quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Mas vale sempre a pena estudar para isso


Por vezes, todavia, torna-se uma profissão bastante rentável, a profissão médica, e nem é preciso chegar tão longe como chegou o doutor Knock da peça de Jules Romains, que, num delírio de ambição, manipulou o seu público por meio de truques vários de arte empresarial, e até mesmo o “João Semana”, que lhe passou o consultório a pretexto de que as gentes saudáveis do seu cantão o não deixavam enriquecer, por falta de doença que prestasse, se deixou persuadir de que ele próprio e a esposa também precisavam de tratamento. Knock chegou, viu e venceu, ao criar uma clínica com todos os requebros de assepsia vistosa e aliciante, e em breve a população saudável do cantão do Dr Parpalaid, e incluindo o próprio e a esposa, se tornaram fiéis doentes do impostor. Um pouco do que se passa hoje, de resto, na sociedade assustadoramente dependente dos instrumentos mediáticos e outros, ou mesmo só dos arreganhos ideológicos que alienam o bom senso, manipulando as sociedades a empobrecer espiritualmente, julgo.
Por isso, vale sempre a pena estudar e esforçar-se, sacrificando as pestanas em função de uma especialização médica, que é ofício criador de estabilidade vivencial, embora hoje em dia outros truques para esse efeito enriquecedor sejam mais seguidos. Mesmo porque se fazem mais simplisticamente, à sombra do reforço estrangeiro, que os governos e suas malhas manipulam nos seus próprios truques várias vezes denunciados neste país de denúncias.
Tudo isto, a propósito do texto de Edson Oliveira, que alguns comentadores, mais dentro do segredo, discutem.
Não entrei em Medicina, e agora?
EDSON OLIVEIRA
OBSERVADOR, 17/9/2018
Não é difícil compreender o que se passou. O conforto do status quo, a previsibilidade do futuro, a sensação de segurança, são sentimentos que deixaram de existir associados a uma formação em Medicina. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Posso mesmo dizer que sou do tempo, ainda não muito distante, em que entrar em Medicina era o orgulho de qualquer família. Não havia pai ou mãe que não sentisse alguma graciosidade quando dizia “o meu filho/a entrou em Medicina”. Na área das Ciências, cursos como Engenharia Física eram conotados com uma mais que provável falta de perspetiva de um futuro risonho, sendo este apenas seguro com o ingresso em Medicina.
Não quero com isto fazer uma apologia de que os melhores alunos do nosso ensino secundário não podem ou não devem seguir outros rumos, mas nos últimos anos algo aconteceu. A Medicina deixou de ser atrativa para a “nata da sociedade”, caindo paulatinamente no leque de escolhas do acesso ao Ensino Superior em detrimento de cursos como Engenharia Aeroespacial ou Engenharia Física Tecnológica. Não é difícil compreender o que se passou. O conforto do status quo, a previsibilidade do futuro, a sensação de segurança, são sentimentos que deixaram de existir associados a Medicina.
Depois de um longo curso de 6 anos numa Faculdade de Medicina sobrelotada, em que o rácio professor/aluno é muito acima do desejável, pensamos em tirar uma especialidade para prosseguir a carreira. Mas, quando pensamos que o pior já passou, este ainda nem sequer começou.
Não existem capacidades formativas para que todos os alunos que terminam o curso de Medicina (cerca de 1800/ano) ingressem numa especialidade. Para isso é necessário fazer uma Prova Nacional de Seriação que se tornou uma competição olímpica, que exige notas cada vez mais altas para tentar conseguir ingressar num programa de formação especializada. Claro que poderão dizer que esta competição é salutar, na medida em que selecionará os melhores e mais bem preparados para uma nova fase que é muito exigente. Mas o que esta pressão de candidatos originou foi um sistema perverso em que o que se avalia não são os conhecimentos em Medicina, mas sim a capacidade de memorização, o que poderia ser feito com o Livro de Pantagruel, que também contém pormenores que podem ser diferenciadores. Esperemos que este panorama se modifique com a nova prova que se iniciará no próximo ano.
