domingo, 7 de outubro de 2018

Uma fartura e um prazer, na seca


E não me refiro apenas aos cronistas da minha leitura – Alberto Gonçalves e Paulo Tunhas – o primeiro, com o exagero, hilariante de precisão retórica, da sua costumeira mordacidade, sobre os temas da nossa mediocridade mediaticamente exposta, de cariz sensacionalista, que tantas vezes fazem ranger os dentes de indignação, pela carência de “assunto” ou de explanação teórica programática enriquecedora; o segundo, anterior em data, sobre, precisamente, os que entendem debruçar-se analiticamente sobre todos os temas, de tudo dando parecer, nas ideias pescadas das atoardas da modernice geral, afinal ignorando o fundamental, em estudo necessário, o qual parece perder-se imparavelmente, nestes tempos de ruído e de selvática distracção de leituras e valores, numa plena liberdade sem esses mentores da vida, que, apontando a moderação clássica, de uma aurea mediocritas compensadora, poderiam mais racionalmente traduzir o sentido das temáticas valorativas da liberdade que hoje se aparenta à do mundo da selva. Os comentários a ambas as crónicas ajudam ao prazer da leitura, cada um traduzindo saberes ou tendências pessoais que, de certo modo, nos equilibram a esperança numa continuidade humana ainda racional, mau grado o pessimismo de AG, para mais desprezador dos ismos e dos istas.
A união faz a força bruta /premium
OBSERVADOR, 6/10/2018
Por um instante, acreditei que haveria vida inteligente algures entre o “feminismo” e o “machismo”. Já não acredito. Aliás, começo a não acreditar em coisa nenhuma e a apreciar poucas.
É possível que deixar de fumar, de beber e de investir as poupanças na roleta implique benefícios a longo prazo. Deixar de ver televisão traz benefícios imediatos. O mais recente é ser poupado à catrefada de programas dedicados à violação alegadamente cometida pelo futebolista Cristiano Ronaldo em Las Vegas. Os ecos que me chegam (e sobram) pelo Facebook dão-me conta de mesas redondas cercadas de especialistas especializados em proferir atoardas. É daqueles casos em que imaginamos exactamente o que estamos a perder: lixo.
Por regra, este alvoroço em redor dos abusos sexuais costuma confrontar duas escolas de pensamento. A escola “machista” acha todas as acusações infundadas e obra de galdérias interessadas em dinheiro e/ou fama. A “feminista” considera todas as acusações verdadeiras e todos os actos perpetrados a coberto de um “sistema” patriarcal e opressor. A escola “machista” desvaloriza a autonomia e o arbítrio das mulheres. Por diferentes caminhos, a “feminista” também. A escola “machista”, informal e tosca, é irredutível nas suas convicções. A “feminista”, organizada e metódica, tem dias.
Se, por exemplo, uma das medalhadas em sofrimento pelo #MeToo é suspeita de marotices sobre um rapaz adolescente, boa parte do “feminismo” decreta logo as denúncias falsas e indignas de sequer serem levadas em consideração. E se, outro exemplo, as denúncias provêm de uma americana que, em vez de comprometer um juiz escolhido pelo sr. Trump, compromete o sr. Ronaldo, certo “feminismo”, pelo menos de extracção caseira, sofre novo abalo e procede, hesitante, à desvalorização da fêmea em causa para não desvalorizar o motor do orgulho pátrio. Aqui, escusado notar, o “machismo”, que nunca hesita, fica a um passo de propor o esquartejamento da tal senhora.
E andamos nisto, que me interessa tanto quanto as infusões de camomila. Por um instante, acreditei que haveria vida inteligente algures entre o “feminismo” e o “machismo”. Já não acredito. Aliás, começo a não acreditar em coisa nenhuma e a apreciar poucas. Marxistas. Budistas. Fascistas. Benfiquistas. Nacionalistas. Bairristas. Papistas. Activistas. Ciclistas. Maoístas. Catequistas. Socialistas. Alquimistas. Sambistas. Sindicalistas. Artistas. Bilharistas. Etc. Por definição tácita, os “istas” deste mundo são criaturas com desesperada necessidade de pertença a algo que os transcenda, em quantidade e, pensam eles, em qualidade. Pode ser uma ideologia, um culto, um clube, uma associação, um tique partilhado por um grupinho razoável.
Cumpre-me informar que jamais senti semelhante carência. Se sentisse, estaria tramado, visto não me ocorrer um único critério que me aproxime, por acordo ou telepatia, de qualquer amontoado de gente. Assim por alto, sou, porque calhou, homem, caucasiano, português, heterossexual e ateu. Existe alguma afinidade inata ou adquirida que me vincule aos restantes homens, caucasianos, portugueses, heterossexuais e ateus? A resposta é não. Ou não, cruz credo. Ou não, a que propósito? A “identidade”, que em décadas esmagou a luta pela igualdade a benefício da histeria pela “diferença”, é um delírio infantil, e as políticas que a utilizam são uma fraude concebida para arregimentar pasmados.
