quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Que futuro então?



A crónica de Pacheco Pereira sobre o ensino secundário e o estado do ensino em geral, que intitulou de “As profissões infernais”, suscitou catadupa de intervenções, de professores atentos não só ao texto de PP, mas sobretudo às reacções e opiniões de cada um, o que, naturalmente, estabeleceu diálogo entre os intervenientes, de acordo com as experiências e temperamentos próprios, que me agradou transcrever. Chega-se à conclusão, ao lê-los, de que vivemos hoje, no ensino, numa espécie de floresta emaranhada, em que dificilmente se avança, num mundo de disparate e violência a que os responsáveis ministeriais, propondo normas, em documentação vasta e contínua de um vazio desprezível, fingem ignorar a perversidade de uma educação tosca e desautorizada, que reduz o ensino a uma “profissão infernal”, havendo, contudo, na sociedade, quem condene a classe docente, na ineficácia da sua actuação e no exagero da sua reivindicação salarial. Apetece reler a “Alice no País das Maravilhas”, no paralelo mirífico e absurdo de uma contínua desconstrução para a qual parece que tendemos, imparavelmente.
As profissões infernais
A escola perdeu a sua função e, no meio de tudo, estão professores sitiados no meio de um inferno cheio de hormonas sem regras.
PÚBLICO, 6 de Outubro de 2018,
Para além de outros disparates e fake newsa minha “biografia” na Wikipédia começa com a seguinte frase: “É professor do ensino secundário.Como se sabe, a Wikipédia é um lugar de muita vingança e má-fé e quem a escreveu usa a expressão “professor do ensino secundário” como um mecanismo de desvalorização, porque sabe muito bem de que grau de ensino fui professor, até porque acrescenta mais abaixo “também leccionou no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa e em instituições de ensino particular; nomeadamente na Universidade Autónoma de Lisboa. Ou seja, trata-se de um “professor de ensino secundário” que leccionou na universidade, certamente por grande favor. Como eu não quero saber da minha página da Wikipédia para coisa nenhuma, nunca corrigi nada. Corrijo mais facilmente quando me tratam por professor doutor, que não sou, para não correr o risco de ser incluído na escola Sócrates-Relvas de abuso de classificações académicas.
Se a intenção é usar a expressão “professor do ensino secundário” como classificação pejorativa, estão bem enganados. Fui de facto professor do ensino secundário com muita honra e fiz a diáspora habitual dos professores, dei aulas em Vila Nova de Gaia, Coimbra, Espinho, Boticas e no Porto e aprendi muito mais nesse deambular do que na universidade. Por uma razão muito simples: é que já era então muito mais difícil ser professor do ensino secundário do que universitário. E a realidade é que, quer num quer noutro grau de ensino, as coisas pioraram muito desde esses anos.
Por isso escrevo hoje sobre os professores do ensino secundário, e por extensão sobre todos os professores. Não é pela sua luta sindical, nem por causa das manifestações, nem por nada dessas coisas, embora também seja. É pelo vilipêndio demasiado comum da condição de professor, de ser professor, como se fosse um lugar de comodismo, salários altos, trabalho confortável e nada desgastante. Não estou a falar das escolas e colégios privados que podem escolher quais são os seus estudantes, à força de dinheiro e da facilidade de afastarem quem não querem, estou a falar da escola pública, um pouco por todo o país, mas com maior relevo nos locais mais pobres, onde as famílias estão desestruturadas, onde a violência é endémica, onde há gangues e bullying como regra, onde tudo é precoce e nada é maduro.
É que o problema não é o dos adolescentes de hoje, é também o dos pais dos adolescentes de hoje, parte deles também professores, normalmente os mais hostis aos seus colegas. O problema é uma sociedade que deixou todos os problemas, de raça, de exclusão, de pobreza, de marginalidade, de droga para a escola e na escola para os professores. As famílias demitem-se e acham que é a escola que lhes deve socializar os filhos com um mínimo de “educação” e, como isso, não acontece atiram-se contra os professores. Não é preciso ir mais longe do que a absurda prática de deixar levar telemóveis para as aulas, sabendo-se como se sabe que não há qualquer utilidade no seu uso, e que servem apenas para uma nova forma de se estar “agarrado”. A completa falta de qualquer autoridade nas escolas torna-as um falanstério de ruídos, perda de atenção, violação da privacidade e crime, em que o comodismo dos pais, e a sua idêntica falta de autoridade, isola a função de ensinar de qualquer utilidade social. A escola perdeu a sua função e, no meio de tudo, estão professores sitiados no meio de um inferno cheio de hormonas sem regras. Não admira que seja das profissões que mais frequentam psiquiatras e psicólogos e que ardem mais depressa do que o pavio de uma vela curta. Venham pois hipocritamente atacar os professores, esses preguiçosos privilegiados.
