segunda-feira, 1 de outubro de 2018

«Desculpem se me enganei»


A expressão do título é retirada de uma espécie de anedota que o meu pai contava, nos momentos retirados à circunspecção, acerca do colega ou talvez antes do frequentador de taberna, que, ao chegar ao local de trabalho exclamava alto e bom som, Batanete malandro dos tempos antigos: “Bom dia aí, ó gente honrada! Desculpem se me enganei!” E o meu pai ria, e nós ríamos com ele, e agora serve no anedotário da nossa querela diária, desta vez incidindo sobre a pesporrência da chamada gente culta, de que trata o artigo de José Pacheco Pereira a propósito de uma exposição de fotografias no Museu de Serralves que levou à demissão do antigo director do Museu, que quis expor tudo, sem ressalvas, ao contrário da Administração que impunha ressalvas na exposição das fotografias do  fotógrafo Robert Mapplethorpe. Pacheco Pereira é homem contido, nestas coisas da decência, segundo os velhos parâmetros do pudor, o episódio de Serralves vem referido agora na Internet. Pacheco Pereira informa sobre os seus pontos de vista, não só a respeito da salvaguarda da moral pública, e sobretudo da dos mais jovens, como a respeito da presunção das camadas intelectuais nestes benditos tempos de sabedoria conjugada com o profundo vínculo da liberdade total, bestiais que somos. Pacheco Pereira informa, com o saber de sempre, alguns comentadores o apreciam. Eu parafraseio a anedota do meu pai, na esteira de um qualquer censor ou mentor  esclarecido ; “Bom dia aí, ó gente culta. Desculpem se me enganei."

A arrogância das cliques culturais
Se pensam que o mundo da política é o protótipo de intriga, então, se conhecerem melhor os meios “culturais”, tudo isso empalidece.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 29 de Setembro de 2018            
Eu sou administrador de Serralves pelo que tenho um conflito de interesses em falar aqui sobre o “caso” da demissão do antigo director do Museu de Serralves e curador da exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe que inaugurou na quinta-feira no Porto. O Director ter-se-á sentido desautorizado. (duas funções diferentes e com regras diferentes), que todos podem (e devem) ver para não falarem de cor. Não falarei do “caso” por muita vontade que tinha (e tenho) de o fazer.
Mas posso falar dos contorni, expressão italiana para designar os “acompanhamentos” do prato principal — porque os contorni são muito reveladores de algo que não é de agora: a insuportável presunção e arrogância de muitos “homens e mulheres da cultura”, “artistas” e “intelectuais”, e jornalistas “culturais” que face a eles têm todas as complacências e são incapazes de um reporting que siga as regras de distanciamento e equilíbrio da profissão. Todos acham que só eles podem falar da “cultura” e da “arte” e sem ser eles só há ignorantes, boçais, provincianos, censores, que violam uma frase bíblica que serviu de mote para vários quadros renascentistas: “Noli me tangere.” (Que ninguém me toque.) Querem citações eruditas, também sei fazer.Na escolha dos adjectivos gentis com que estas cliques me classificaram nos últimos dias eu não quis usar todos no parágrafo anterior. E não quis porque sou saloio (aliás, seria mais rigoroso “tripeiro”), provinciano, pacóvio, não tenho “mundo”, não colecciono arte, só papéis efémeros, tenho a cabeça na Idade Média, sou homofóbico e detesto ver expostas as partes anatómicas do corpo humano como pénis e vaginas, ânus e bocas, arrepio-me com correntes, couro e látex, e sou submisso à ordem moral estabelecida, dominado pela Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Muito bem, estamos entendidos, é melhor deixarem de ler o resto do artigo, porque vem de alguém particularmente desclassificado para tratar destas coisas da “cultura”.
Sucede que uma das coisas piores deste mundo é esta arrogância, a que se associa muita inveja e ressentimento, que é, como se sabe, uma combinação muito poderosa. E, se pensam que o mundo da política é o protótipo de intriga, facas nas costas, má-língua, pequenas cortes que se digladiam e geral mediocridade, então, se conhecerem melhor os meios “culturais”, tudo isso empalidece face às práticas dominantes nas casas dessas cliques. Seria injusto dizer que não há ninguém que escape, mas são a excepção à regra.