A “integração” em bandos afinal abstractos, fundamentada em características fortuitas como a naturalidade, o sexo ou a cor da pele, será na melhor das hipóteses um descanso para cabecinhas desnorteadas. Na pior, serve para as cabecinhas se sentirem superiores, exigirem privilégios e proibições, alimentarem conflitos e, em última instância, dividirem sociedades sustentadas pelos sempre débeis laços civilizacionais de modo a facilitar o reinado de oportunistas, súmula competente dos “istas” em geral.
Acerca do assunto – ou da falta dele – na ordem do dia, eis a minha opinião: não tenho. Vejam lá (de que maneira?) se o sr. Ronaldo é culpado e, se sim, prendam-no. Ou apurem (de que maneira?) se a senhora é mentirosa e, então, prendam-na a ela. Ou enviem o prof. Marcelo para distribuir comendas por ambos. Ou vão dormir e não incomodem com indigências as raras pessoas que não querem ser incomodadas com indigências, por acaso uma “identidade” que eu assumiria sem esforço nem vergonha.
Nota de rodapé:
Em Tancos, um crime foi deliberadamente encoberto, o que constitui outro crime. Felizmente, ninguém que importe soube de nada. Nem o ministro (que, em seu abono, nunca sabe de coisa alguma), nem o primeiro-ministro (ele seja cego, surdo e – peço a Deus – mudo), nem Sua Excelência, o Comandante Supremo e Impecável das Forças Armadas (aquele senhor das “selfies”). É uma sorte tremenda, dado que a evidente inocência destas personalidades permite-lhes continuar a mandar competentemente no país em vez de irem parar ao olho da rua ou, fosse este um lugar diferente (digamos), à cadeia. Na cadeia está uma figura menor, cujo nome não recordo e cuja ausência não perturba a nossa imparável marcha rumo ao ridículo, perdão, à glória final.
Nota do autor: o autor vai de férias. Regressa dia 27.
COMENTÁRIOS:
José Ramos: Hoje, Alberto Gonçalves brindou-nos com mais um belo artigo sobre a Liberdade (ou a falta dela) e, como esta é cada vez um bem mais escasso e menos apreciado, os "istas" de todos os quadrantes resolveram malhar-lhe. Ontem, num "post", foram os grunhos de todos os quadrantes. os "istas" e os grunhos não gostam que se fale nisso. É uma espécie de esqueleto no armário, embora os "istas" aparentemente se vangloriem e os grunhos grunham sobre isso. Por mim, AG, o meu obrigado e boas férias.
Paulo Carnaxide: Portugal é uma anedota, até prova em contrário!
Relvas Analytics: ...Deixar de ver televisão traz benefícios imediatos, assim como deixar de ler as palermices escritas pelo Beto!
ProtoTypical  -> Relvas Analytics: E, contudo, não perdes uma. A tua seita não faz mesmo nada da vida, pois não? Não admira que sintam tão inveterada necessidade de defender a atribuição gratuita de subsídios estatais.
Francisco Pinto. A comédia de Tancos expõe a baixeza inimaginável dos actuais governantes, PR incluído. E nem o exército escapa ao manto de mentira e falta de honra que estes srs. espalham num país que duvido ainda exista. O caso que Ronaldo está a viver não é surpresa para ninguém. Era só uma questão de tempo.
Lembrar a baixeza destes e só destes porque antes havia apenas o vazio cósmico, mostra que há por aí uma forte amnésia.
Maria Pinto: Sobre as violações que têm vindo a lume cheguei à conclusão que os homens perfeitos são os pelintras que não têm cheta, porque estas golpistas (perdão, virgens ofendidas) embrulham-se, (e depois têm razões de queixa) sempre com gente muito rica muito influente, muito poderosa.... fica a dica dêem preferência ao padeiro, ao carteiro, ao motorista da carris,.... (sem demérito para as pessoas dessas profissões muito dignas) porque assim têm a certeza que tudo vai correr bem!!! Ou elas querem que corra mal????
Jay Pi: Violência sexual é apenas mais uma manifestação desse impulso básico e desprezível que consiste em ter demasiada inclinação para dar festinhas ao próprio ego. Mecanismo mitigador das frustrações e tensões desta vida, acaba por ser tóxico para o próprio, para o seu semelhante, para a sociedade e para a civilização. Numa gaveta conjunta, tudo isto se designa por bullying, o maior cancro da humanidade.    ……………
II - CRÓNICA
Os idiotas polivalentes /premium
OBSERVADOR, 13/9/2018
A sociedade, para o idiota polivalente, é uma superfície lisa onde todas as diferenças não apenas são artificiais (como, em certa medida, de facto o são), mas também elimináveis da primeira à última.