Uma questão interessante de discutir em democracia é a de saber que critérios devem existir para pagar salários mais elevados e se um dos fundamentais não é a dificuldade no exercício da profissão. Se um homem do lixo, que faz um trabalho que ninguém quer, se um mineiro, que tem um trabalho duríssimo, não deveriam ganhar muito mais do que um burocrata ou mesmo um trabalhador qualificado ou um gerente bancário ou um técnico de informática? E carregar sacos e caixas de cerveja, ou passar o dia a abrir valas debaixo de um sol impiedoso nas ruas da cidade? A resposta habitual é que as qualificações significam “valor” e produtividade, e é verdade. Mas devem esses serem os critérios principais na atribuição de um “valor” no salário? O “valor” económico deve sobrepor-se à “justiça” social? Não é uma questão fácil de responder, mas merece ser discutida. E é por isso que eu nunca alinho nessa lenda de que os professores são uns privilegiados e que não merecem o parco salário que ganham. Experimentem ir para Almada ou para Campanhã ou para o Seixal ou para Sacavém ou para Setúbal dar aulas a alunos e alunas de 13, 14, 15, 16, 17, 18 anos...
COMENTÁRIOS:
marina.carreiras, 07.10.2018 : Muito obrigada pela crueza, pela verdade das suas palavras. Creio que todos os meus colegas se identificam com aquilo que escreveu. Bem-haja. Mcumps, MC
Maria Moreira, 07.10.2018 Parabéns PP, como sempre certeiro, rigoroso, acutilante, desassombrado e oportuno. Não os deixe instalarem-se na sua farsa de homens de bem. Exponha o desprezo que mal disfarçam pela ilustração, pelo conhecimento e pelos seus agentes, muitos políticos são homens de acção porque não tiveram unhas para a teoria. Ninguém se questiona por que razão hoje não há Vergílios Ferreiras e Rómulos de Carvalho, professores do ensino secundário nas escolas portuguesas. Tal como outros nobres comentadores da nossa praça, não os deixe dormir o sono dos justos. Muito me honra que tenha feito parte da nossa refrega.
j sousa,  Portugal 07.10.2018 : Infelizmente a nobre e valiosa profissão de professor tem-se tornado, em tantos casos, infernal, pela incapacidade de significativas franjas da sociedade, em valorizar a importância da Escola na formação das gerações futuras. A Escola deveria ter nos encarregados de educação os seus principais aliados e no Ministério o seu principal promotor e defensor. Mas não é assim em tantos casos e há tantos anos. Com o envelhecimento e desvalorização da classe dos professores, caminhamos para o sério risco de uma fractura na continuidade de um ensino público preparado para os desafios do século XXI.
Maria Moreira, 07.10.2018 O desprezo manifestado, de forma implícita ou explícita, pela classe política em relação ao conhecimento e aos seus agentes, é mimetizado por parte da população portuguesa, que mantém uma relação intergeracional difícil com a escola, fruto da alta taxa de analfabetismo vigente em Portugal antes do 25 de abril e devido à baixa escolaridade. Esta situação demora várias gerações a ser normalizada. A massificação do ensino e o declínio no grau de exigência aportou a desvalorização e a banalização da escola. Daí o recurso à aquisição de títulos, sem má consciência por parte da classe política.
Suspicious Minds, Graceland, 06.10.2018:Vivi durante umas décadas no Minho profundo, onde o estado sempre foi pária, e onde coisas tão básicas como o domínio da língua são um mito. Junte-se a isso a sub-cultura dominante, e temos o caldo perfeito para que a vida de qualquer professor se torne num autêntico inferno. Tenho muitos amigos professores, e não lhes invejo a "sorte". São os meus heróis!
Licinio Castro, 06.10.2018: Lamento dizer isto, mas é o que eu sinto. A sociedade está em completa desagregação. O 25 de Abril representou uma esperança de mudança para melhor, mas estamos a estragar tudo.
Patrícia Carreira, 06.10.2018 : Não estamos nada, isso é o típico pessimismo português. Já dizia a minha avó que nasceu em 1915 e morreu aos 100 anos, tendo por isso vivido de tudo: “nunca isto esteve tão bom” ??
Jose 06.10.2018 18:46: Caro Licínio Castro consulte os documentos para ter uma opinião fundamentada sobre a sociedade portuguesa antes do 25 de Abril. Depois de documentado verificará que escreveu um grotesco disparate.