Quando finalmente se consegue entrar numa das vagas de formação especializada deparamo-nos com uma nova e dura realidade. Temos mais de 25 anos de idade e ainda nos aguardam 4 a 6 anos de um programa formativo intenso, com avaliações anuais e o cumprimento de um número mínimo de requisitos (cirurgias, consultas, contacto com determinadas patologias, etc.), para no final desse programa submetermo-nos a uma avaliação onde poderemos adquirir o grau de especialista. Tudo isto associado a um horário de 40h/semana (que rapidamente se transforma em 70-80h/semana) e faustosamente remunerados a 8€/hora.
E quando finalmente terminamos a especialidade, passados 13 anos desde o ingresso na Faculdade de Medicina, temos de aguardar durante alguns meses pela abertura de concurso para sermos contratados por um hospital do Serviço Nacional de Saúde que oferece 40h/semana e 12€/hora.
Realmente não é difícil compreender as escolhas dos jovens hoje em dia!
Neurocirurgião no Hospital de Santa Maria, Lisboa, e antigo presidente do Conselho Nacional do Médico Interno da Ordem dos Médicos
COMENTÁRIOS:
João Porrete: E então o que propõe? Cortar no número de estudantes, como tentam sempre as ordens profissionais, perante a falta de médicos que o país enfrenta? E em relação ao Harrison, as alternativas são todas piores, além de que é falacioso compará-lo ao Pantagruel: no Harrison os alunos têm que memorizar informação médica, não culinária. E estudos após estudos académicos mostram que testes objetivos e uniformes são sempre a melhor forma de selecionar pessoas. Entrevistas, testes vocacionais, painéis de especialistas, etc., são tudo tretas subjetivas que serão exploradas pelos candidatos mais expeditos e com melhores patronos.
Tiago Ramalhais: Um texto muito lindo, mas vai-se à tabela oficial de remunerações e os nºs não batem certo com o que é relatado pelo autor: E queixa-se tanto mas continua a ser das profissões mais apetecidas.
MCMCA:  A Tiago Ramalhais
Um jovem durante o internato tem contrato individual de trabalho de 40 h, que rapidamente se transformam em 60. Leva líquido para casa 1.213 euros mais os trocos a 8 euros/horas não das 60 mas de menos horas. Pode ganhar mais uns trocos se tiver tido a sorte (azar) de ter sido admitido no INEM e aí o número de horas sobe para 80/semanais e o salário para cerca de 1600 euros. Terá de pagar todas as formações que fizer, congressos inclusive, onde necessariamente tem de apresentar trabalho por causa do exame de especialidade. Cada curso não lhe fica por menos de 1500 (com sorte porque alguns vão para o dobro) e cada congresso não fica por menos quiçá bem mais. Neste momento os jovens aspirantes a especialistas vivem num apartamento onde partilham um quarto com vários outros porque para mais não têm dinheiro. E com sorte escapam a ter um doente onde cometeram um erro e terão de pagar do seu bolso largos milhares de euros de indemnização e uma bela maquia a um advogado. E quem quererá apanhar uma doença num corredor de um qualquer hospital, ser mal pago e trabalhar horas a fio num ambiente infernal? Daí qualquer dia ninguém querer ir para Medicina como já acontece em muitos países da Europa e.g.,França, Alemanha, países da Escandinávia, etc. que fizer, congressos inclusive, onde necessariamente tem de apresentar trabalho por causa do exame de especialidade. Cada curso não lhe fica por menos de 1500 (com sorte porque alguns vão para o dobro) e cada congresso não fica por menos quiçá bem mais. Neste momento os jovens aspirantes a especialistas vivem num apartamento onde partilham um quarto com vários outros porque para mais não têm dinheiro. E com sorte escapam a ter um doente onde cometeram um erro e terão de pagar do seu bolso largos milhares de euros de indemnização e uma bela maquia a um advogado. E quem quererá apanhar uma doença num corredor de um qualquer hospital, ser mal pago e trabalhar horas a fio num ambiente infernal? Daí qualquer dia ninguém querer ir para Medicina como já acontece em muitos países da Europa e.g.,França, Alemanha, países da Escandinávia, etc.
