quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Um artigo premonitório



De história contemporânea, acerca de um jornalista saudita crítico do rei, refugiado nos EUA, que é assassinado no consulado da Arábia Saudita, na Turquia, onde entrou e donde não saiu mais com vida, o crime provavelmente implicando uma intriga de aliança entre a Arábia Saudita e os EUA. Gostei do artigo de Rui Tavares, que, como historiador zeloso, pretende advertir-nos de consequências graves, sonâmbulos que somos, ou meramente adormecidos, o que é característica das bases, essencialmente preocupadas com os problemas da sua sobrevivência e dos seus prazeres materiais e espirituais, por Eça já definidos, no nosso caso nacional, como aviltante “rumor das saias de Elvira”. Advertir-nos, pois, Rui Tavares, com as prováveis consequências belicosas que o caso pode assumir, como aconteceu com o atentado de Sarajevo e o assassinato do arquiduque herdeiro do governo austro-húngaro, desencadeador da 1ª GG. O seu texto provocou comentários que também registo, no prazer de ir conhecendo, assim, gente desperta da nossa terra, habitual participante das crónicas que lhe dão no goto, como a mim própria.
OPINIÃO - Sonâmbulos de novo
A mensagem clara é que abriu a época da caça e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 19 de Outubro de 2018
O destino do jornalista saudita Jamal Khashoggi não é só provavelmente macabro; é sobretudo profético. Lembremos resumidamente quem ele era e qual é o seu caso: inicialmente um disciplinado jornalista no reino da Arábia Saudita, Khashoggi escolheu o caminho do exílio para poder falar mais livremente, e como residente permanente nos EUA escreveu crónicas críticas, mas ainda assim respeitosas, em relação ao todo-poderoso príncipe Mohammed bin Salman. Um dia entrou num consulado da Arábia Saudita na Turquia e não voltou a sair. A autoridades turcas alegam terem gravações — provavelmente obtidas através de espionagem contra a representação diplomática — provando que Khashoggi foi torturado, assassinado e desmembrado por uma equipa de 15 sauditas vindos do reino para a Turquia com vistos de turistas. Pelo menos um dos 15 já foi identificado como sendo um segurança próximo de Mohammed bin Salman. E acima de tudo a Arábia Saudita não apresentou até agora nenhuma explicação para o facto de Khashoggi ter entrado e nunca ter saído do seu consulado, nem sobre o que lhe terá acontecido lá dentro.
E no meio de tudo isto aparece uma reportagem aparentemente bem fundamentada no Washington Post dizendo que a família real saudita e a Administração Trump nos EUA estão a trabalhar juntas para aparecerem com “uma justificação mutuamente aceitável” para o que aconteceu — ou seja, que estão a conspirar para mentir.
Porque é que isto tem importância, para lá da violação de direitos humanos em concreto e da ação criminal que é — alegadamente, para já — matar um jornalista? Nos tempos cínicos em que vivemos, é fácil olhar para o caso Khashoggi e encolher os ombros dizendo que assassinatos de jornalistas há em todos os continentes e que nunca ninguém julgou que o reino da Arábia Saudita fosse especialmente virtuoso em casos deste género. Porque é que este caso é tão grave?
Para dizer de uma forma simples: porque já começaram guerras por menos. O caso em apreço não é só grave por envolver a morte de um jornalista. É gravíssimo por ter ocorrido no território de um país estrangeiro e dentro de uma representação diplomática, abusando das imunidades e privilégios que estas têm. Já vivemos épocas assim, em que fomos arrastados para guerras onde morreram milhões por causa de temeridades semelhantes. E uma delas foi a época imediatamente anterior à I Guerra Mundial. Um livro que já citei aqui do historiador Christopher Clark, sobre “como a Europa entrou em guerra em 1914”, tem um título que descreve este fenómeno de forma particularmente felizSonâmbulos. Ou seja, a Europa entrou em guerra sem saber como, porque o jogo entre potências foi ficando cada vez mais perigoso e, a certa altura, qualquer provocação poderia acender a faísca de um mega-conflito.
O único erro está em pensarmos que a I Guerra Mundial foi uma guerra europeia que se mundializou. Errado: a I Guerra Mundial foi uma guerra europeia e do Médio Oriente que se mundializou. A I Guerra Mundial começou nos Balcãs, fronteira histórica entre a Áustria e o Império Otomano, e sem queda do Império Otomano não haveria Iraque, nem Síria, nem Arábia Saudita, nem Turquia moderna. O que estes países têm em comum não é apenas terem estado todos nas notícias por causa de várias guerras — invasões, guerras civis, guerras através de terceiros — nos últimos anos. O que eles têm em comum é conhecerem bem a sua história e saberem como os seus Estados nasceram há menos de um século após um conflito no qual entrámos como sonâmbulos a caírem num buraco.
O resto é o oportunismo da época atual. A Rússia assassina impunemente os seus ex-espiões em território estrangeiro. A Arábia Saudita observa como Putin consegue matar quem lhe apetece onde lhe apetecer, toma devida nota, e faz o mesmo. O resto da comunidade internacional olha com espanto para os Estados Unidos minimizarem a necessidade de se saber o que se terá passado no consulado saudita. A mensagem clara é que abriu a época da caça e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso e as organizações internacionais estão de pés e mãos atados pelas grandes potências.
Lá vamos nós de novo, sonâmbulos. A continuar assim, alguém acredita que não está a aumentar a probabilidade de um dia destes um caso como o de Khashoggi dar verdadeiramente para o torto?

