Por vezes, todavia, torna-se
uma profissão bastante rentável, a profissão médica, e nem é preciso chegar tão
longe como chegou o doutor Knock da
peça de Jules Romains, que, num delírio de ambição, manipulou o seu público por
meio de truques vários de arte empresarial, e até mesmo o “João Semana”, que
lhe passou o consultório a pretexto de que as gentes saudáveis do seu cantão o não
deixavam enriquecer, por falta de doença que prestasse, se deixou persuadir de
que ele próprio e a esposa também precisavam de tratamento. Knock chegou, viu e
venceu, ao criar uma clínica com todos os requebros de assepsia vistosa e
aliciante, e em breve a população saudável do cantão do Dr Parpalaid, e incluindo
o próprio e a esposa, se tornaram fiéis doentes do impostor. Um pouco do que se
passa hoje, de resto, na sociedade assustadoramente dependente dos instrumentos
mediáticos e outros, ou mesmo só dos arreganhos ideológicos que alienam o bom
senso, manipulando as sociedades a empobrecer espiritualmente, julgo.
Por isso, vale sempre a pena estudar
e esforçar-se, sacrificando as pestanas em função de uma especialização médica,
que é ofício criador de estabilidade vivencial, embora hoje em dia outros
truques para esse efeito enriquecedor sejam mais seguidos. Mesmo porque se
fazem mais simplisticamente, à sombra do reforço estrangeiro, que os governos e
suas malhas manipulam nos seus próprios truques várias vezes denunciados neste
país de denúncias.
Tudo isto, a propósito do texto
de Edson Oliveira, que alguns comentadores, mais dentro do segredo, discutem.
Não entrei em Medicina,
e agora?
17/9/2018
Não
é difícil compreender o que se passou. O conforto do status quo, a
previsibilidade do futuro, a sensação de segurança, são sentimentos que
deixaram de existir associados a uma formação em Medicina. Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades.
Posso mesmo dizer que
sou do tempo, ainda não muito distante, em que entrar em Medicina era o orgulho
de qualquer família. Não havia pai ou mãe que não sentisse alguma graciosidade
quando dizia “o meu filho/a entrou em Medicina”. Na área das Ciências, cursos
como Engenharia Física eram conotados com uma mais que provável falta de
perspetiva de um futuro risonho, sendo este apenas seguro com o ingresso em
Medicina.
Não quero com isto fazer
uma apologia de que os melhores alunos do nosso ensino secundário não podem ou
não devem seguir outros rumos, mas nos
últimos anos algo aconteceu. A Medicina deixou de ser atrativa para a “nata da
sociedade”, caindo paulatinamente no leque de escolhas do acesso ao Ensino
Superior em detrimento de cursos como Engenharia Aeroespacial ou Engenharia
Física Tecnológica. Não é difícil compreender o que se passou. O conforto
do status quo, a previsibilidade
do futuro, a sensação de segurança, são sentimentos que deixaram de existir
associados a Medicina.
Depois de um longo curso
de 6 anos numa Faculdade de Medicina sobrelotada, em que o rácio
professor/aluno é muito acima do desejável, pensamos em tirar uma especialidade
para prosseguir a carreira. Mas, quando pensamos que o pior já passou, este
ainda nem sequer começou.
Não
existem capacidades formativas para que todos os alunos que terminam o curso de
Medicina (cerca de 1800/ano) ingressem numa especialidade.
Para isso é necessário fazer uma Prova Nacional de Seriação que se tornou uma
competição olímpica, que exige notas cada vez mais altas para tentar conseguir
ingressar num programa de formação especializada. Claro que poderão dizer que
esta competição é salutar, na medida em que selecionará os melhores e mais bem
preparados para uma nova fase que é muito exigente. Mas o que esta pressão de candidatos originou foi um sistema perverso
em que o que se avalia não são os conhecimentos em Medicina, mas sim a
capacidade de memorização, o que poderia ser feito com o Livro de Pantagruel,
que também contém pormenores que podem ser diferenciadores. Esperemos que este
panorama se modifique com a nova prova que se iniciará no próximo ano.
