domingo, 30 de setembro de 2018

Ora, ora!



João Miguel Tavares é corajoso quando argumenta, em propósitos de uma moral que não receia arrostar contra opiniões contrárias, ainda que do director do jornal onde trabalha. O ideal democrático sendo a alavanca fulcral das investidas retóricas destes novos tempos, em todo o caso considero o seu arrojo prova de verdadeira grandeza de carácter. E, naturalmente, concordo com as suas opiniões a respeito da imaturidade do país que o segundo texto, de José Manuel Fernandes - «Tanto faz, logo se vê, que se lixe» - vem confirmar, nas pessoas dos seus representantes mores. Não, não há já correcção possível, a nossa escola é bem outra, mudanças para quê, Maria vai com as outras, já Sá de Miranda lembrava, na sua écloga Basto, a conveniência de sermos compinchas – Todos ao molho e fé em Deus.
I - A minha intolerável arrogância moral
A permanência de Joana Marques Vidal era fundamental porque as instituições portuguesas são más e permeáveis ao poder.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 25 DE SETEMBRO DE 2018
Em reacção à nomeação da nova procuradora-geral da República, o director do PÚBLICO escreveu um artigo intitulado “O pseudogolpe na procuradoria”, onde defende que a substituição de Joana Marques Vidal “é uma opção normal (embora discutível)”, e que quem a considera “uma cedência aos lobbies de poderosos ou à venalidade dos políticos” denota “uma arrogância moral intolerável”, e promove “uma menorização inaceitável do corpo do Ministério Público”. Manuel Carvalho não está sozinho. Neste jornal, nomes como Ana Sá LopesSão José Almeida ou Vicente Jorge Silva defenderam posições próximas, declarando que o processo de substituição foi apenas uma manifestação de “normalidade democrática” (título do artigo de São José Almeida).
Vale a pena polemizar com estes textos porque dá-se o caso raro de o meu profundo desacordo com Manuel Carvalho ou São José Almeida não estar no desenrolar da sua argumentação, mas sim nas premissas que a sustentam. Para mim, a chamada “normalidade democrática” é muito mais uma maquilhagem superficial do que uma manifestação profunda da cultura política do país. E quando Manuel Carvalho afirma que “Portugal é, apesar de tudo, um país dotado de aparelhos institucionais suficientemente maduros para dispensarem o papel do caudilho ou dos salvadores da pátria”, eu certamente concordo com ele na dispensa de caudilhos e de salvadores da pátria, mas discordo profundamente que exista um Portugal “dotado de aparelhos institucionais suficientemente maduros”. Esse Portugal não existe, e é exactamente por não existir que a recondução de Joana Marques Vidal era tão importante – ela estava a contribuir, provavelmente como nenhuma outra figura do Estado português, para a construção dessa maturidade.
A razão pela qual falo obsessivamente em José Sócrates não é por ele ter roubado dez, 20 ou 50 milhões. No campeonato dos desvios de dinheiro haverá com certeza outros maiores do que ele. Sócrates é muito importante – e é esse o aspecto em que ele é único, não havendo comparação possível com outro político, à direita ou à esquerda – porque procurou alcançar o controlo total dos sectores executivo, legislativo, judicial, económico e mediático, extravasando em muito os poderes que lhe eram constitucionalmente atribuídos. O atentado ao Estado de Direito existiu. Mesmo. Os seus anos de governo foram a construção de um poder desmesurado à frente dos nossos olhos. E o pior não foi ele ter-se atrevido e, em boa parte, conseguido – o pior foi que o país deixou. As instituições cederam. O Portugal do respeitinho, cobardolas e medroso, reapareceu. A maturidade de que Manuel Carvalho fala no seu editorial não existiu entre 2005 e 2011. E nada garante que exista em 2018.
