Após dois artigos de Rui Ramos, de gravidade nacional
implicando condenação – com casos de actuações humanas, girando sobre um homem
em busca do seu futuro – Rui Rio -
ou sobre uma mulher - Joana Marques
Vidal - a quem se pretende excluir o futuro de continuidade num ofício onde
deu sempre boas provas, uma crónica de Maria
João Avillez, que nos desperta para a sedução, mascada de incómodo pela
avalanche turística, dos passeios numa cidade italiana – Florença – turismo
avassalador, compensado, todavia, pelas horas de prazer em torno das artes
plásticas expressivas de um país onde germinou o Renascimento. Como sempre, uma
crónica enriquecedora, onde o rebuscamento literário joga com o sentido
crítico, que não consegue, apesar disso, ofuscar a nossa tristeza perante um
statu permanente de um país sem rumo – ou antes, de rumo torcido.
I - RUI RIO: A conspiração oligárquica /premium
OBSERVADOR,14/9/2018
Em outros países europeus,
dizem-nos que a democracia está ameaçada por “movimentos populistas”; aqui,
está ameaçada por uma conspiração oligárquica.
Esta semana, Rui Rio conseguiu situar o PSD à esquerda do PS, junto
ao BE e à sua “taxa Robles”, entretanto condenada pelos socialistas. Não
foi simplesmente um disparate, nem uma reconversão ideológica (depois de
avalizar as ideias do BE, o PSD propôs a generalização das PPP na Saúde).
Foi, acima de tudo, uma operação
plástica: trata-se pura e simplesmente de refazer o PSD como parceiro apto para
todos os arranjos, por exemplo para uma qualquer maioria com o PS e o BE. Se o
PSD pode avalizar uma daquelas propostas do BE feitas à medida para irritar a
direita, tudo começa a ser possível entre os dois partidos.
Rui Rio não está apenas convencido de que o PSD não voltará ao poder
a não ser à boleia do PS. Parece também convencido de que a “geringonça” de
2015 fez entrar a política numa nova época, em que o poder terá de ser
partilhado através de arranjos para os quais as antigas separações e
incompatibilidades, herdadas do PREC e das revisões constitucionais, deixaram
de ser relevantes. O “muro”, quando
cai, é para todos. Se o PS pode emparceirar com o PSD, o CDS, o BE e o
PCP, porque não teria o PSD direito à mesma latitude de acasalamento político?
E se isso se tiver de fazer à custa do significado que o PSD teve, ao longo de
décadas, para uma grande parte do eleitorado, pois o eleitorado que tenha
paciência. A Rio basta-lhe que uma parte dos eleitores do PSD, por interesse do
poder ou por simples inércia clubista, lhe garantam o número suficiente de
deputados para se fazer valer junto de António Costa.
É esta a nova política. Mas que tem o cidadão a ver com isto? É
esse o ponto: nada. A combinação
parlamentar de 2015 operou o princípio de um curto-circuito entre o eleitorado
e o poder. Quando se supunha que o partido mais votado governava, isto é, que
os eleitores escolhiam um candidato a primeiro-ministro, as eleições
condicionavam directamente o acesso ao poder. Também a ideia de que havia
fronteiras políticas intransponíveis e alianças partidárias improváveis
continha o que os políticos podiam fazer e, desse modo, aliás, tornava a vida
pública inteligível para os cidadãos: um voto no PS ou no PSD, não era um voto
no BE ou no PCP, e vice-versa. Em 2015,
António Costa rompeu com essas limitações, e Rui Rio pretende agora fazer o
mesmo. Em 2019, todos poderão governar com todos, conforme o que conseguirem
concertar nos gabinetes e corredores. Um voto no PS ou no PSD, no BE ou no PCP,
significará arranjos de governo inesperados. É a oligarquia a impor-se de vez à
eleição: nunca mais os cidadãos terão a certeza daquilo em que estão a votar. O
eleitor é contra a punição do lucro e por isso vota no PSD? Pois talvez vá
contribuir, com esse voto, para um governo em que o BE agrave essa punição. O
regime vai tornar-se indecifrável, que é o primeiro passo para se desligar
dos cidadãos.