(Legenda: Leaf, uma das 20 obras “censuradas” na exposição de Serralves. Não quero aqui incomodar o PÚBLICO escolhendo uma das fotografias que estão expostas na sala reservada, e que não são nem torsos nus, mesmo com sexo, nem pénis erectos fotografados a confortável distância)
Sou defensor de um “Estado mínimo” nas áreas em que as opções de financiamento derivam de opções de gosto, e gostaria de ver o Estado (e os governos) bem longe dessas opções, como acontece em particular na tradição anglo-saxónica. Nunca fui um defensor da política Malraux-Lang, para transformar (como governos e muito autarcas sabem) a cultura como instrumento intocável de propaganda nacional, política e local. Eles sabem bem usar o noli me tangere, para fazer muita coisa sem que haja escrutínio e crítica.
Eu, por estranho que pareça, até sou defensor do “1% para a Cultura, só que talvez não o gastasse nos mesmos sítios e nas mesmas coisas, e sou de há muito defensor de uma política, reaccionária sem dúvida, sobre a concentração dos recursos escassos na salvaguarda do nosso património artístico e cultural, num país que tem muito património construído a “desconstruir-se”, faz pouca arqueologia, e não tem sequer um corpus da sua grande literatura disponível quer em edições críticas, quer em edições populares de qualidade e dá pouca atenção ao ensino artístico, quer nas escolas de Arte, Design e Arquitectura, quer nos conservatórios.
Parte desses 1% devem também ir para as indústrias culturais, que ganhariam em ser tratadas também pelo seu valor económico. E também para instituições, pela sua reputação internacional (e por muito que custe a muitos só Serralves tem e não é fácil consegui-lo) e pelo seu trabalho de colocar à disposição dos portugueses o melhor da arte internacional contemporânea, pela salvaguarda desse mesmo património e pelo efectivo esforço pela democratização da cultura não só no Porto, mas numa dimensão crescentemente nacional. Acresce que Serralves também não é o melhor exemplo do “1% para a Cultura”, porque é uma instituição única em Portugal pela parte do seu financiamento pela sociedade civil. Não é por acaso que é uma instituição do Porto, onde as elites empresariais desde antes do 25 de Abril tinham um genuíno interesse em apoiar a cultura da cidade, como mostram os exemplos da Árvore, do Teatro Experimental, de encomendas a arquitectos no Porto, que tem múltiplos exemplos de construção moderna pagos por privados, enquanto em Lisboa a maioria das encomendas eram estatais e privilegiavam os arquitectos próximos do regime. É, o Porto é diferente, como Serralves é diferente.
A arrogância cultural dos últimos dias veio ao de cima, mas está sempre lá. É, disfarçadamente, um conflito por recursos e território que ganhava em ser enunciado com clareza, porque isso permitia uma discussão mais séria, mas para o fazer a jactância cultural não serve, nem o toque a rebate, quando sentem o cheiro a sangue. Mas serve para intimidar muita gente que devia falar, mas que tem medo de perder a medalha de bom comportamento “cultural”, de passarem também eles próprios por saloios. Sucede que eu não quero fazer parte desse clube covarde e para mim vem de carrinho.
COMENTÁRIOS:
Alvaro C. Pereira: O debate sobre algumas coisas aqui reportadas é fundamental! Assim: todos sabemos que há uma 'narrativa' (como gosto desta palavra!) de uma 'casta' (outra!!!) que se supõe dono da liberdade, da cultura e da verdade! É esta casta que nos ensina o que é arte, a forma em que se deve ou não ser livre (que contradição!), as pessoas e lugares onde existe mundo ('ter mundo', outra expressão que eu adoro!). Ler ou ouvir um 'personagem do campo das artes' (outra...) a chamar um museu de provinciano ou pacóvio, só por ser do Porto, resumo tudo! É salutar que surjam pessoas, como este Pacheco Pereira, que não tenham medo de dizer por escrito aquilo que dizem em voz alta entre salas! Parece que temos medo de assumir a discordância dos fazedores de opinião supostamente contemporâneos e livres.
António Filipino: Bom artigo. Devem combater-se todas as ditaduras, incluindo as ditaduras do gosto que certas cliques culturais querem impôr.
ana cristina, Lisboa et Orbi: é preciso 2 para dançar o tango mas a administração é a responsável máxima por criar um ambiente positivo à volta e dentro do museu. dentro: escolhendo o perfil certo para director e mantendo com a equipa de direcção um bom relacionamento. e fora do museu: criando bom ambiente em todos os quadrantes: os empresários, o município, "as cliques culturais", o povão.....é preciso saber agregar. se não é capaz de agregar, torna-se apenas mais uma das cliques culturais arrogantes. Independentemente de quem terá razão nesta intriga, a administração falhou no mais importante da sua missão. Agregar.
