Mais
uma bonita crónica de Maria João Avillez
que, para além da elegância literária de uma mente educada nos parâmetros de
uma boa formação cultural, possui a sensibilidade de um espírito criado no
respeito dos valores familiares, eventualmente num contexto de elitismo social
ainda possível nos tempos da segunda república. O amor da família está bem
presente ainda nesta terceira república, que se diz democrática, e em que o
prazer de proporcionar felicidade às várias gerações que de longe vêm ocupar o
espaço amplo de folguedos em moradia familiar de dimensão vasta, é motivo
suficiente para acatar os desvios que uma educação mais liberal trouxe de
novidade nas regras de compostura, mas sem dúvida de idêntico perfil
educacional, mau grado o desalinho da muita confusão, principalmente entre as
gerações mais novas. E do seu trecho ressalta o grande carinho pela família,
como algo que irá perdurar nas novas gerações educadas em idênticos moldes de
princípios, mas que, decididamente, a sociedade actual, da massificação,
libertação, desordem e deseducação, dificilmente fará prevalecer.
Acabo
de ver um programa no TV Memória, com
Amália Rodrigues como convidada
de O Resto são Cantigas (de Fialho, Solnado e Carlos
Cruz). Tratava-se de Frederico Valério, compositor de
muitos êxitos musicais até para Amália
Rodrigues, que nesse programa, dos anos 80, cantou alguns trechos de
homenagem ao compositor, hospitalizado por doença, e que a jovem filha de Frederico Valério seguiu na plateia com
profunda emoção. Uma cena de sentimento e beleza, provando que o amor dos
filhos pelos pais (e vice-versa) é igual ao de ontem, e que haverá sempre
profundidade e autenticidade no amor humano, mau grado os testemunhos que a
sociedade cada vez mais oferece de cisões e separações, fruto de egoísmos
exacerbados talvez por excessiva liberdade, toleima e desrespeito pelos tais
valores da família, que Maria João
Avillez tão delicadamente elege.
Mas
o seu texto mereceu, a par de breves comentários de apreço, alguns outros mais
mesquinhos, bem fruto do nosso carisma de grosseria ou pseudo-devoção virtuosa
pelos não herdeiros de mansões de felicidade, na irremediavelmente deficiente
distribuição dos bens materiais por esse mundo de Cristo.
Eis
os três comentários da nossa mesquinhez, às “Considerações estivais (2)” de Maria
João Avillez:
Marie de
Montparnasse: Um romance de um livro de capa azul com um verão sem
fim. É bonito, principalmente num país onde o inverno espreita a cada esquina.
Carlitos Sousa: Silly Season e
considerações para embalar... tásse bem !
victor guerra: Gente fina tem outros calores, que melhoram com
casarão nas Azenhas, a olhar e cheirar o Atlântico, em vez do aluguer do quarto
de um pequeno hotel e almoços num qualquer bar espelunca..Heranças do Portugal
da outra senhora, que esta, só vai deixar dívidas.
Considerações estivais (2) /premium
OBSERVADOR, 31/8/2018
Apesar dos “assim nunca mais” e outros queixumes
há a lucidez de perceber o dom que temos: uma família, a felicidade de a
unirmos, a sorte de lhe poder abrir as portas. Sem limite de tempo ou albergue
1. Abro as portadas do
jardim e, assim à vista desarmada, são sete bolas de futebol, toalhas de praia,
raquetes, sapatos desirmanados. Ainda o verão vai a meio e já se tropeça em
despojos. Mais adiante, no “cabanão”, onde se reúnem as famílias que aqui
habitam & filhos & amigos, há barbatanas de vários tamanhos, um sem fim
de “boias de braços”, restos de brinquedos aquáticos (restos, digo bem),
t-shirts para todos os gostos, um escaparate de bronzeadores, jornais antigos,
revistas velhas, garrafas de vinho meias consumidas no frigorífico. E, dentro
de casa, a saga estival do costume: mais despojos. Escovas de dentes, fatos de
banho, roupa variadíssima, carregadores de telemóvel, ténis, óculos, chaves,
livros, um lote de coisas deixadas para trás mas que nunca ninguém reclama. Um
mistério ao qual não me habituo, e cujo resultado sobra para mim: onde encafuar
tal espólio?
E ainda falta o “acampamento”,
espécie de ritual epifânico, sempre reeditado no final de Agosto, onde uma
farta tribo de miúdos (os mais velhos terão 9, 10 anos), albergada em tendas,
vive, conversa, ri, puxa pela cabeça em jogos inteligentes, mergulha, nada,
corre, joga futebol. Cultiva a amizade, descobre a camaradagem. Ao fim de uns
dias partirão sem deixar carregadores de telemóveis, mas deixarão o rasto da
indizível felicidade com que todos têm como adquirido este reencontro, dedicado
a corpo e mente e sempre jubilosamente imaginativo. (Deixarão, claro, o triplo
dos despojos, mas isso nada a fazer: não tenho energia para combater uma actual
forma de vida que entre outras características passa por deixar coisas nos
sítios e achar normal poder — e com que ligeireza — passar sem elas, logo terá
outras iguais, a educação da disciplina terá caído em desuso? Um “tanto faz”
saído directamente do ar deste tempo que perturba mais do que conforta.)
Ou seja, nada a fazer:
arrumarei os despojos. Em Setembro, quando um exausto pater familias e eu própria,
voltarmos de férias.
2. Mas há uma coisa, e essa sim séria: este
virote, apesar dos sucessivos desabafos de “assim nunca mais” e outros inúteis
suspiros, não impediu, nunca nos impediu, a grata lucidez de perceber o dom que
temos: uma família, a felicidade de a unirmos, e a sorte de lhes poder
escancarar as portas de par em par. Sem limite de tempo na estadia, na mesa,
cama e roupa lavada. Por isso, é simplesmente como na vida: há momentos de marés
altas e outros de marés baixas.