Esta transformação do regime não
será feita apenas à custa dos cidadãos. Será feita também à custa da
efectividade da governação. Não
poderemos esperar grande coisa de governos dependentes de maiorias heterogéneas
e frágeis. A tendência será para toda a gente tratar das suas respectivas
clientelas à custa do Estado, e, de resto, fugir a grandes responsabilidades.
No fundo, a governação de Portugal irá reduzir-se, nas suas grandes linhas, a
um simples condicionamento externo, definido pelos mercados financeiros e pelas
regras europeias. Viveremos assim sob a ditadura da conjuntura: quando for boa,
aumentam-se as despesas; quando for má, aumentam-se os impostos. Em outros países europeus, dizem-nos que a
democracia está ameaçada por “movimentos populistas”; aqui, está ameaçada pelo que
temos de chamar uma conspiração oligárquica.
II - JOANA MARQUES
VIDAL: A pedra angular do
regime /premium
OBSERVADOR, 7/9/2018
O saneamento da actual
Procuradora Geral reforçaria fatalmente a impressão de que, apesar das faltas
serem gerais, só esta direcção do PS tem
de facto o que se pode chamar “um problema com a justiça”.
Não há outra questão na
política portuguesa tão carregada de maus presságios como a recondução da
Procuradora Geral da República. É claro que o regime não vai cair se a
oligarquia afastar a Dra. Joana Marques Vidal. Num primeiro tempo, nada
provavelmente acontecerá, e os oligarcas poderão dar-se grandes palmadas de
satisfação nas costas uns dos outros. Mas que não tenham ilusões: no dia em que
a Joana Marques Vidal arrumar a secretária, nunca mais o regime deixará de
justificar todas as desconfianças.
A oligarquia está obviamente
consciente do risco. Por isso, não se atreve sequer a criticar a actual
Procuradora Geral da República. Prefere fazer crer que se trata apenas da
aplicação automática de uma regra que impediria os procuradores-gerais de
acumular outro mandato. Não vale a pena sequer discutir o caso
nesses termos. O que está em causa não é
um segundo mandato da Procuradora Geral da República, mas a independência de
uma instituição que, neste momento, só esse segundo mandato pode efectivamente
garantir. E não apenas por causa da Dra. Joana Marques Vidal, mas também por
causa daqueles, entre os seus antecessores, que tão bem se adaptaram ao costume
de não deixar investigações incomodar quem mandava no país. Daí a diferença que
fez a actual Procuradora Geral da República. Daí, também, a diferença que pode
fazer a sua substituição.
Nos últimos quatro anos, a crer na acusação da Operação Marquês, a
justiça portuguesa não descobriu apenas duas ou três maçãs podres no cesto:
desmantelou um mecanismo que, no tempo do governo socialista de José Sócrates,
terá unido o poder político e o poder financeiro numa conspiração para
subverter o regime democrático e a economia portuguesa. Na sequência dessa
conspiração, o país perdeu bancos e empresas. É preciso que a justiça
portuguesa possa agora julgar esse caso, sem que sob esse julgamento recaia a
pressão indirecta que poderia resultar do afastamento dos responsáveis pelos
organismos que conduziram a investigação. É isso que está em causa na
recondução da Dra. Joana Marques Vidal, e não quantos mandatos um procurador
deve ou não servir.
Mas digamos tudo: o problema é mais grave porque Portugal é, neste
momento, governado por aqueles que estiveram com José Sócrates no seu governo
quando o então primeiro-ministro cometeu os crimes de que é acusado. Não vale a
pena dizer que Sócrates se afastou do PS: o PS continua a ser dirigido pelos
seus antigos ministros, secretários de Estado e assessores. Se nada tiveram a
ver com a conspiração socrática, tal como descrita pela justiça, seria agora do
seu maior interesse que nada tivessem também a ver com o respectivo processo
judicial. Mas tal como a mulher de César, não lhes basta aqui serem honestos:
têm também de o parecer, e nada como absterem-se de opções que,
independentemente de estarem ou não dentro das suas prerrogativas, possam ser
interpretadas como interferências.