João Vinagre: Lamento, mas o seu artigo parte de um pressuposto errado: considera que os cursos que a imprensa comunica como os que têm as notas mais elevadas são os que têm maior procura. Falso. Primeiro: acha comparável a classificação do 295° estudante a entrar num curso (com uma classificação composta pelas notas de Matemática, Física e Quimica e Biologia) com o do 80° a entrar em Engenharia Aerospacial (cuja classificação "só" exige Matemática e Fisica e Química)? Segundo: acha comparável com cursos que só colocaram um estudante (caso da Engenharia Civil na Universidade da Madeira)? Terceiro: comparou o número de estudantes que colocaram os cursos de Medicina entre as suas opções e o de Engenharia  Aerospacial? Não estou com isto a dizer que a atratividade de outros cursos não esteja a aumentar (e ainda bem!), mas escrever que "a Medicina deixou de ser atrativa para a blnata da sociedade..." é de quem quer fundar uma ideia ("edifício") em bases ("fundações")  pouco sólidas. Desculpe, mas deve ser defeito da minha formação (engenharia) a exigência de rigor :-)  
 Antonio Marques Mendes: Os jovens de hoje colhem os frutos do corporativismo dos seus antecessores. A forma que as corporações encontram de proteger os incumbentes é criar especializações cada vez mais despropositadas e aumentar os períodos de formação.
Que tal questionarem o papel da Ordem dos Médicos?
Paulo Ricardo Braga Quental : Caro Edson, o seu artigo retrata de forma superficial e de alguma forma fiel os passos desde o ingresso à “especialidade”. Esquece-se é de referir que a dificuldade em encontrar vagas para a especialidade e os “abusos” que os “estudantes” formados sofrem, são responsabilidade da Ordem dos Médicos que há anos, indica que se tem de reduzir as vagas pode acesso à universidade e à especialidade, e dos orientadores de especialidade que ABUSAM dos internos, enfim, o povo pode perceber a vossa dor, mas não espero que não a desonestidade intelectual.
Mario Figueiredo: E os cursos de engenharia que agora estão na moda são quase todos para trabalhar cá fora, porque Portugal não oferece nem salários nem carreira. E as poucas excepções que existem absorvem apenas uma ínfima parte dos recém-formados. É esse o pais que temos e onde se diz que está tudo bem. Desgraça.
Evangelista Miranda Miranda: Talvez na origem da sua morte prematura, esteja a preocupação/revolta que sentia, o nosso grande representante do realismo português - falamos de Eça de Queiroz - quando insistentemente se referia ao provincianismo português. É lamentável, que os últimos 44 anos do actual regime político, tenham deixado um sentimento de frustração, em meia dúzia de pessoas que pensam, e que perante este provincianismo expresso no texto: "a grande maioria dos pais ansiavam por uma entrada dos filhos/as num curso de medicina". É lamentável, que este povo sofrido, quantas vezes pela emigração, continue a olhar o balão, sem se dar conta do mundo em que vive e, de um pouco de prospectiva, no sentido de orientar a sua vida; tanto no que lhe diz no domínio pessoal, quanto a contribuição que todos devem ter para o interesse nacional. Como nos dizia há anos aí um escritor do Porto: "a vaidade e a inveja" são os maiores defeitos dos portugueses. Ora, eu diria doutro modo. A falta de Escola verdadeira e real, que continua a manter o povo na ignorância, é que é a verdadeira causa das desgraças nacionais, pois ninguém acautelou politicamente a governação do país de forma equilibrada: e hoje os médicos engenheiros e muitos outros, depois de darem despesa ao Estado em Portugal, vão trabalhar para o estrangeiro, com o povo à míngua de cuidados de saúde, levando muitos para o outro mundo, por falta de assistência. É lamentável mais uma vez, o desleixo como se faz política em Portugal.


Nenhum comentário: