De história contemporânea, acerca
de um jornalista saudita crítico do rei, refugiado nos EUA, que é assassinado
no consulado da Arábia Saudita, na Turquia, onde entrou e donde não saiu mais
com vida, o crime provavelmente implicando uma intriga de aliança entre a
Arábia Saudita e os EUA. Gostei do artigo de Rui Tavares, que, como historiador zeloso, pretende advertir-nos de
consequências graves, sonâmbulos que somos, ou meramente adormecidos, o que é
característica das bases, essencialmente preocupadas com os problemas da sua
sobrevivência e dos seus prazeres materiais e espirituais, por Eça já definidos,
no nosso caso nacional, como aviltante “rumor
das saias de Elvira”. Advertir-nos, pois, Rui Tavares, com as prováveis
consequências belicosas que o caso pode assumir, como aconteceu com o atentado
de Sarajevo e o assassinato do arquiduque herdeiro do governo austro-húngaro,
desencadeador da 1ª GG. O seu texto provocou comentários que também registo, no
prazer de ir conhecendo, assim, gente desperta da nossa terra, habitual
participante das crónicas que lhe dão no goto, como a mim própria.
OPINIÃO - Sonâmbulos de novo
A mensagem clara é que abriu a época da caça
e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde
quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 19 de
Outubro de 2018
O destino do jornalista saudita
Jamal Khashoggi não é só
provavelmente macabro; é sobretudo profético. Lembremos resumidamente quem
ele era e qual é o seu caso: inicialmente
um disciplinado jornalista no reino da Arábia Saudita, Khashoggi escolheu o caminho do exílio para poder falar mais
livremente, e como residente permanente nos EUA escreveu crónicas críticas, mas
ainda assim respeitosas, em relação ao todo-poderoso príncipe Mohammed bin
Salman. Um dia entrou num consulado da Arábia Saudita na Turquia e não voltou a
sair. A autoridades turcas alegam terem gravações — provavelmente
obtidas através de espionagem contra a representação diplomática — provando que
Khashoggi foi torturado, assassinado e desmembrado por uma equipa de 15
sauditas vindos do reino para a Turquia com vistos de turistas. Pelo menos um
dos 15 já foi identificado como sendo um segurança próximo de Mohammed bin
Salman. E acima de tudo a Arábia Saudita não apresentou até agora nenhuma
explicação para o facto de Khashoggi ter entrado e nunca ter saído do seu
consulado, nem sobre o que lhe terá acontecido lá dentro.
E no meio de tudo isto aparece uma reportagem aparentemente bem
fundamentada no Washington
Post dizendo que a família
real saudita e a Administração Trump nos EUA estão a trabalhar juntas para
aparecerem com “uma justificação mutuamente aceitável” para o que aconteceu —
ou seja, que estão a conspirar para mentir.
Porque é que isto tem
importância, para lá da violação de direitos humanos em concreto e da ação
criminal que é — alegadamente, para já — matar um jornalista? Nos tempos
cínicos em que vivemos, é fácil olhar para o caso Khashoggi e encolher os
ombros dizendo que assassinatos de jornalistas há em todos os continentes e que
nunca ninguém julgou que o reino da Arábia Saudita fosse especialmente virtuoso
em casos deste género. Porque
é que este caso é tão grave?
Para dizer de uma forma simples: porque já começaram guerras por menos.
O caso em apreço não é só grave por envolver a morte de um jornalista. É
gravíssimo por ter ocorrido no território de um país estrangeiro e dentro de
uma representação diplomática, abusando das imunidades e privilégios que estas
têm. Já vivemos épocas assim, em que fomos arrastados para guerras onde
morreram milhões por causa de temeridades semelhantes. E uma delas foi a época
imediatamente anterior à I Guerra Mundial. Um livro que já citei aqui do
historiador Christopher Clark, sobre “como a Europa entrou em guerra em 1914”,
tem um título que descreve este fenómeno de forma particularmente feliz: Sonâmbulos. Ou seja, a Europa entrou em
guerra sem saber como, porque o jogo entre potências foi ficando cada vez mais
perigoso e, a certa altura, qualquer provocação poderia acender a faísca de um
mega-conflito.
O único erro está em
pensarmos que a I Guerra Mundial foi uma guerra europeia que se mundializou. Errado: a I Guerra Mundial foi uma guerra
europeia e do Médio Oriente que se mundializou. A I Guerra Mundial começou nos Balcãs, fronteira histórica entre a
Áustria e o Império Otomano, e sem queda do Império Otomano não haveria Iraque,
nem Síria, nem Arábia Saudita, nem Turquia moderna. O que estes países têm
em comum não é apenas terem estado todos nas notícias por causa de várias
guerras — invasões, guerras civis, guerras através de terceiros — nos últimos
anos. O que eles têm em comum é
conhecerem bem a sua história e saberem como os seus Estados nasceram há menos
de um século após um conflito no qual entrámos como sonâmbulos a caírem num
buraco.
O resto é o oportunismo da
época atual. A Rússia assassina impunemente os seus ex-espiões em território
estrangeiro. A Arábia Saudita observa como Putin consegue matar quem lhe
apetece onde lhe apetecer, toma devida nota, e faz o mesmo. O resto da
comunidade internacional olha com espanto para os Estados Unidos minimizarem a
necessidade de se saber o que se terá passado no consulado saudita. A mensagem clara é que abriu a época da caça
e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde
quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso e as organizações
internacionais estão de pés e mãos atados pelas grandes potências.
