compatriotas.
3. A letargia do Governo português ao longo
destes últimos anos é altamente condenável e conduziu-nos à situação de quase
impotência e submissão, sem alternativas e sem capacidade de resposta ou
reacção. Se se trata de pura incompetência, se se trata de nostalgia da aliança
“socrática” de negócios e caudilhismo com o “chavismo”, se se trata de
deferência para com os parceiros parlamentares de governação, não sei. Mas, na
realidade, isso não é o mais importante. O que interessa é que temos dezenas de
milhares de portugueses deixados ao abandono, muitos deles em situação de grave
necessidade e agora até temos presos – provavelmente, a merecerem a
qualificação de presos “políticos” ou, pelo menos, de presos “não de delito
comum”. A verdade é que, diante de uma evolução absolutamente previsível de
deterioração da situação política e económica, nada foi feito para salvaguardar
e acautelar os interesses da nossa comunidade emigrante ou até para preparar um
regresso cadenciado e ordenado daqueles que quisessem regressar. Tirando a
acção persistente do Governo Regional da Madeira e do seu presidente, o Estado
português tratou a comunidade lusa na Venezuela como uma comunidade de
“segunda”. A diplomacia de veludo, sempre deferente, sempre tolerante, sempre
paciente com Maduro, deixou os interesses vitais dos portugueses no olvido.
Talvez nem todos tenham reparado, mas até hoje o primeiro-ministro ainda não
teve uma palavra para os emigrantes e para a comunidade portuguesa e
luso-descendente na Venezuela. Nada que possa surpreender. A sua prioridade foi
anunciar um privilégio táctico para aqueles que saíram do país entre 2011-2015,
mesmo quando o fez no momento mais agudo da crise para a comunidade lusa na
Venezuela.
4. A explicação de última
hora para esta política de baixo perfil – que nunca para a passividade da
esfera mediática e social – será decerto o risco que uma posição forte pode
acarretar para os portugueses que estão expostos aos caprichos de Maduro e do
seu regime. E, por isso, lá emergiu a centésima declaração piedosa do
secretário de Estado responsável pelo assunto e parece que, ao terceiro dia, o
ministro dos Negócios Estrangeiros terá despertado de um longo e conveniente
sono. Agora, as autoridades portuguesas podem ter a justificação – talvez fosse
melhor chamar-lhe “a desculpa” – de que uma reacção à altura pode ser
contraproducente e pôr em maior risco os presos, as suas famílias e até a
comunidade em geral. Mas antes o Governo podia e devia ter feito muito mais.
Não faltou quem em diferentes ocasiões e por diversos meios o tivesse alertado
para o elevado risco de desenlaces destes. Mas como se vê pelo silêncio
dominante, este assunto não dá brado, não tem visibilidade, não gera impactos.
Com este Governo, a comunidade portuguesa foi deixada à sua sorte.
COMENTÁRIOS:
Sergio Lopes,
25.09.2018: O dr. Paulo Rangel não tem a mínima ideia dos
perigos que espreitam os portugueses (alguns terão dupla cidadania) numa
Venezuela sem lei! Só quem lá viveu sabe. Nem tudo serve para fazer oposição
imediatista, dr. Paulo Rangel. Este assunto não deve ser tratado publicamente,
requer pinças e muito tacto. É preciso ter em linha de conta que os portugueses
na área de actividade que levou às prisões são vistos como exploradores dos
pobres e Maduro não terá dúvidas nenhumas em utilizar essa visão popular em seu
benefício.
Rebelde,
Aveiro 25.09.2018: Não
sei se neste momento ainda são vistos como exploradores dos pobres ou se a
maioria não os considera únicos abastecedores dos pobres. O problema a meu ver
é que o regime castro comunista da Venezuela tem planos muito concretos de
submeter a população pela fome. E não é por se tomarem medidas firmes que não
somos respeitados, é precisamente o contrário, penso eu.