As pessoas olham para Donald Trump e dizem: “Como é possível os Estados Unidos terem eleito um homem daqueles?” Mas os Estados Unidos vão sobreviver a Trump porque o seu sistema político foi construído para resistir a energúmenos. Os bons sistemas não são aqueles que impedem maus líderes de ser eleitos, mas aqueles que possibilitam que as instituições funcionem mesmo que a sua eleição ocorra. Ora, em Portugal elas deixaram de funcionar decentemente em 2005. A permanência de Joana Marques Vidal era fundamental porque as instituições portuguesas são más e permeáveis ao poder, e a independência de que ela deu mostras é uma qualidade muito rara. É isto uma “arrogância moral intolerável”? Não, caro Manuel. É simples prudência. E um bocadinho de memória.
II- GOVERNO         Tanto faz, logo se vê, que se lixe… /premium
OBSERVADOR, 26/9/2018
Dizem que é um modo de governar, e é o modo de Costa: baseia-se no "logo se vê". No "tanto faz". É esse o segredo da sua habilidade. Mas é também o veneno que está a dar cabo da Administração Pública.
Lisboa, Hospital de Santa Maria, Setembro de 2018. Uma jovem levada para a urgência pelos bombeiros depois de um acidente de viação e de uma perda de consciência, com suspeita de traumatismo craniano, está três horas à espera para ser vista por um médico. Porque só há um médico nessa urgência para todos os doentes traumatizados. Porque esse médico anda a empurrar macas de doentes que chegaram não acompanhados pois não estão lá auxiliares para o fazerem.
A história é pública porque a mãe da jovem é jornalista e escreveu uma carta aberta ao ministro. Mas a história não é única, porventura nem será incomum. Recentemente, num outro hospital central de Lisboa, também depois de um acidente de viação, uma idosa esteve longas, longuíssimas horas à espera que lhe fizessem exames urgentes. Como é que eu sei que os exames eram urgentes? Porque estava acompanhada por duas filhas médicas – e médicas do SNS – a cujos apelos ninguém ligava. Pior: quando desesperadas começaram a tratar de transferir a mãe para um hospital privado (porque podiam fazê-lo, a esmagadora maioria dos portugueses não pode), começaram a ser tratadas com desdém.
É difícil explicar como se chega a este ponto no país onde tudo corre bem, onde temos os melhores profissionais do mundo em tudo e onde histórias como estas são sempre tratadas como episódios apresentados fora de contexto. Mas não são. No hospital público de uma daquelas médicas – um dos mais importantes da Grande Lisboa – há muitas macas nos corredores da urgência, e ao mesmo tempo muitas camas sem utilização em salas fechadas por falta de recursos humanos. Todos sabem que é assim, todos sabem que o ministro sabe, todos sabem que mesmo assim nada acontece.
E se é assim, se eles sabem e nada fazem, se tanto faz, até onde vai o seu brio profissional, a sua capacidade esforço, a sua dedicação? Se um dia eu, médico, tenho de andar a empurrar macas em vez de estar a ver doentes que esperam há horas, será que depois prolongo um pouco mais o meu horário sem qualquer compensação? Ou faço como no outro hospital, espero que alguém desista e vá tratar-se a um privado?
Talvez seja apenas a minha experiência pessoal, talvez apenas a das pessoas com quem me relaciono e que cada vez me contam mais histórias de serviços públicos onde o atendimento se tornou um desespero, onde, pior do que isso, parece ser absolutamente indiferente aos funcionários as horas sem fim que ali se está, as vezes que ali se regressa sem conseguir resolver os assuntos. Enquanto por aí se diz que as vacas voam, por ali disso não há sinais, bem pelo contrário.
De novo, como é que se explica que os funcionários do Estado, que deviam ser só sorrisos depois das “devoluções” e dos “descongelamentos”, não dêem afinal sinais de felicidade, senão mesmo de entusiasmo e renovada dedicação à maioria dos seus amores? Porque mostram ora má cara ora falta de brio?
Tenho uma explicação benévola e outra nada benévola – e temo que esta segunda seja bem mais verdadeira do que a primeira.
