João Miguel Tavares é corajoso quando argumenta, em propósitos
de uma moral que não receia arrostar contra opiniões contrárias, ainda que do
director do jornal onde trabalha. O ideal democrático sendo a alavanca fulcral
das investidas retóricas destes novos tempos, em todo o caso considero o seu
arrojo prova de verdadeira grandeza de carácter. E, naturalmente, concordo com
as suas opiniões a respeito da imaturidade do país que o segundo texto, de José Manuel Fernandes - «Tanto
faz, logo se vê, que se lixe» - vem
confirmar, nas pessoas dos seus representantes mores. Não, não há já correcção
possível, a nossa escola é bem outra, mudanças para quê, Maria vai com as
outras, já Sá de Miranda lembrava, na sua écloga Basto, a conveniência de
sermos compinchas – Todos ao molho e fé em Deus.
I - A minha intolerável arrogância moral
A permanência de Joana Marques Vidal era
fundamental porque as instituições portuguesas são más e permeáveis ao poder.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 25 DE
SETEMBRO DE 2018
Em reacção à nomeação da nova
procuradora-geral da República, o director do PÚBLICO escreveu um artigo intitulado “O pseudogolpe na procuradoria”,
onde defende que a substituição de Joana Marques Vidal “é uma opção normal
(embora discutível)”, e que quem a considera “uma cedência aos lobbies de
poderosos ou à venalidade dos políticos” denota “uma arrogância moral
intolerável”, e promove “uma menorização inaceitável do corpo do Ministério
Público”. Manuel Carvalho não está sozinho. Neste jornal, nomes como Ana Sá Lopes, São José Almeida ou Vicente Jorge Silva defenderam posições
próximas, declarando que o processo de substituição foi apenas uma manifestação
de “normalidade democrática” (título do artigo de São José Almeida).
Vale a pena polemizar com estes
textos porque dá-se o caso raro de o meu profundo desacordo com Manuel
Carvalho ou São José Almeida não estar no desenrolar da sua argumentação, mas
sim nas premissas que a sustentam. Para
mim, a chamada “normalidade democrática” é muito mais uma maquilhagem
superficial do que uma manifestação profunda da cultura política do país. E quando Manuel Carvalho afirma que
“Portugal é, apesar de tudo, um país dotado de aparelhos institucionais
suficientemente maduros para dispensarem o papel do caudilho ou dos salvadores
da pátria”, eu certamente concordo com ele na dispensa de caudilhos e de
salvadores da pátria, mas discordo profundamente que exista um Portugal “dotado
de aparelhos institucionais suficientemente maduros”. Esse Portugal não existe,
e é exactamente por não existir que a recondução de Joana Marques Vidal era tão
importante – ela estava a contribuir, provavelmente como nenhuma outra figura
do Estado português, para a construção dessa maturidade.
A razão pela qual falo
obsessivamente em José Sócrates não é por ele ter roubado dez, 20 ou 50
milhões. No campeonato dos desvios de dinheiro haverá com certeza outros
maiores do que ele. Sócrates é muito importante – e é esse o aspecto em que ele
é único, não havendo comparação possível com outro político, à direita ou à
esquerda – porque procurou alcançar o controlo total dos sectores executivo,
legislativo, judicial, económico e mediático, extravasando em muito os poderes
que lhe eram constitucionalmente atribuídos. O atentado ao Estado de Direito
existiu. Mesmo. Os seus anos de governo foram a construção de um poder
desmesurado à frente dos nossos olhos. E o pior não foi ele ter-se atrevido e, em boa parte, conseguido – o
pior foi que o país deixou. As instituições cederam. O Portugal do respeitinho,
cobardolas e medroso, reapareceu. A maturidade de que Manuel Carvalho fala no
seu editorial não existiu entre 2005 e 2011. E nada garante que exista em 2018.