Paulo Valente: Muito boa análise! Sem dúvida uma tela magnífica sobre o estado da cultura em Portugal que infelizmente é elitista, cheia de soberba e assenta numa tradição de fazer currículo, a ver que chama mais audiências. Sem dúvida a arte da presunção no seu melhor!
Célio Carreira, 29.09.2018: Texto bem esgalhado, o primeiro, dos muitos que já saíram sobre este assunto, a definir bem o pensamento livre do autor, no caso vertente a vincar uma clara oposição às elites culturais e à sua pesporrência. Subscrevo na totalidade a opinião do JPP acerca das referidas elites, que com frequência nos querem impingir toda a porcaria como sendo arte. Lembro, a propósito, a velha história conhecida por O Rei Vai Nu, quando uma criança, na sua inocência, desmascarou a hipocrisia e a ignorância acerca da pretensa vestimenta de um rei, que ia completamente despido num cortejo, mas a quem todos aplaudiam a sumptuosidade das vestes, apenas porque alguém (no caso, dois alfaiates espertalhões) lhes tinha incutido essa ideia.
Tiago, 29.09.2018 A história dos dois alfaiates tem raízes antigas e virou um "negócio da china". Para quem lê inglês, recomendo a leitura "The Self-Defeating Philosophy of Mayavada". O título reflete o meu sentimento quanto às suas consequências. No Brasil, a polarização leva um país à beira do caos. Em Portugal, que se fundou e viveu grande parte de sua história nas agruras da guerra e - talvez por isso - onde o povo é mais maduro e brando, cresce a abstenção e falece a cidadania activa. A ilusão é mantida, mas mesmo sem ciência o povo discerne. Aos 75 anos, minha mãe diz das notícias "só tretas". Nas paredes de Lisboa, jovens expressam seu desencanto em 'tags'. No Brasil, o jardim arde. Em Portugal definha e apodrece. Nos EUA e norte da Europa vai mantendo-se, mas decai pela insustentabilidade da ilusão.
Em todo o mundo, nascem pequenos canteiros afastados da ilusão, mas até estes sofrem por crescer num entorno tóxico e viciante. Muitos hesitam largar o velho mundo por novos não consolidados, onde se faz necessário dar alguns passos atrás. Novos mundos nascem, mas com os recém-chegados vêm também padrões mentais e hábitos intoxicantes do velho, onde se promove a divisão e a competição. Acredita-se na colaboração, mas não foram ensinados a ouvir, antes a saber mais e competir. Numa comunidade muito aberta, mas sem direcção, vence a desordem. Numa impositiva demais ou que reflicta um padrão de religiosidade antiga, jovens se afastam e a população envelhece. Numa mais aberta à expressão individual, mas com limites e objectivos claros e moderada direcção, floresce a colaboração e a comunidade.
Se realmente existe desejo de renovar o velho mundo, ao invés de o levar à ruptura, acredito ser necessário e urgente rever os discursos e métodos que promovem a divisão e polarização. Como falei durante o debate sobre Mapplethorpe, se queremos mudar a Arte, se queremos que ela transmita mais beleza, mude-se a vida, tornando-a mais bela. Se queremos moralidade, promova-se o bom-senso e a moralidade virá como consequência. Se precisamos de austeridade, garanta-se o mínimo e promovam-se os momentos e coisas simples da vida. E se amanhã cair o céu e tudo isto não passar de um exercício aparentemente "inútil", pelo menos cairemos com a humanidade intacta e plantaremos sementes para quem sobreviver e ficar. Eu, pelo menos, vejo assim.
AndradeQB, Porto 29.09.2018 A jactância só existe quando o nosso trabalho/rendimento é assegurado sem uma ligação reconhecida e directa de quem o paga ter poder efectivo de influenciar quanto e como se paga. Pintores, escritores, arquitectos e todos que tiveram que convencer clientes a pagar-lhes o seu trabalho, podem manifestar presunção, vaidade ou até arrogância, mas tendo sempre algum suporte, mesmo que desproporcionado, no conteúdo do seu trabalho. No caso, que é de certo modo também o do autor do artigo, mas fundamentalmente dos que de cultura só podem mostrar os cargos subsidiados por que passaram, a condescendência com que falam, é de facto pura e irritante pesporrência.



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