Às vezes, vem a tentação de pesar os tempos, de tentar perceber quais as suas crenças mais notórias. É uma maneira de procurar dar forma ao informe, ao sentimento vago que o mundo à volta nos provoca. Vale o que vale. E a possibilidade da parcialidade é o menos. O risco, é claro, é acabarmos por onde começamos, isto é, pelo tal sentimento, sem adiantar nada. Mas, por razões higiénicas, vale a pena. Com sorte, alivia.
Comecemos pelo sentimento de irrealidade. É difícil escapar-lhe. À superfície mediática, parece que tudo se passa numa espécie de vazio quadriculado em que cada espaçozinho deve ser preenchido por um medo novo e por uma proibição nova, em benefício do progresso da espécie. Há medos e proibições para todos os gostos e temperamentos. O passado deixou de existir, a não ser como imagem negativa do que deve ser e das conquistas do futuro. Não é preciso ser conservador para sentir isto. Basta estar consciente de que não nascemos ontem e ter alguma memória. Ver as pessoas pensarem e agirem como se assim fosse cria a sensação de se viver num mundo irreal, sem materialidade alguma. As palavras do passado e as memórias do passado são uma a uma apagadas. É isto sinal de alguma particular vitalidade do presente, da energia da vida que quer modificação? De modo nenhum. A vida precisa da memória, vive dela, particularmente da memória de como se sentia noutros tempos. De outro modo não pode ser examinada e não merece, como dizia um filósofo, ser vivida.
Em tempos passados, asseguram-nos, havia polímatas, gente cuja especialidade, como a de Mycroft, o irmão de Sherlock Holmes, era a omnisciência. Hoje, a figura dominante seria antes a do idiota polivalente, ou idiota multiusos. Além de costumar achar-se graça a si mesmo, na exacta proporção em que lha falta, tem ideias sobre tudo. A religião, por exemplo, reduz-se a uma inexplicável tara do passado que é não só possível como urgente extirpar. Ao mesmo tempo, ama a ciência com um amor filial. Só que, tal como não percebe, completamente destituído de imaginação como é, a religião, também tudo ignora sobre a ciência. Não apenas nos seus detalhes, o que é pouco importante, mas no seu enraizamento histórico, na sua dimensão e projecto. A bem dizer, a ciência não lhe interessa para nada. É um símbolo, apenas um símbolo, do que crê ser a desejável ruptura total com o passado. É um supersticioso da ciência, ou melhor dizendo, de um ídolo dotado de poderes mágicos ao qual nada corresponde na realidade.
O que vale para a religião e a ciência vale igualmente, como não poderia deixar de valer, para a sociedade. A sociedade, para o idiota polivalente, é uma superfície lisa onde todas as diferenças não apenas são artificiais (como, em certa medida, de  facto o são), mas igualmente elimináveis da primeira à última. Dito por outras palavras, é possível aos seus olhos as sociedades viverem numa espécie de assimbolia generalizada. Mais do que possível é desejável. E, mais que desejável, tal é o resultado necessário do progresso em direcção ao Bem. Ora, é certamente verdade que uma sociedade que viva em perpétuo estado de hiper-simbolia, onde todas as diferenças sejam vistas como naturais e absolutas, é algo próximo do horror, um horror que desgraçadamente foi mais a regra do que a excepção na história da humanidade. Mas não é menos verdade que nenhuma sociedade pode viver em permanente estado de assimbolia e de indiferenciação, já que o resultado imediato de tal estado, de um estado em que todas as diferenças no interior da sociedade se esbatem, é a incalculável multiplicação da violência no seu seio. Esta simples constatação é incompreensível ao idiota polivalente.
Tomemos o exemplo das recentes eleições na Suécia (mas muitos outros exemplos, é claro, se poderiam dar). Não há notícia que não mencione o perigo terrível da votação dos “Democratas suecos”, símbolo da extrema-direita. Para o que estou a querer dizer não me interessa o facto de aparentemente o partido ter evoluído, desde os anos oitenta do século passado, em que era francamente racista e nacionalista, para posições muito mais moderadas, evolução que implicou a expulsão de muitos dos seus membros. O que interessa é outra coisa: as razões pelas quais a sua votação aumentou de forma tão estrondosa.