É verdade que quase todos os partidos têm antigos dirigentes entre os
arguidos, acusados e condenados dos últimos anos — pelas mais variadas razões
(no PSD, houve Oliveira Costa, Miguel Macedo e agora os caciques locais da
Operação Tutti Frutti). Mas o saneamento da actual Procuradora Geral
reforçaria fatalmente a impressão de que, apesar das faltas serem gerais, só
esta direcção do PS tem de facto o que se pode chamar “um problema com a
justiça”.
O lugar de Joana Marques Vidal depende do governo, mas o governo não se
deve esquecer que a sua credibilidade depende de Joana Marques Vidal. A pedra
que afastar será a pedra angular.
As cidades capturadas /premium
13/9/2018
Um dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará as portas,
o Monte de São Michel soçobrará, Roma sucumbirá. E Florença talvez já tenha
colapsado sem que ainda não se tenha dado por isso.
1. Ainda a manhã ia cedo e já não sabia onde pôr os pés, as multidões
ululavam em todas as direcções, o calor era selvático. Tudo exigia um combate
corpo a corpo com tudo. A surpresa foi devastadora: aquilo era Florença? Era.
Capturada.
E agora? Ficar ou fugir? Insistir ou desistir? Aguentar ou chorar sobre
tanto leite derramado?
2. Florença capturada. Erro
meu que não previ a dimensão do flagelo, partindo na primavera para lá, sozinha
e com admirável ligeireza.
Flagelo e cerco: por todo o lado, gente e mais gente, turistas
arrastando malas ruidosamente pelo empedrado do chão, turistas de muletas,
turistas em cadeira de rodas, carabinieri fumando, carteiristas, angariadores
de restaurantes, sem abrigos, devoradores de gelados, famílias com crianças de
três, quatro anos, pela mão, bebés (já desidratados?) entalados em mochilas
presas às costas cansadas dos progenitores, alunos em fila saindo de museus,
italianos falando alto, fala-se sempre alto em Itália. Bicicletas, como gatos
silenciosos, deslizavam-me felinas pela perna que não cabia nos acanhados
passeios, buzinas de toda a sorte de veículos azoinavam espíritos e mentes,
filas de “follow-me” tudo entupiam, seguindo a bandeirola de um guia
esbaforidamente suado; dezenas de barracas oferecendo assustadora quinquilharia
e duvidoso artesanato, logo comprados pelas hordas do ocupante, tudo enfim
compunha um quadro desoladoramente feio.
E era isto de sol a sol.
Tornando operacionalmente
impossível o júbilo do regresso a uma das mais belas cidades do mundo. O ver ou
rever; a descoberta, a pausa solitária entre duas telas, dois altares, dois
frescos, duas esquinas.
3. Tornando sobretudo impossível o
que está para “lá”. O mais recôndito e mais escondido do génio. O que nos
reclama um silêncio recolhido para se deixar desvendar. Para se dar a ver ao
olhar mais deslumbradamente atento ou à observação mais rendida e que é o
insondável mistério da criação. O dom da beleza. O toque da graça, o sopro do
transcendente, o sorriso de Deus.
Tudo isso Florença respira, de tudo isso Florença nos fala, tudo
isso ela nos oferece. (Ou oferecia?)
4. Em plena catástrofe lembrei-me de um texto que lera há tempos no
suplemento “Babelia” (El Pais) onde se dava conta de ensaios recentes de
antropólogos, filósofos, arquitectos, sobre “modelos de cidade” e concretamente
sobre o lugar do espaço público nas grandes urbes. Esse “lugar que reflecte a
convivência e o conflito, onde se faz história e onde às vezes se planifica,
outras se improvisa” (boa definição).