Decidi esquecer as baixas
que são, como bem se sabe, concretas e transversais: supermercados apinhados;
trocas de quartos e mudas de camas a velocidade estonteante; pacotes de
bolachas e embalagens de queijo acabadas duas horas depois; mesa posta para dez
sem afinal aparecer ninguém; passantes que passam sem pré-aviso mas sempre
esfomeados; a fatal hora dos banhos com a sua litania dos “apanhe o lençol do
chão”, “arrume a roupa na cadeira”, “lavou os dentes?”; qualquer coisa, enfim,
a meio caminho entre uma tensão impaciente e um pujante caos mas sempre
estivalmente reeditada. Hoje, porém, só aqui deixo marés altas. Momentos
escolhidos, mesmo que desarrumadamente e sem ligação entre eles, mas que muito
significaram.
3. Difícil de descrever a
sensação de pausa quase imaculada no afanoso ritmo do nosso quotidiano, ao observar do nosso jardim o eclipse da
lua, no final de julho. Mistério e fábula (sim, nem uma coisa nem outra,
mas sonhadoramente dá-me jeito celebrá-lo assim) apreciadíssimo,
comentadíssimo pela nutrida plateia infantil de netos & amigos, já
então instalada no nosso oeste. Logo na véspera, o luminoso círculo mais que
perfeito da lua cheia permitira já todas as magias e histórias que continuariam
até ao eclipse, e nada poderia ter substituído aquele milagroso ver para crer.
Um momento fortíssimo a que a sua absoluta excepcionalidade emprestou a muda
rendição de todos nós.
4. Não é toda gente que
gosta de mar. Que gosta de gostar de mar. Que sabe gostar de mar, lidar com as
marés, conhecer as ondas para as furar, subir ou mergulhar para o fundo delas.
O verão é o mar. Foi por isso com uma alegria que não consigo rechear com
palavras que vi um dos meus netos (oito anos) ficar o maior amigo do mar. Foi
no magnífico Baleal, “servido” por duas praias de ondas atlânticas, e o
embaraço é a escolha entre ambos os areais. (Dá-me sempre vontade de rir quando
me vêm com as praias de fora, as daqui e as dali, coqueiros e isso.) No Baleal,
o Vicente, com o seu amigo Paquito, outro palmo e meio espertíssimo, galgava as
ondas, furava-as, vencia-as, gozava-as, com garra e apetite. Recordação
inapagável numa sucessão de imagens sobrepostas onde ambos nos misturávamos,
com o mesmo júbilo: ele, hoje; eu, com a idade dele, no mar da Praia da
Conceição, em Cascais. Imagens abençoadas.
5. Um dos “ex libris” dos
verões é o jogo de futebol geracionalmente transversal do fim da tarde. Como as
balizas estão na nossa casa, começa das outras casas a acudir gente de várias
gerações, como se houvesse um íman a puxá-la para aquele espectáculo de
colorida correria e efervescente gritaria. Os jogadores e jogadoras têm entre
os 2 anos e meio e os setenta e muitos, mas ali não há crianças nem
“idosos”, há gente a correr energicamente atrás da bola e que no final de muito
suor e algum ranger de dentes se separa para distintos destinos: uns mergulham
na banheira, os outros no vinho branco. Idílico? Não, familiar, sólido e
autêntico e é nisso que reside o sentido do que relato: possa este numeroso
grupo infanto-juvenil levar daqui raízes tão fortes que sejam capazes de lhes
carpinteirar o carácter e memórias tão doces que as queiram reviver quando
chegar a vez deles.
6. O nosso “oeste” mora numa
pequena freguesia do concelho de Óbidos e neste verão, apesar da minha condição
de “munícipe de empréstimo”, agradeço o restauro do Santuário do Senhor da
Pedra; a obra inunda qualquer olhar. Tardou mas arrecadou: eis hoje esta pedra
antiga de recorte oitavado — julgo que o seu desenho é único no país –
erguendo-se com brancura majestática, à entrada de Óbidos. Lá dentro há, houve
sempre, uma atmosfera especial que apela ao recolhimento, ditada quem sabe por
aquela geometria singular. E se se acrescentar o privilégio de um inspirado
coro local que canta na missa dominical — apetece agradecer-lhes o que cantam e
como cantam — percebe-se que o sítio tenha passado a valer todos os
desvios. O antigo (e formidável) autarca Telmo Faria retirara Óbidos da sua
quase desmaiada quietude, dotando a vila com ideias e iniciativas que lhe
conferiram uma identidade e a puseram definitivamente no mapa. Óbidos passou a
ser um destino com personalidade própria em vez de um local onde se despejavam
turistas. Mas hoje, a César o que é de Cesar: foi com Humberto Marques,
sucessor de Telmo Faria, que o Senhor da Pedra ressuscitou. Como a
impressividade de uma maré cheia de verão.
7. Verão. Essa mais que amada estação pela qual Ruy Belo, que muito vinha
a estas paragens, “esperava como por outra vida”. Eu espero de tal maneira que
é minha obrigação citar o poeta, todos os anos por esta altura. Verão, após
verão, após verão.
P.S.: Há
um cerco ao Papa. Pelo caminho, Francisco pode ficar mais cercado ainda. O
país, os portugueses, crentes ou não crentes, o cidadão comum, gostariam de
ouvir a voz da Igreja, da sua Igreja institucional e não apenas esta ou aquela
voz, mesmo que fortes. Gostariam, precisariam e mereceriam. Ninguém, da
hierarquia eclesiástica ao mais pequeno e humilde dos crentes, pode ficar
quieto nem calado.
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