Geralmente a nossa amiga condena o excesso atrabiliário de Alberto Gonçalves com o comentário sobre os seus prováveis desacordos domésticos, provenientes do seu mau feitio, na suposição de que será um homem casado, mais vocacionado, pois, para um viver de “lobo solitário”. Tanto a minha irmã, como eu, defendemo-lo com unhas e dentes, como personalidade literária de um humor imbatível, indiferentes aos dados biográficos ligados às misérias ou riquezas da existência social de cada um. Eu, pelo menos, acomodo-me com esses factores de instabilidade conjugal, relembrando Molière e as suas desavenças conjugais com a actriz e futura mulher Armande Béjart, que não foram obstáculo – antes, contributo – para a sua dimensão e glória na dramaturgia universal. Sendo o humor de Alberto Gonçalves, do nosso conhecimento, não proveniente de criação novelesca ou dramatúrgica mas de reflexão negativa sobre o mundo real, tais características de ironia certeira, numa escrita exemplar, não tendo repercussão mundial, podem, todavia, servir de crónicas didácticas de orientação ideológica num país necessitado dela, e que peca por um atraso espiritual de origens bem definidas.
Mas desta vez eu alinho na opinião negativa da nossa amiga, a respeito do crítico social, concordando, todavia, com o sentido verrinoso da sua mensagem, visando os vários canais televisivos, no repetitivo, paupérrimo, inócuo e grotesco de tanta programação nela generalizada, os noticiários abrangendo os comportamentos de governantes igualmente vazios ou de uma presunção ressabiada, de um ranço contagiante, como se vê. Não são só, pois, a televisão e os seus fautores, os responsáveis pelo ranço televisivo, mas toda uma sociedade de apatia e vacuidade mental que nela naturalmente se projectam, e que atinge o seu clímax de anormalidade nacional com a hipotética demissão de Joana Marques Vidal do cargo de Procuradora Geral da República, e que João Miguel Tavares define como alguém que “desde que há democracia em Portugal, nenhum procurador-geral exerceu o seu cargo com a liberdade, a neutralidade e o sentido de Estado de Joana Marques Vidal”.
Ainda há, pois, quem lute por valores neste país,e mesmo alguns programas televisivos de críticas políticas nos são gratos, assim como outros de desafios culturais, ou de diversão que muitas pessoas – e lembro os lares de idosos, onde estes, sem outras distracções a não ser a sonolência ou a má língua - necessitam de um écran vibrante que os ligue à vida real, por muito ruidosa ou repetitiva que seja.
Julgo que Alberto Gonçalves deve ver outros programas, onde se pescam talentos, por exemplo, bem interessantes e não condenar “in limine” uma televisão a que se deve estar grato, afinal, pelo esforço desempenhado pelos seus responsáveis, noticiando, comentando, criando novelas para divertir, esforçando-se, enfim, por proporcionar o melhor que puder de diversão e conhecimento ao seu público mais amplo, num país que de conhecimento tem pouco.
Daí, desta vez, a concordância com a nossa amiga sobre a falta de generosidade de Alberto Gonçalves num excessivo ardor crítico que a ela repugna e que a nós por vezes também desgosta.
OBSERVADOR, 1/9/2018
Para escrever sobre política, meus caros, é vital ignorar aquilo que as
televisões vendem no lugar da política: uma feira de horrores sem o bálsamo do
cuspidor de fogo.
Na semana passada, o ócio
nacional resolveu debater o salário de uma apresentadora televisiva. Porque seria ridículo, não vou sugerir
que desconheço a senhora. Porque seria mentira, também não me declaro
familiarizado com a respectiva obra. A verdade é que as escolhas profissionais
da dona Cristina Ferreira apenas dizem respeito à própria e às empresas –
privadas – que a contratam. Não me dizem respeito a mim, e para cúmulo não me
interessam. Excepto num ponto: o facto de ainda haver gente atenta à existência
da televisão como se estivéssemos em 1992. Ou 1972.
Se se procurar no Google, a frase “end of television” devolve uma
quantidade considerável de ligações, muitas para ensaios e palpites acerca da
morte, próxima ou consumada, de um “media” que definiu o século anterior. A
ideia geral é que, graças a múltiplas consequências tecnológicas, económicas e
sociais proporcionadas pela internet, a televisão não vai longe, e isto
admitindo que poderá ir a algum lado, além do museu onde jazem o fax, o leitor
de cassetes, a imprensa “tradicional”, a varíola e o arremesso de anões. Não
sei, não sou vidente.
Limito-me a confessar que, no início de Agosto, sofri uma epifania.