A explicação benévola tem apenas a ver com o espírito dos tempos. Passou a crise, passou o tempo em que a todos se pedia um sacrifício, um esforço suplementar, um cerrar dos dentes, a todos nos dizem que agora é tempo de descomprimir. Tendo passado o tempo em que “a crise” levava a que se compreendesse o esforço extra, a verdade é que se esqueceram de acrescentar que, não havendo mais gente nos serviços, e havendo menos horas de serviço (as famosas 35 horas), no fim do dia alguma coisa ficaria por fazer.
Isso nota-se mais em todos os serviços que têm interfaces directos com os cidadãos, sendo o mais crítico o sector da saúde, o mais vasto o da educação. E o mal-estar agrava-se quando se vai percebendo que a geringonça, por inabilidade, oportunismo ou simples má comunicação, alimentou expectativas nos funcionários do Estado que não vai cumprir. O caso mais evidente é o dos professores (independentemente do que pensemos das suas reivindicações), mas um pouco por todo o lado o “optimismo irritante” do primeiro-ministro criou a percepção, por exemplo, de que chegar ao défice zero não passaria à frente, como vai passar, de manter os salários congelados.
Mesmo assim não será apenas, nem sobretudo, por defraudar expectativas que se criou este clima degradado de um certo deixa andar que se respira em tantos serviços. Ele decorre, antes do mais, do segredo da tão mirabolante e elogiada “habilidade” de António Costa que, no fundo, não é mais do que um “logo se vê”. Esse “logo se vê” é o ponto de equilíbrio possível em cada momento, um ponto de equilíbrio que não é determinado por um rumo, um destino, uma visão, apenas por ser o que permite sustentar a geringonça, com ela o governo e assim o poder.
Para garantir as 35 horas nos hospitais vamos ter de abdicar de algumas camas nas urgências? Que se lixe, idealmente ninguém vê, ninguém nota.
Para conseguirmos os objectivos do défice é preciso cortar no investimento na ferrovia ao ponto de se começarem a suprimir ligações? Logo se vê, talvez não seja preciso. E, se for preciso, anunciam-se investimentos futuros.
Para manter a Catarina e a Mortágua em linha é preciso optar entre o imposto A e o imposto B? Bem vistas as coisas, tanto faz. Um encostozinho à direita, outro à esquerda, e siga em frente. A coerência não é coisa que lhe faça perder o sono.O que conta mesmo é ir entretendo o povo. Portugal, como se sabe, está na moda, e como está na moda já cá se dava como certa a Agência Europeia do Medicamento. Em Lisboa, claro, que é para onde os funcionários queriam vir. Mas não. Havia autárquicas e a cidade do Porto era importante para o PS. Vai daí passa-se a candidatura para o Porto, em nome da descentralização. Para perder, naturalmente. Confirmada a derrota, promete-se o Infarmed. Não há estudos? Pois não, mas logo se vê. Quando logo se viu, o Infarmed não foi para o Porto.
Julgam que alguma destas coisas atrapalha António Costa ou o PS? Nem pensar nisso. Mas é um modo de estar e governar que vai contaminando – e apodrecendo – o sentido de serviço público.
Tanto faz, logo se vê, que se lixe…
Afinal amanhã é outro dia, faz sol e cantam os passarinhos, nós estamos no Governo, o Passos foi-se embora, o Marcelo faz selfies em vez de Presidências Abertas, que pode um homem pedir mais?
COMENTÁRIO:
João Lopes: Excelente análise de José Manuel Fernandes! Henrique Raposo no Expresso diário de 27-09-2018: «Depois de pagar salários, Costa e Centeno não pagam seringas, carris, medicamentos, papel higiénico, carros, portas, balas. Como se vê nos hospitais, em Tancos ou em Pedrógão, o Estado de Costa não consegue dar resposta à realidade para lá da folha salarial que sustenta o eleitorado do PS…  Os hospitais estão em colapso. Os caminhos de ferro estão em colapso. Armas foram roubadas no exército. Armas foram roubadas na PSP. Costa preside ao maior colapso do Estado de que há memória, mas nada se passa. A sua cínica bonacheirice tudo normaliza...E depois? Depois os outros que resolvam, depois os outros que tomem as decisões difíceis.


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