Wheeler
Catarina, 25.09.2018: Esta mania de politizar os
assuntos de Portugal, tal como nos fogos, é uma das causas dos descrédito da
Política para a maioria dos Eleitores.
A NON DOMINO, Terra 25.09.2018: Boa
comédia. Defender compatriotas presos em condições de legalidade duvidosa é uma
forma de politizar um assunto. Acho que tem de ir ler bem a definição de
política a um bom dicionário. Os "fogos" não são uma questão
política, ou o que incomoda é a responsabilização de quem deveria ter governado
melhor a "pólis"? Neste caso da Venezuela, o que incomoda é o PCP e o
BE apoiarem um regime ditatorial que levou um país à miséria total? Ou é haver
portugueses com graves problemas de subsistência? Será o facto de que a maior
parte das forças políticas, jornais, TV e outros meios ignorarem a tragédia?
II - Quem tem medo de Ivo Rosa?
Não é difícil perceber que este é o caso mais
importante da justiça portuguesa em 43 anos de democracia, e que o julgamento
não pode deixar dúvidas a ninguém.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 2 de Outubro de 2018
Desta vez estou de acordo com José Sócrates: fico contente que o juiz escolhido para presidir à
instrução do processo Marquês seja Ivo Rosa. Há,
desde logo, uma razão prática para isso. A escolha de Carlos Alexandre iria
quase de certeza dar origem a incidentes de recusa do juiz, que atrasariam
ainda mais o processo. A acusação é de tal modo arrasadora que todas as fichas
dos arguidos estão colocadas em cima de ilegalidades processuais que possam
conduzir a uma vitória na secretaria, daí o enxame de recursos que se tem
abatido sobre o caso. Só da parte de Sócrates eles já devem superar as quatro
dezenas (infelizmente, nem a comunicação social especializada consegue
acompanhar a velocidade a que são submetidos), o que dá uma boa dimensão do seu
desespero – José Sócrates está (diz ele) absolutamente convicto da sua
inocência e absolutamente empenhado em que o julgamento que a poderia
demonstrar nunca chegue a acontecer.
Nos dias que correm, só uma dúzia de tontos e meia-dúzia de vendidos
continuam a proclamar aos sete ventos que Sócrates é um político impoluto, e
Carlos Santos Silva o mais generoso mealheiro da Via Láctea. Mas aqueles que
gostariam que a Operação
Marquês caísse
pela base são bem mais numerosos do que aqueles que ainda têm a lata de o
defender em público. Entre fazer-se justiça e salvarem a própria pele, eles
naturalmente escolhem a pele. Velhos amigos e velhas amigas de Sócrates,
antigos ministros, militantes assolapados do Partido Socialista, jornalistas
vesgos ou colunistas sabujos estão mortinhos para que o processo impluda,
porque a condenação de Sócrates seria o atestado final da sua própria estupidez
ou falta de carácter (há quem acumule). Para estes senhores e senhoras, Carlos
Alexandre é o bode expiatório do momento. Ora, convém que no final deste
processo não reste um único bode para expiar. E é por isso que Ivo Rosa é
preferível a Carlos Alexandre. Um juiz para o inquérito e outro juiz para a instrução
é a melhor forma de o exercício da justiça ser transparente, exigente e
inatacável.
Sei que muita gente ouve o
nome de Ivo Rosa e começa a tremer. Os seus conflitos com o Ministério Público
têm sido constantes e as garantias que atribui a quem está a ser investigado
são com frequência consideradas excessivas – inclusivamente pelo Tribunal da
Relação, que já várias vezes decidiu contra ele. Eu tendo a concordar com essa visão, na
medida em que me parece que a lei já dá demasiadas garantias aos suspeitos de
corrupção. Se,ainda por cima, o juiz
que preside à fase de inquérito for picuinhas e excessivamente legalista, então
é meio caminho andado para não se conseguir provar nada e acusar ninguém. Dito
isto, considero que a Operação Marquês é
um caso à parte e exige uma responsabilidade acrescida por parte de quem
investiga e por parte de quem avalia os indícios recolhidos.