As pessoas olham para Donald
Trump e dizem: “Como é possível os Estados Unidos terem eleito um homem
daqueles?” Mas os Estados Unidos vão sobreviver a Trump porque o seu sistema
político foi construído para resistir a energúmenos. Os bons sistemas não são
aqueles que impedem maus líderes de ser eleitos, mas aqueles que possibilitam
que as instituições funcionem mesmo que a sua eleição ocorra. Ora, em Portugal
elas deixaram de funcionar decentemente em 2005. A permanência de Joana Marques Vidal era fundamental porque as
instituições portuguesas são más e permeáveis ao poder, e a independência de
que ela deu mostras é uma qualidade muito rara. É isto uma “arrogância moral
intolerável”? Não, caro Manuel. É simples prudência. E um bocadinho de memória.
II- GOVERNO Tanto faz, logo se vê, que se
lixe… /premium
OBSERVADOR, 26/9/2018
Dizem que é um modo de governar, e é o modo de Costa: baseia-se no
"logo se vê". No "tanto faz". É esse o segredo
da sua habilidade. Mas é também o veneno
que está a dar cabo da Administração Pública.
Lisboa, Hospital de Santa Maria, Setembro de 2018. Uma jovem levada
para a urgência pelos bombeiros depois de um acidente de viação e de uma perda
de consciência, com suspeita de traumatismo craniano, está três horas à espera
para ser vista por um médico. Porque só há um médico nessa urgência para todos
os doentes traumatizados. Porque esse médico anda a empurrar macas de doentes
que chegaram não acompanhados pois não estão lá auxiliares para o fazerem.
A história é pública porque a mãe da jovem é jornalista e
escreveu uma carta aberta ao ministro.
Mas a história não é única, porventura nem será incomum. Recentemente, num
outro hospital central de Lisboa, também depois de um acidente de viação, uma
idosa esteve longas, longuíssimas horas à espera que lhe fizessem exames
urgentes. Como é que eu sei que os exames eram urgentes? Porque estava
acompanhada por duas filhas médicas – e médicas do SNS – a cujos apelos ninguém
ligava. Pior: quando desesperadas começaram a tratar de transferir a mãe para
um hospital privado (porque podiam fazê-lo, a esmagadora maioria dos
portugueses não pode), começaram a ser tratadas com desdém.
É difícil explicar como se chega
a este ponto no país onde tudo corre bem, onde temos os
melhores profissionais do mundo em tudo e onde histórias como
estas são sempre tratadas como episódios apresentados fora de contexto. Mas não
são. No hospital público de uma daquelas médicas – um dos mais importantes da
Grande Lisboa – há muitas macas nos corredores da urgência, e ao mesmo tempo
muitas camas sem utilização em salas fechadas por falta de recursos humanos.
Todos sabem que é assim, todos sabem que o ministro sabe, todos sabem que mesmo
assim nada acontece.
E se é assim, se eles sabem e nada fazem, se tanto faz, até onde vai
o seu brio profissional, a sua capacidade esforço, a sua dedicação? Se um dia
eu, médico, tenho de andar a empurrar macas em vez de estar a ver doentes que
esperam há horas, será que depois prolongo um pouco mais o meu horário sem
qualquer compensação? Ou faço como no outro hospital, espero que alguém desista
e vá tratar-se a um privado?
Talvez seja apenas a minha experiência pessoal, talvez apenas a das
pessoas com quem me relaciono e que cada vez me contam mais histórias de
serviços públicos onde o atendimento se tornou um desespero, onde, pior do que
isso, parece ser absolutamente indiferente aos funcionários as horas sem fim
que ali se está, as vezes que ali se regressa sem conseguir resolver os
assuntos. Enquanto por aí se diz que as vacas voam, por ali disso não há
sinais, bem pelo contrário.
De novo, como é que se explica que os funcionários do Estado, que
deviam ser só sorrisos depois das “devoluções” e dos “descongelamentos”, não
dêem afinal sinais de felicidade, senão mesmo de entusiasmo e renovada
dedicação à maioria dos seus amores? Porque mostram ora má cara ora falta de
brio?
Tenho uma explicação benévola e outra nada benévola – e temo que esta
segunda seja bem mais verdadeira do que a primeira.
A explicação benévola tem apenas a ver com o espírito dos tempos.