Quando finalmente se
consegue entrar numa das vagas de formação especializada deparamo-nos com uma
nova e dura realidade. Temos mais de 25 anos de idade e
ainda nos aguardam 4 a 6 anos de um programa formativo intenso, com avaliações
anuais e o cumprimento de um número mínimo de requisitos (cirurgias, consultas,
contacto com determinadas patologias, etc.), para no final desse programa
submetermo-nos a uma avaliação onde poderemos adquirir o grau de especialista.
Tudo isto associado a um horário de 40h/semana (que rapidamente se transforma
em 70-80h/semana) e faustosamente remunerados a 8€/hora.
E quando finalmente
terminamos a especialidade, passados 13 anos desde o ingresso na Faculdade de
Medicina, temos de aguardar durante alguns meses pela abertura de concurso para
sermos contratados por um hospital do Serviço Nacional de Saúde que oferece
40h/semana e 12€/hora.
Realmente não é difícil compreender as
escolhas dos jovens hoje em dia!
Neurocirurgião
no Hospital de Santa Maria, Lisboa, e antigo presidente do Conselho Nacional do
Médico Interno da Ordem dos Médicos
COMENTÁRIOS:
João Porrete: E então o que propõe?
Cortar no número de estudantes, como tentam sempre as ordens profissionais,
perante a falta de médicos que o país enfrenta? E em relação ao Harrison, as alternativas são todas piores, além de que
é falacioso compará-lo ao Pantagruel: no Harrison os alunos têm que memorizar
informação médica, não culinária. E estudos após estudos académicos mostram que
testes objetivos e uniformes são sempre a melhor forma de selecionar pessoas. Entrevistas, testes vocacionais, painéis de
especialistas, etc., são tudo tretas subjetivas que serão exploradas pelos
candidatos mais expeditos e com melhores patronos.
Tiago Ramalhais: Um texto muito lindo, mas vai-se à tabela oficial de
remunerações e os nºs não batem certo com o que é relatado pelo autor: E queixa-se tanto mas continua a ser das
profissões mais apetecidas.
Um jovem durante o internato tem contrato individual de trabalho de 40
h, que rapidamente se transformam em 60. Leva líquido para casa 1.213 euros
mais os trocos a 8 euros/horas não das 60 mas de menos horas. Pode ganhar mais
uns trocos se tiver tido a sorte (azar) de ter sido admitido no INEM e aí o
número de horas sobe para 80/semanais e o salário para cerca de 1600 euros.
Terá de pagar todas as formações que fizer, congressos inclusive, onde
necessariamente tem de apresentar trabalho por causa do exame de especialidade.
Cada curso não lhe fica por menos de 1500 (com sorte porque alguns vão para o
dobro) e cada congresso não fica por menos quiçá bem mais. Neste momento os
jovens aspirantes a especialistas vivem num apartamento onde partilham um
quarto com vários outros porque para mais não têm dinheiro. E com sorte escapam
a ter um doente onde cometeram um erro e terão de pagar do seu bolso largos
milhares de euros de indemnização e uma bela maquia a um advogado. E quem
quererá apanhar uma doença num corredor de um qualquer hospital, ser mal pago e
trabalhar horas a fio num ambiente infernal? Daí qualquer dia ninguém querer ir
para Medicina como já acontece em muitos países da Europa e.g.,França,
Alemanha, países da Escandinávia, etc. que fizer, congressos inclusive, onde necessariamente tem de apresentar
trabalho por causa do exame de especialidade. Cada curso não lhe fica por menos
de 1500 (com sorte porque alguns vão para o dobro) e cada congresso não fica
por menos quiçá bem mais. Neste momento os jovens aspirantes a especialistas
vivem num apartamento onde partilham um quarto com vários outros porque para
mais não têm dinheiro. E com sorte escapam a ter um doente onde cometeram um
erro e terão de pagar do seu bolso largos milhares de euros de indemnização e
uma bela maquia a um advogado. E quem quererá apanhar uma doença num corredor
de um qualquer hospital, ser mal pago e trabalhar horas a fio num ambiente
infernal? Daí qualquer dia ninguém querer ir para Medicina como já acontece em
muitos países da Europa e.g.,França, Alemanha, países da Escandinávia, etc.