COMENTÁRIOS:
Arrebenta, Lisboa 20.10.2018: O império austro-húngaro tinha diversos movimentos internos independentistas, em especial na zona dos Balcãs - e por isso o apoio da Rússia. Mas a razão fundamental para o conflito é milenar e volta a emergir na história quando existe uma relação de potência dominante e potência desafiadora, assente, no caso concreto, em dívida. Também ocorreu com Portugal na iniciativa da Armada Invencível. Pesquisem "Thucydides Trap" e vejam o potencial da guerra comercial de Trump com a China.
Julio, "Que época terrível esta, onde idiotas dirigem cegos" William Shakespeare 19.10.2018: Incrível! Poderei compreender que o sr Historiador não teve´ tempo ou não achou necessário explicar-nos as causas da I GG. Poderei compreender que o seu propósito tenha sido o de alertar as consciências para a instabilidade da situação que vivemos hoje em dia - onde um qualquer acto injustificado poderá ser um rastilho para uma situação incontrolada. O que não compreendo, nem posso compreender, é que o articulista assuma o papel do rastilho.
Marcos S., Porto 19.10.2018: Correcção : foi obviamente a humanidade do Sr. Registado Leitor (infra) a soçobrar perante as sua convicções políticas...
...e à sua causa. Agora à boleia deste desastre de Babchenko diminuir a vergonha que é a posição das democracias ocidentais (especialmente a liderada por Trump) neste tema (ainda que este não tenha tomado uma posição definitiva já manifestou expressamente o seu conflito de interesses!) parece-me um absurdo, onde a ideologia política soçobrou perante a humanidade do Sr. Registado Leitor. Nota final: O comentário aqui feito dedica-se única e exclusivamente ao Sr. Registado Leitor  (infra) e à sua desaparecida humanidade, fazendo votos que o mesmo a encontre e a acolha com carinho, sem medos nem reservas...
Não consigo deixar de ficar estupefacto, como se consegue converter uma questão de claro atropelo dos direitos humanos e do direito internacional, numa discussão entre "esquerdistas" e "direitistas"! Este caso preocupa-me em primeiro lugar porque não sendo um vegetal, nutro natural empatia pelo próximo e sou defensor acérrimo da verdade seja ela de esquerda ou de direita! Afinal a verdade e a mentira são, tal como a empatia, naturais a qualquer ser humano marxista ou ultraliberal! Quanto ao caso Babchenko de facto nunca percebi a intenção do mesmo em simular a sua própria morte, e temo concordar que foi profundamente infeliz, até porque, e na minha perspectiva, minou a sua credibilidade, e mais ainda, terminou por provocar danos colaterais à credibilidade das autoridades ucranianas...
Ceratioidei, Oceanos 19.10.2018 : Subscrevo na íntegra. A memória não me falhou até agora. É bem verdade que um incidente destes pode criar uma situação sem retorno. Mas... não com a Arábia Saudita, o melhor cliente na compra de armamento dos USA e dos demais produtores europeus, plataforma de investimento com margens de lucro fabulosas. Chegamos ao topo da decadência da nossa civilização e estamos em queda vertiginosa em direcção ao abismo. Substitui-se a dignidade por dinheiro. O sonambulismo é uma estratégia de sobrevivência, quando o cérebro grita „cuidado, um abismo!“, e te forçam a dar um passo em frente.
Nuno Silva, 19.10.2018: Os sauditas e os EUA (e outros aliados como Israel), são bem capazes ter a lata de meter novamente as culpas no Irão (ou na Rússia), como fazem sempre...
Registado Leitor, 19.10.2018: “A Arábia Saudita observa como Putin consegue matar quem lhe apetece onde lhe apetecer”. Lembram-se desta história? “Jornalista russo crítico de Putin assassinado em Kiev com tiros nas costas” “O jornalista russo crítico de Vladimir Putin, que tinha sido dado como morto esta quarta-feira, afinal está vivo. Arkady Babchenko apareceu numa conferência de imprensa sobre o seu homicídio” Fake..fake..fake….
Manuel Brito, LISBOA 19.10.2018: Alexander Litvinenko, lembram-se? Fake... Fake... Fake... Sergei e Yulia Skripal, Dawn Sturgess, lembram-se? Fake... Fake... Fake...
Nepomuceno Fábio, 19.10.2018 : Sim, os Skripal, essa história está tão bem contada que é completamente impossível haver seja que dúvidas forem acerca desse caso...Manuel Brito
Registado Leitor, 19.10.2018: "A mensagem clara é que abriu a época da caça e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso" Pensei que o Rui Tavares ia finalmente falar sobre a democracia na Venezuela e sobre o suicídio nos serviços secretos do dirigente da oposição ao Maduro...

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