Passou a crise, passou o tempo em que a todos se pedia um sacrifício, um
esforço suplementar, um cerrar dos dentes, a todos nos dizem que agora é tempo
de descomprimir. Tendo passado o tempo em que “a crise” levava a que se
compreendesse o esforço extra, a verdade é que se esqueceram de acrescentar
que, não havendo mais gente nos serviços, e havendo menos horas de serviço (as
famosas 35 horas), no fim do dia alguma coisa ficaria por fazer.
Isso nota-se mais em todos os serviços que têm interfaces directos com
os cidadãos, sendo o mais crítico o sector da saúde, o mais vasto o da
educação. E o mal-estar agrava-se quando se vai percebendo que a
geringonça, por inabilidade, oportunismo ou simples má comunicação, alimentou
expectativas nos funcionários do Estado que não vai cumprir. O caso mais
evidente é o dos professores (independentemente do que pensemos das suas
reivindicações), mas um pouco por todo o lado o “optimismo irritante” do
primeiro-ministro criou a percepção, por exemplo, de que chegar ao défice zero
não passaria à frente, como vai passar, de manter os salários congelados.
Mesmo assim não será apenas, nem
sobretudo, por defraudar expectativas que se criou este clima degradado de um
certo deixa andar que se respira em tantos serviços. Ele decorre, antes do
mais, do segredo da tão mirabolante e elogiada “habilidade” de António Costa
que, no fundo, não é mais do que um “logo se vê”. Esse “logo se vê” é o ponto
de equilíbrio possível em cada momento, um ponto de equilíbrio que não é
determinado por um rumo, um destino, uma visão, apenas por ser o que permite
sustentar a geringonça, com ela o governo e assim o poder.
Para garantir as 35 horas nos hospitais vamos ter de abdicar de
algumas camas nas urgências? Que se lixe, idealmente ninguém vê, ninguém nota.
Para conseguirmos os objectivos do défice é preciso cortar no investimento
na ferrovia ao ponto de se começarem a suprimir ligações? Logo se vê, talvez
não seja preciso. E, se for preciso, anunciam-se investimentos futuros.
Para manter a Catarina e a Mortágua em linha é preciso optar entre o
imposto A e o imposto B? Bem vistas as coisas, tanto faz. Um
encostozinho à direita, outro à esquerda, e siga em frente. A coerência
não é coisa que lhe faça perder o sono.O que conta mesmo é ir entretendo o
povo. Portugal, como se sabe, está na moda, e como está na moda já cá se
dava como certa a Agência Europeia do Medicamento. Em Lisboa, claro, que é para
onde os funcionários queriam vir. Mas não. Havia autárquicas e a cidade do
Porto era importante para o PS. Vai daí passa-se a candidatura para o Porto, em
nome da descentralização. Para perder, naturalmente. Confirmada a derrota,
promete-se o Infarmed. Não há estudos? Pois não, mas logo se vê. Quando logo se
viu, o Infarmed não foi para o Porto.
Julgam que alguma destas coisas
atrapalha António Costa ou o PS? Nem pensar nisso. Mas é um modo de estar e
governar que vai contaminando – e apodrecendo – o sentido de serviço público.
Tanto faz, logo se vê, que se
lixe…
Afinal amanhã é outro dia, faz
sol e cantam os passarinhos, nós estamos no Governo, o Passos foi-se embora, o
Marcelo faz selfies em vez de Presidências Abertas, que pode um homem pedir
mais?
COMENTÁRIO:
João Lopes: Excelente análise de José Manuel Fernandes! Henrique Raposo no
Expresso diário de 27-09-2018: «Depois de pagar salários, Costa e Centeno não
pagam seringas, carris, medicamentos, papel higiénico, carros, portas, balas.
Como se vê nos hospitais, em Tancos ou em Pedrógão, o Estado de Costa não
consegue dar resposta à realidade para lá da folha salarial que sustenta o
eleitorado do PS… Os hospitais estão em colapso. Os caminhos de ferro
estão em colapso. Armas foram roubadas no exército. Armas foram roubadas na
PSP. Costa preside ao maior colapso do Estado de que há memória, mas nada se
passa. A sua cínica bonacheirice tudo normaliza...E depois? Depois os outros
que resolvam, depois os outros que tomem as decisões difíceis.
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