Foi durante aqueles dias de particular calor, num serão em que o descuido ou o
destino me levaram ao “zapping” pelos canais da paróquia. Os “generalistas” em
peso, leia-se os que não têm assunto, tratavam os 40 graus em Agosto com a atenção
e o pormenor antigamente reservados a um golpe de Estado ou dois. Fascinado, vi
repórteres interrogarem populares na praia, repórteres interrogarem populares
na esplanada, repórteres interrogarem populares na rua. Vi depoimentos de
figuras importantíssimas da Protecção Civil, que recomendavam estratégias
misteriosas para lidar com as temperaturas (vestir roupa fresca em vez de
quente, beber água ao invés de morrer à sede, etc.). Vi o ocasional périplo
pelos “focos de incêndio”. Vi o prof. Marcelo banhar-se num rio. E vi todos os
canais regressarem aos populares para nova ronda de pertinentes questões. Uma
hora depois, o exercício continuava a preencher os noticiários da noite. E eu
ali, de boca aberta. Comecei a tentar decifrar se aquilo demonstrava a demência
dos responsáveis pelas televisões ou a demência que eles presumem no espectador
médio. De repente, ocorreu-me: que importa? No dia seguinte, liguei para a
companhia de TV por cabo e cancelei a assinatura. Suponho que para sempre.
Convém relativizar a decisão. Há um par de meses que, distraidamente,
não espreitava um programa português, ou sequer reparava na “box” desligada.
Porque não gosto de televisão? Pelo contrário: porque gosto demasiado, as
“plataformas” (bela palavra) “on line” satisfazem-me as preferências sem
contaminá-las com entulho. Noto, entre parêntesis, que o entulho “audiovisual”
não é exclusivo da televisão convencional. Recentemente, dois pré-adolescentes,
filhos de amigos, esforçaram-se por me iniciar no encantador universo dos “youtubers”.
Pelos vistos, se um pateta de vinte anos
se filmar regularmente a exibir a subtileza e o humor de uma criança de oito, o
pateta incorre numa carreira de “youtuber” e candidata-se a uns trocos. A
diferença é que, separado o lixo em prol do ambiente, na internet encontram-se
pequenas maravilhas ou produtos suportáveis. Na televisão convencional não se
encontra nada, ou nada que, em querendo, não se encontra na internet.
Quando em 1988 a Newsweek celebrizou o conceito de “trash tv”,
referia-se apenas a um subgénero emergente. Ao lado de Geraldo Rivera, Jerry
Springer e Oprah Winfrey, persistiam Carson e Letterman e cozinhavam-se
“Seinfeld” e “Os Simpsons”. Mesmo hoje, em que o horror dos “reality shows”
ocupa boa parte da televisão americana, sobra uma nesga para séries toleráveis,
o estertor do “Saturday Night Live”, os documentários da PBS e, perdido
algures, Conan O’Brien. Por cá, naturalmente, o subgénero lixo é o único género
em vigor. Se não estão a “auscultar” o “cidadão comum”, os “telejornais”
caseiros enchem-se de bola, “certames”, crimes, dramas, sentimentos e enchidos
nos sentidos gastronómico e “jornalístico” do termo. Fora dos “telejornais”,
julgo haver telenovelas, concursos, suburbanos estridentes e, nas cinco ou sete
horas que restam, bola, ou adultos sem receio de guinchar em público pelo
“clube do coração”.
Garantem-me que há igualmente programas de política, e que quem
escreve a propósito não os pode dispensar. Um erro típico. O que há nas nossas
(salvo seja) televisões não é política. É propaganda do “sistema”, tão solícita
que envergonharia o “sistema” caso este tivesse pingo de vergonha. É prestação
de serviços, disfarçada de “objectividade”, às espectaculares figuras que
mandam nisto. É um interminável rol de “comentadores” indignos de comentário. É
o descaramento dos “debates” desprovidos de contraponto ou decoro. Às vezes,
arrisca-se breve incursão por temas “internacionais”, espaço reservado à
condenação do sr. Trump e das “mudanças climáticas”, fora outros desabafos
assim profundos. Para escrever sobre política, meus caros, é vital ignorar
aquilo que as televisões vendem no lugar da política: uma feira de horrores sem
o bálsamo do cuspidor de fogo ou, se não incluirmos certas activistas, da
mulher barbuda.
A minha mãe diz que a televisão é uma companhia – das más,
esquece-se de acrescentar. Tarde, mas a tempo, o filho aprendeu a evitá-las
sozinho.
Nota
de rodapé
O cadastro das “personalidades”
que querem enxotar Joana Marques Vidal prova que a continuação da senhora no
cargo não é apenas relevante, mas decisiva para tentar manter o país do lado de
cá da civilização. Os que se lhe opõem passaram há muito para o lado de lá, que
aliás está pertinho. Alguns nasceram aí.
UM COMENTÁRIO:
Desalinhado Incréu: Brilhante como sempre! Faltou dizer que a
maior vedeta da nossa televisão é Marcelo Rebelo de Sousa, que protagonizou a
mais importante transferência televisiva de que há memória, mesmo considerando
a de Cristina Ferreira: passou da TVI para todos os canais, com as repercussões
que se conhecem. Eu já não aguento!
Estou como o Alberto Gonçalves: televisão só à "la carte"!
Ao ler a nota de rodapé sobre Joana Marques Vidal, ocorreu-me dizer às
minhas filhas para dizerem aos meus netos, se eles vierem a existir, que para
conhecerem bem este malfadado tempo em que agora vivemos, precisam ler
atentamente as crónicas de Alberto Carvalho.
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