Conhecemos cidades hoje de tal
modo feridas de morte pela indústria turística que um dos autores destes
ensaios ousava concordar com o economista Alfredo Acosta na sua comparação
entre colonialismo e turismo: “tal como o colonialismo, o turismo produz
dependência económica ao centrar toda a actividade numa única fonte de receita,
gera riqueza rápida e pobreza a longo prazo, não calcula o valor do que
destrói, cria “zonas de excepção” jurídica e urbana e acaba com a diversidade
social.” Comparação deslocada? Relida agora e aqui, talvez. Vivida porém há
três meses “in loco” e ao vivo em Florença e depois em Roma, quem sabe se não
teria assinado por baixo uma comparação com a qual discordo? Seja como for
estamos a anos luz de poder compreender – na pele da nossa vida quotidiana – a
dimensão e a natureza transtornante desta massificação turística. Basta
pensar – e eis um mero exemplo – no que será a tentativa normal de um cidadão
florentino para conhecer ou rever os Uffizzi. Não consegue: estão sob ocupação
estrangeira. Se “leigamente” me surge como quase impossível (e quem sabe se a
realidade não virá provar um dia ser mesmo impossível) solucionar, debelar ou
sequer domesticar esta cavalgada selvagem, não deixo de estranhar que a questão
não seja objecto de muito maior ponderação. E de uma aflição que ultrapasse
medidas pontuais ou frágeis panaceias. Como parece. Qualquer dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará as
portas, o Monte de São Michel soçobrará de vez na subida da maré turística,
Roma sucumbirá. E Florença talvez já tenha sucumbido sem que ainda não se tenha
dado totalmente por isso.
5. Por isso um dia agarrei nas pernas e parti à procura de “outra”
Florença. Menos sitiada e por isso mais amável. Encontrei-a pela mão do meu
generoso (e sábio!) amigo Anisio Franco, conservador do Museu de Arte Antiga.
Antes de partir pedira-lhe um papelinho com lugares escondidos dos predadores.
Anisio conhece-os e eu fui. Fui
pela Capela Brancacci, no convento de Santa Maria del Carmine, do outro lado do
Arno. Fica numa praça branca, havia pouca gente e corria uma brisa. Dentro do
convento, na capela Brancacci, doze telas de Masaccio, Masolino e Filippino
Lippi oferecem-nos o inicio do Renascimento na pintura. Glorioso e
inesquecível. Se eu pudesse não teria saído de lá.
Fui por outra pequena capela, na
Igreja de Santa Felicita, logo após passar a ponte Vecchio. Multidões na
travessia da ponte, poucos mortais diante da capela Barbadori – Capponi onde é
preciso pôr uma moeda para ter acesso ao paraíso: num relâmpago celestial,
jorra diante dos nossos olhos incrédulos, o relevo admirável da pintura de Pontorrno
(1494-1557) um génio maneirista da escola de Florença.
Fui pelos Jardins dei Boboli e
nunca será de mais louvar o doce, delicado efeito de um jardim sobre alguém com
os olhos turvados pelo deslumbramento.
Procurei a desoras a Santíssima Anunciata e a Santa Crocce e subi
até San Miniato al Monte. Havia autocarros e filas de gente, mas fiquei com os
ciprestes do caminho, a luz fulgurante do princípio da tarde, a geometria clara
da quase inteira Florença que daquela colina se pode alcançar. E, claro, com a
capela do cardeal português D. Jaime (1433-1459), entrevista na penumbra
deserta do convento beneditino de San Miniato. Jaime, de extraordinária e
brevíssima vida (morreu em Florença aos vinte a cinco anos), era neto de D.
João I e filho de D. Pedro, o mais viajado dos príncipes da ínclita geração.
Tinha, em suma, a quem sair brilhante.
6. E a verdade é que me
valeram também os próprios florentinos. O riso aberto e o verbo sonoro quando
finalmente as multidões recolhiam aos seus dormitórios e a cidade se
humanizava, tornando possível a circulação da vida. Era quando a noite se
deixava cair na doçura quente da primavera e começava a festa, a deles: nas
ruas, nos passeios, nos bairros onde os moradores se entretinham ao relento com
o jogo da bisca ou da bola; nos restaurantes onde a pizza e a pasta se
saboreavam sempre em voz audível; nos terrraços, onde se discutiam as coisas da
vida e o vinho escorria sem pressa (e felizmente também com fartura).
Ah Itália, “segunda pátria de
toda a gente” na mais feliz das expressões que conheço para definir este país
tão, tão abençoado pelos deuses (mesmo que agora pareça que eles se distraíram
a tomar conta dele.)
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