João Vinagre: Lamento, mas o seu artigo parte de um pressuposto errado:
considera que os cursos que a imprensa comunica como os que têm as notas mais
elevadas são os que têm maior procura. Falso. Primeiro: acha comparável a
classificação do 295° estudante a entrar num curso (com uma classificação
composta pelas notas de Matemática, Física e Quimica e Biologia) com o do 80° a
entrar em Engenharia Aerospacial (cuja classificação "só" exige
Matemática e Fisica e Química)? Segundo: acha comparável com cursos que só
colocaram um estudante (caso da Engenharia Civil na Universidade da Madeira)?
Terceiro: comparou o número de estudantes que colocaram os cursos de Medicina
entre as suas opções e o de Engenharia Aerospacial? Não estou com isto a
dizer que a atratividade de outros cursos não esteja a aumentar (e ainda bem!),
mas escrever que "a Medicina deixou de ser atrativa para a blnata da
sociedade..." é de quem quer fundar uma ideia ("edifício") em
bases ("fundações") pouco sólidas. Desculpe, mas deve ser
defeito da minha formação (engenharia) a exigência de rigor :-)
Antonio
Marques Mendes: Os jovens de hoje colhem os frutos do
corporativismo dos seus antecessores. A forma que as corporações encontram de
proteger os incumbentes é criar especializações cada vez mais despropositadas e
aumentar os períodos de formação.
Que tal questionarem o papel
da Ordem dos Médicos?
Paulo Ricardo Braga Quental : Caro Edson, o seu artigo
retrata de forma superficial e de alguma forma fiel os passos desde o ingresso
à “especialidade”. Esquece-se é de referir que a dificuldade em encontrar vagas
para a especialidade e os “abusos” que os “estudantes” formados sofrem, são
responsabilidade da Ordem dos Médicos que há anos, indica que se tem de reduzir
as vagas pode acesso à universidade e à especialidade, e dos orientadores de
especialidade que ABUSAM dos internos, enfim, o povo pode perceber a vossa dor,
mas não espero que não a desonestidade intelectual.
Mario Figueiredo: E os cursos de engenharia que agora estão na moda
são quase todos para trabalhar cá fora, porque Portugal não oferece nem
salários nem carreira. E as poucas excepções que existem absorvem apenas uma
ínfima parte dos recém-formados. É esse o pais que temos e onde se diz que está
tudo bem. Desgraça.
Evangelista Miranda Miranda: Talvez na origem
da sua morte prematura, esteja a preocupação/revolta que sentia, o nosso grande
representante do realismo português - falamos
de Eça de Queiroz - quando insistentemente se referia ao provincianismo
português. É lamentável, que os últimos 44 anos do actual regime político,
tenham deixado um sentimento de frustração, em meia dúzia de pessoas que
pensam, e que perante este
provincianismo expresso no texto: "a grande maioria dos pais ansiavam por
uma entrada dos filhos/as num curso de medicina". É lamentável, que
este povo sofrido, quantas vezes pela emigração, continue a olhar o balão, sem
se dar conta do mundo em que vive e, de um pouco de prospectiva, no sentido de
orientar a sua vida; tanto no que lhe diz no domínio pessoal, quanto a
contribuição que todos devem ter para o interesse nacional. Como nos dizia há
anos aí um escritor do Porto: "a vaidade e a inveja" são os maiores
defeitos dos portugueses. Ora, eu diria doutro modo. A falta de Escola verdadeira e real, que continua a manter o povo na
ignorância, é que é a verdadeira causa das desgraças nacionais, pois ninguém
acautelou politicamente a governação do país de forma equilibrada: e hoje os
médicos engenheiros e muitos outros, depois de darem despesa ao Estado em
Portugal, vão trabalhar para o estrangeiro, com o povo à míngua de cuidados de
saúde, levando muitos para o outro mundo, por falta de assistência. É
lamentável mais uma vez, o desleixo como se faz política em Portugal.
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