Sabem quantos
primeiros-ministros já foram condenados e presos desde a fundação de Portugal? Zero. Até aí José Sócrates pode vir a
revelar a sua imensa originalidade. Não é difícil perceber que este é o caso
mais importante da justiça portuguesa em 43 anos de democracia, e que o
julgamento não pode deixar dúvidas a ninguém. Ivo Rosa pode ser picuinhas,
mas ainda ninguém o acusou de ser um Rui Rangel. Assim sendo, acho muito bem
que seja ele a analisar com minúcia a legalidade e solidez da acusação e a
necessidade de levar aquelas pessoas a julgamento. Se queremos que se faça
justiça, não podemos ter medo dela.
COMENTÁRIOS
manusreis20:
as partes envolvidas neste
lamaçal queriam o outro, então vamos a sorteio, e não é que o sorteio ditou
mesmo o outro? Coincidência da informática, isto é demais para a minha carroça,
as voltas que deram para em nada dar, esta é a nossa justiça ao mais baixo nível!
Serei vivo para ver o resultado?
mário borges, 03.10.2018:
Só uma correcção. O Ivo Rosa
não foi escolhido. Foi "sorteado". Ainda assim acho de uma certa
candura a esperança do JMT no sistema judicial português. A não ser que o arqui-inimigo
do José Sócrates seja poderoso ao ponto de conseguir manipular a Justiça, acho
que ele pode acabar ilibado. Porque neste julgamento a justiça há muito que foi
colocada de parte e é um julgamento político baptizado pelo próprio arguido.
Ainda que vá preso (o que seriamente duvido) ele regressará, tal como o ex recluso
e condenado por corrupção, Isaltino, que regressou e ganhou o voto popular para
continuar a corromper, desta feita com o aval explícito de quem nele votou. Eu
acho que apesar de ser contra a prisão preventiva foi o único castigo que o
Sócrates verá na vida. Ou então será mais um caso de "pena suspensa"!
Tuberosum
Sassy, 03.10.2018 : Eu
tenho, diante de leis com vários alçapões, que o garantismo é obviamente o
"modus operandi" de um juiz corrupto!
Henrique
Duarte, Portugal 03.10.2018: João Miguel Tavares, você está a sofrer um
ataque agudíssimo de ingenuidade...
fernando jose
silva, LUSO 03.10.2018 Num país onde há justiça para políticos,
para ricos, para pobres, e talvez mais ainda, alguém pode acreditar nessa
justiça? Estamos a falar entre cegos, surdos e mudos ???? Se os jornalistas
perguntarem ao português comum o que vai acontecer neste caso, dir-lhe-ão na
grande maioria, nada. Alguns dirão que ainda lhe temos de pagar uma
indemnização choruda. É a voz do povo choruda. Depois muda-se a procuradora,
nomeia-se um juiz entre dois apenas, um deles com uma relação duvidosa com os
superiores, enfim, somos todos santinhos????
cisteina,
Porto 03.10.2018: Análise e conclusão curiosas, até eu aplaudo
e concordo com elas, Como assim, não haverá desculpas. Mas, se houver
prescrição do(s) processo(s) por manobras e expedientes dilatórios, então
também teremos de concluir e continuar a afirmar existir uma justiça para muito
ricos e outra para pobres (chega assim, são muitos e as prisões já não têm
lugar para todos). Por outro lado, se o galáctico mecenas for condenado por
fuga ao fisco ou não conseguir provar a origem da majestática fortuna acumulada
em pouco tempo, também é bem feito por não ter destravado a língua. Como tal,
pague as mentiras, justificações e invenções com língua de muitos palmos, isto
de servir de testa de ferro tem que se lhe diga.
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