Lá vamos nós de novo,
sonâmbulos. A continuar assim, alguém acredita que não está a aumentar a
probabilidade de um dia destes um caso como o de Khashoggi dar verdadeiramente
para o torto?
COMENTÁRIOS:
Arrebenta, Lisboa 20.10.2018: O império
austro-húngaro tinha diversos movimentos internos independentistas, em especial
na zona dos Balcãs - e por isso o apoio da Rússia. Mas a razão fundamental para
o conflito é milenar e volta a emergir na história quando existe uma relação de
potência dominante e potência desafiadora, assente, no caso concreto, em
dívida. Também ocorreu com Portugal na iniciativa da Armada Invencível.
Pesquisem "Thucydides Trap" e vejam o potencial da guerra comercial
de Trump com a China.
Julio,
"Que época terrível esta, onde idiotas dirigem cegos" William
Shakespeare 19.10.2018: Incrível! Poderei compreender que o sr
Historiador não teve´ tempo ou não achou necessário explicar-nos as causas da I
GG. Poderei compreender que o seu propósito tenha sido o de alertar as
consciências para a instabilidade da situação que vivemos hoje em dia - onde um
qualquer acto injustificado poderá ser um rastilho para uma situação
incontrolada. O que não compreendo, nem posso compreender, é que o articulista
assuma o papel do rastilho.
Marcos S.,
Porto 19.10.2018: Correcção : foi obviamente a humanidade
do Sr. Registado Leitor (infra) a
soçobrar perante as sua convicções políticas...
...e à sua causa. Agora à
boleia deste desastre de Babchenko diminuir a vergonha que é a posição das
democracias ocidentais (especialmente a liderada por Trump) neste tema (ainda
que este não tenha tomado uma posição definitiva já manifestou expressamente o
seu conflito de interesses!) parece-me um absurdo, onde a ideologia política
soçobrou perante a humanidade do Sr. Registado Leitor. Nota final: O comentário aqui feito dedica-se única e
exclusivamente ao Sr. Registado Leitor (infra)
e à sua desaparecida humanidade, fazendo votos que o mesmo a encontre e a
acolha com carinho, sem medos nem reservas...
Não consigo deixar de ficar
estupefacto, como se consegue converter uma questão de claro atropelo dos
direitos humanos e do direito internacional, numa discussão entre
"esquerdistas" e "direitistas"! Este caso preocupa-me em
primeiro lugar porque não sendo um vegetal, nutro natural empatia pelo próximo
e sou defensor acérrimo da verdade seja ela de esquerda ou de direita! Afinal a
verdade e a mentira são, tal como a empatia, naturais a qualquer ser humano
marxista ou ultraliberal! Quanto ao caso Babchenko de facto nunca
percebi a intenção do mesmo em simular a sua própria morte, e temo concordar
que foi profundamente infeliz, até porque, e na minha perspectiva, minou a sua
credibilidade, e mais ainda, terminou por provocar danos colaterais à
credibilidade das autoridades ucranianas...
Ceratioidei,
Oceanos 19.10.2018 : Subscrevo
na íntegra. A memória não me falhou até agora. É bem verdade que um incidente
destes pode criar uma situação sem retorno. Mas... não com a Arábia Saudita, o
melhor cliente na compra de armamento dos USA e dos demais produtores europeus,
plataforma de investimento com margens de lucro fabulosas. Chegamos ao topo da
decadência da nossa civilização e estamos em queda vertiginosa em direcção ao
abismo. Substitui-se a dignidade por dinheiro. O sonambulismo é uma estratégia
de sobrevivência, quando o cérebro grita „cuidado, um abismo!“, e te forçam a
dar um passo em frente.
Nuno Silva,
19.10.2018: Os sauditas e os EUA (e outros aliados como Israel), são bem capazes
ter a lata de meter novamente as culpas no Irão (ou na Rússia), como fazem
sempre...
Registado
Leitor, 19.10.2018: “A
Arábia Saudita observa como Putin consegue matar quem lhe apetece onde lhe
apetecer”. Lembram-se desta história? “Jornalista russo crítico de Putin
assassinado em Kiev com tiros nas costas” “O jornalista russo crítico de
Vladimir Putin, que tinha sido dado como morto esta quarta-feira, afinal está
vivo. Arkady Babchenko apareceu numa conferência de imprensa sobre o seu
homicídio” Fake..fake..fake….
Manuel
Brito, LISBOA 19.10.2018:
Alexander Litvinenko, lembram-se? Fake... Fake... Fake... Sergei e
Yulia Skripal, Dawn Sturgess, lembram-se? Fake... Fake... Fake...
Nepomuceno
Fábio, 19.10.2018 : Sim, os Skripal, essa história
está tão bem contada que é completamente impossível haver seja que dúvidas forem
acerca desse caso...Manuel
Brito
Registado
Leitor, 19.10.2018: "A
mensagem clara é que abriu a época da caça e que toda a gente pode fazer o que
quiser contra as suas oposições onde quiser, porque as grandes potências vivem
bem com isso" Pensei que o Rui Tavares ia finalmente falar sobre a
democracia na Venezuela e sobre o suicídio nos serviços secretos do dirigente
da oposição ao Maduro...
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