Tiago, 06.10.2018 22:17: Diria que negar o sentimento de alguém, dizendo que é um disparate, demonstra mente fechada e indisposição para ouvir. Eu sinto algo semelhante. Claro que cada caso é um caso, cada vida tem experiências e por isso visões diferentes, mas não é difícil observar que as relações sociais estão mudando e tendem a ser bem mais líquidas, superficiais e frágeis. As caricaturas que retratam famílias sentadas lado a lado, cada uma no seu telemóvel não aparecem por acaso. Enquanto antes as amizades se contavam pelos dedos, hoje coleccionam-se "amizades" às centenas, mas não se conhecem realmente as pessoas, apenas a bela fachada que compartilham. A Patrícia e o Jose apontam para a evolução individual e material da sociedade desde o 25 de abril. O Licínio aponta para o enfraquecer da argamassa social.
José Fragoso Santos, 06.10.2018 : Entristece-me que o Pacheco Pereira se tenha deixado transformar numa espécie de velho do Restelo versão Z, cheio de amargura e ideias feitas. É impossível encontrar um artigo baseado em dados concretos, estatísticas etc. Os números, não importa de que fonte, são sempre massajados; os números são para os burocratas das folhas de Excel; o que importa é a percepção vivida da realidade "objectiva". Tudo num tom de superioridade moral que enjoa. Este artigo é paradigmático. Sabemos que o salário médio de um prof. do ensino secundário está muito acima: do salário médio nacional, do salário médio dos seus congéneres europeus (ajustado ao poder de compra), e do salário médio dos professores do ensino privado. Mas o que é isso importa? Obviamente, nada...
José Carvalho: 06.10.2018:  Nada interessa o que José Fragoso diz. Motivo? Não sabe praticamente nada do assunto, apenas repete o que algum mentiroso "oficial" debitou. O que lhe importa a si a verdade? Nada! Obviamente...
José Fragoso Santos, 07.10.2018 O José Carvalho recorre ao insulto. Segue a escola do Pacheco Pereira, os dados que não lhes convêm são falsos. Mas deixo-lhe algumas fontes. Só fiz uma pesquisa rápida. - O salário médio nacional é 925 euros (PORDATA). O salário de um prof do ensino secundário é no início de carreira 1200 euros e ao fim de 15 anos 1900 euros (página da educação). - Segundo dados da página da educação, o salário de um prof do ensino secundário português é equivalente ao salário de um prof do ensino secundário francês se o ajustarmos ao poder de compra (pela tabela da OCDE). Agora, em França, onde eu vivi e cujo sistema conheço bem, o concurso para prof do ensino secundário é uma prova extremamente exigente com uma taxa de insucesso gigante. Em Portugal, o acesso à profissão é o que se sabe.
jafundo, 07.10.2018. Também está a inventar números e a comparar o incomparável sem citar fontes... tonto.
José Fragoso Santos, 07.10.2018: As fontes estão entre parêntesis. Se não sabe obter os links a partir dos nomes, usando o google, desejo-lhe sorte na vida. Vai precisar. Relativamente a comparar o incomparável. Se estou a usar o índice PPP da OCDE para comparar os salários? Que quer mais que faça? Já que a metodologia da OCDE não lhe serve, o que é que tem a propor?
Tiago, 07.10.2018: José, 1.200 euros mal pagam um T0 em Lisboa, de acordo com uma notícia aqui publicada. Daqui a pouco os professores têm de morar na rua para trabalhar. Água, energia, gás, comida, transporte, roupa, material... Nem sei como alguém sobrevive com tão pouco, a menos que viva dependendo de mais alguém. Sendo que ainda é uma profissão extremamente desgastante. Eu dei aulas durante um ano numa universidade, um dia por semana e chegava em casa exausto. Nem consigo imaginar fazê-lo diariamente, numa escola secundária, de adolescentes com hormónios lá no alto, numa época onde os pais mal educam os filhos. Jogue o Índice PPP da OCDE no lixo e vá dar aulas já que é tão bom.
José Fragoso Santos, 07.10.2018: Oh Tiago... Concordo que 1200 não chega para viver com dignidade em Lisboa. Não precisamos de viver todos no centro (mas isso é outra conversa). E o que dizer de um enfermeiro que ganha 700 euros num lar (há muitos, informe-se), ou de um prof de um colégio privado a ganhar a recibos muito frequentemente menos de 1000 euros, ou de um empregado de mesa num café... Há tantos casos e todos com vidas tão difíceis porque é que este caso é diferente. Em média um trabalhador português ganha 925 euros. Em que país é que vc vive? E, olhe, tem azar porque eu dou aulas numa instituição de ensino superior em Londres onde sou avaliado todos os anos pelo meu manager e pelos alunos. Tenho um contrato a termo e o meu salário não me permite alugar casa em Londres. Paciência, alugo um quarto.