São razões fáceis de perceber, mesmo à distância. Quando o ex-primeiro-ministro Fredrik Reinfeldt, do Partido Moderado, declara em 2015, no contexto do debate sobre as migrações, que os suecos são em si mesmos “desinteressantes” e que as fronteiras são construções “ficcionais”; quando a ministra da Integração, Mona Sahlin, anuncia em 2004 que os suecos invejam os curdos por estes possuírem uma história e uma cultura ricas e unificadoras enquanto os suecos se limitam a apreciar irrelevâncias; quando a secretária parlamentar Lise Bergh responde em 2005, confrontada com a questão de saber se é necessário preservar a cultura sueca: “O que é a cultura sueca? E com isto suponho que respondo à sua pergunta”; quando se vive assim fundo na assimbolia – bom, do que é que se está à espera?
Pesam-se os tempos, ou uma parte das suas faces mais visíveis, e é isto que se encontra. Um mundo assim povoado por idiotas polivalentes, em formidável mergulho na irrealidade, só pode ir por muito mau caminho.
COMENTÁRIOS:
Meio Vazio: Ortega y Gasset dizia que a cultura é o "sistema de ideias vivas a partir das quais cada tempo vive". Neste texto profético, Tunhas colhe bem o que é, cada vez mais, a cultura do Ocidente na actualidade; o solo onde se apoiam as suas idiotas opções.
Sois Trumpa: Um Artigo Medíocre e confuso que acrescenta ruído ao white noise  existente ou seja, é nada, é inócuo e irrelevante para não dizer Burro e aborrecido que nem a referência a Sherloc Holms resolve para pôr a mula a mexer. Eu não quero ser mauzinho nem para o autor nem para os comentadores com todo o direito à opinião, em especial os que acharam "Excelente". Mas eu pergutno. Excelente em quê? Em trivialidades.  O autor andou por onde nos últimos tempos? Esteve hibernado, criogenado ou em coma, foi? Fala de "idiotas polivalentes" e precisa de ir "buscá-los e pescá-los" à Suécia, mas porquê a Suécia? Quando por cá na ETAR temos tanta riqueza em espécies dessa idiotice e dessa a que ele chama eufemisticamente de "polivalente" como se houvesse a do tipo monovalente ou dum sub género qualquer. Ele se acordar e ousar espreitar qualquer postigo mediático ou prostíbulo socialmente merdiático é logo abalroado com toneladas desses cardumes que nem as cagarras conseguem tragar e então se passear juntos das lotas de S Bento e de Belém nem os pastéis de nata se safam se comido after hours.
O Torpor dos Suecos não é diferente do de outros Europeus.
Eduardo Batista: Excelente apontamento! Da minha parte existe uma grande explicação para todos os fenómenos apontados: a cultura feminina de kindergarten. Caracterizada por uma atitude de permissividade, onde tudo é visto e feito “à zona”; de um “não façam nada que alguém ainda se pode aleijar” bem como de uma tendência para tratar todos como se fossem crianças de forma a depois poderem institucionalizar a sociedade, tomando conta dos coitadinhos, dizendo às pessoas o que devem e não devem pensar, gerindo vontades e pondo tudo por igual, em especial esbatendo sexos e agressividades e ambições masculinas. A Suécia é só o país do mundo com a maior cultura feminina entre todos. Seguem-se os outros países nórdicos, Holanda e Portugal. No fundo trata-se de criar um ambiente de aviário, ou de infantário, como queiram, onde as senhoras educadoras e assistentes tomam conta das criancinhas, gente miúda sem presente nem passado e com um futuro que não será feito ali.
Audio Vac -> Eduardo Batista: Concordo plenamente com a questão do papel dos "Jardins de Infância" nas nossas sociedades. Além de estupidificarem as crianças e de lhes incutirem a irresponsabilidade, a falta de respeito, e a ausência de regras que hoje vemos nos jovens adultos (e adultas), há a questão da gestão "feminina" e "masculina", tradicionalmente caracterizadas, no primeiro caso, pela inconsequência e a aplicação circunstancial das regras - ora respeitadas ora ignoradas consoante os casos - e no segundo, quer pelo respeito "militar" pelas regras, hierarquias, e a imobilidade, quer pelas iniciativas "retumbantes", quer conduzam ou não ao fracasso... Temos um exemplo de gestão "feminina" no PS & seus associados e um de gestão "masculina" no Rui Rio... que vai direito a um muro. Quem me dera que fôssemos "polivalentes" como os suecos!
Cisca Impllit -> Audio Vac:  Pena é que não haja uma rede de creches e de jardins de infância para que os casais em idade de terem filhos não possam ver cabalmente essa falta colmatada. Isso é que ajudava o País a não necessitar de jardins de infância para os adultos se entreterem com politiquices e assuntos sociais comezinhos e igualmente prescindir das universidades de verão partidárias!!
Achar que o problema de hoje é do tipo de concepção feminina ou machista da sociedade é igualmente de uma lisura planície indiferenciada!



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