Tiago, 07.10.2018 : José, o que ouço quando leio comentários como o que fez é "como eu não estou disposto a lutar pela minha dignidade e direitos básicos, que incluem o direito de constituir família (que vivendo num quarto certamente não o poderá fazer), opto então por questionar aqueles que ainda estão um pouco melhor que eu." Impressionante como a grande maioria de pessoas hoje se posiciona na urna contra ideologias comunistas, pela ideia que equivale a igualar a riqueza por baixo, mas depois não hesitam em atacar quem ganha apenas um pouco melhor, mas claramente insuficiente para uma vida salutar, usando como padrão sua própria pobreza ou a de outros. Me desculpe, mas isso é juntar à pobreza material a pobreza de espírito. Se dá aulas, deveria era então saber e defender que merece melhor. Boa sorte.
Maria Moreira. 07.10.2018: Não sabe nada. Começa por dizer que os números são massajados e depois contradiz-se e retorce para concluir o que lhe convém: o salário é bom porque dizem as boas línguas que sim e convém acreditar nelas, porque o trabalho do professor é irrelevante na sua escala de avaliação e porque lhe convém juntar-se ao coro de descrédito e difamações aos professores. Experimente subir a um arranha céus numa grande cidade, tudo o que vê é obra de professores, a cultura, a civilização é resultado do trabalho dos professores. Os autodidactas são uma gota no oceano e os robôs transmissores do conhecimento ainda não existem.
Eduardo Parrança, Ponta Delgada07.10.2018: Essa história de que os professores ganham "balúrdios" parece quase uma anedota se não fosse tragicamente injusto. Ganham muito? Por comparação ao ordenado mínimo? Pois, estranho seria uma profissão desgastante destas ter um salário assim. Há pessoas que ganham o ordenado mínimo e têm profissões desgastantes. Sem dúvida. Mas não falemos das especificidades de cada uma das profissões. Falemos da questão de ganharem os tais balúrdios. É totalmente falso, pelo contrário, ganham o mesmo salário durante anos a fio. Eu dou o meu exemplo, ganho praticamente o mesmo desde 2000... Cada vez é mais complexo ser-se professor, com um salário do passado então, ainda pior. Hoje em dia toda a gente gosta de falar sobre aquilo que desconhece.
Espectro, Matosinhos 06.10.2018: O problema dos professores são eles próprios, isto é, os maus profs, que os há aos milhares e que se opõem a que seja reconhecido o mérito e que se progrida na carreira tendo em conta essencialmente esse mesmo mérito, isto é, mais uma vez, que são encarniçadamente contra a avaliação do desempenho profissional. Tirando isso, é óbvio que a função dos profs é fundamental, dificílima e desgastante - e sendo-o, como escreve PP (e não disse nada de novo e que não tenha sido repetido até à náusea) cada vez mais. Mas na verdade, no meio de metade altamente dedicada e competente, existe outra metade podre, que pouco faz, absentista, ignorante e que não se valoriza durante a carreira. Por isso a reforma da ministra Maria de Lurdes (governo Sócrates) era tão importante e foi tão combatida! LOL
José Fragoso Santos, 07.10.2018:  Caro Espectro, excelente comentário. Lúcido sem ser acintoso. Assim vale a pena !
jafundo, 07.10.2018: Quais são os bons, quais são os maus, como se mede? Mas bem medido, com base científica, não uma cópia de um qualquer modelo corrupto que só funciona aparentemente.
Maria Moreira, 07.10.2018 A reforma de MLR é a grande responsável pela mediocridade nas escolas. O seu modelo de avaliação de professores foi arquitectado de forma medíocre e só valoriza os medíocres. Quem não domina a área fica refém da imagem de "dama de ferro" e pensa que o que arde cura e o que aperta segura, mas não, o seu modelo já foi caracterizado, e bem, como humanamente desprezível, por especialistas, eu diria mais, é um modelo tecnicamente incompetente e desastroso nos seus resultados. Ao contrário do que pensa, os professores primeiro assustaram-se, contestaram e ficaram incrédulos com a possibilidade daquela aberração entrar em vigor, mas logo que entrou, os "fura-vidas" adaptaram-se muito bem e prosperaram na sua sanha medíocre e videirinha, arrastando a escola para a sua mediocridade.


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