segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Prazeres do tempo - de crítica e diversão



Após dois artigos de Rui Ramos, de gravidade nacional implicando condenação – com casos de actuações humanas, girando sobre um homem em busca do seu futuro – Rui Rio - ou sobre uma mulher - Joana Marques Vidal - a quem se pretende excluir o futuro de continuidade num ofício onde deu sempre boas provas, uma crónica de Maria João Avillez, que nos desperta para a sedução, mascada de incómodo pela avalanche turística, dos passeios numa cidade italiana – Florença – turismo avassalador, compensado, todavia, pelas horas de prazer em torno das artes plásticas expressivas de um país onde germinou o Renascimento. Como sempre, uma crónica enriquecedora, onde o rebuscamento literário joga com o sentido crítico, que não consegue, apesar disso, ofuscar a nossa tristeza perante um statu permanente de um país sem rumo – ou antes, de rumo torcido.

I - RUI RIO:  A conspiração oligárquica /premium
OBSERVADOR,14/9/2018
Em outros países europeus, dizem-nos que a democracia está ameaçada por “movimentos populistas”; aqui, está ameaçada por uma conspiração oligárquica.
Esta semana, Rui Rio conseguiu situar o PSD à esquerda do PS, junto ao BE e à sua “taxa Robles”, entretanto condenada pelos socialistas. Não foi simplesmente um disparate, nem uma reconversão ideológica (depois de avalizar as ideias do BE, o PSD propôs a generalização das PPP na Saúde).  Foi, acima de tudo, uma operação plástica: trata-se pura e simplesmente de refazer o PSD como parceiro apto para todos os arranjos, por exemplo para uma qualquer maioria com o PS e o BE. Se o PSD pode avalizar uma daquelas propostas do BE feitas à medida para irritar a direita, tudo começa a ser possível entre os dois partidos.
Rui Rio não está apenas convencido de que o PSD não voltará ao poder a não ser à boleia do PS. Parece também convencido de que a “geringonça” de 2015 fez entrar a política numa nova época, em que o poder terá de ser partilhado através de arranjos para os quais as antigas separações e incompatibilidades, herdadas do PREC e das revisões constitucionais, deixaram de ser relevantes. O “muro”, quando cai, é para todos. Se o PS pode emparceirar com o PSD, o CDS, o BE e o PCP, porque não teria o PSD direito à mesma latitude de acasalamento político? E se isso se tiver de fazer à custa do significado que o PSD teve, ao longo de décadas, para uma grande parte do eleitorado, pois o eleitorado que tenha paciência. A Rio basta-lhe que uma parte dos eleitores do PSD, por interesse do poder ou por simples inércia clubista, lhe garantam o número suficiente de deputados para se fazer valer junto de António Costa.
É esta a nova política. Mas que tem o cidadão a ver com isto? É esse o ponto: nada. A combinação parlamentar de 2015 operou o princípio de um curto-circuito entre o eleitorado e o poder. Quando se supunha que o partido mais votado governava, isto é, que os eleitores escolhiam um candidato a primeiro-ministro, as eleições condicionavam directamente o acesso ao poder. Também a ideia de que havia fronteiras políticas intransponíveis e alianças partidárias improváveis continha o que os políticos podiam fazer e, desse modo, aliás, tornava a vida pública inteligível para os cidadãos: um voto no PS ou no PSD, não era um voto no BE ou no PCP, e vice-versa. Em 2015, António Costa rompeu com essas limitações, e Rui Rio pretende agora fazer o mesmo. Em 2019, todos poderão governar com todos, conforme o que conseguirem concertar nos gabinetes e corredores. Um voto no PS ou no PSD, no BE ou no PCP, significará arranjos de governo inesperados. É a oligarquia a impor-se de vez à eleição: nunca mais os cidadãos terão a certeza daquilo em que estão a votar. O eleitor é contra a punição do lucro e por isso vota no PSD? Pois talvez vá contribuir, com esse voto, para um governo em que o BE agrave essa punição. O regime vai tornar-se indecifrável, que é o primeiro passo para se desligar dos cidadãos.
Esta transformação do regime não será feita apenas à custa dos cidadãos. Será feita também à custa da efectividade da governação. Não poderemos esperar grande coisa de governos dependentes de maiorias heterogéneas e frágeis. A tendência será para toda a gente tratar das suas respectivas clientelas à custa do Estado, e, de resto, fugir a grandes responsabilidades. No fundo, a governação de Portugal irá reduzir-se, nas suas grandes linhas, a um simples condicionamento externo, definido pelos mercados financeiros e pelas regras europeias. Viveremos assim sob a ditadura da conjuntura: quando for boa, aumentam-se as despesas; quando for má, aumentam-se os impostos. Em outros países europeus, dizem-nos que a democracia está ameaçada por “movimentos populistas”; aqui, está ameaçada pelo que temos de chamar uma conspiração oligárquica.
II - JOANA MARQUES VIDAL:    A pedra angular do regime /premium
OBSERVADOR, 7/9/2018
O saneamento da actual Procuradora Geral reforçaria fatalmente a impressão de que, apesar das faltas serem gerais, só esta direcção do PS tem de facto o que se pode chamar “um problema com a justiça”.
Não há outra questão na política portuguesa tão carregada de maus presságios como a recondução da Procuradora Geral da República. É claro que o regime não vai cair se a oligarquia afastar a Dra. Joana Marques Vidal. Num primeiro tempo, nada provavelmente acontecerá, e os oligarcas poderão dar-se grandes palmadas de satisfação nas costas uns dos outros. Mas que não tenham ilusões: no dia em que a Joana Marques Vidal arrumar a secretária, nunca mais o regime deixará de justificar todas as desconfianças.
A oligarquia está obviamente consciente do risco. Por isso, não se atreve sequer a criticar a actual Procuradora Geral da República. Prefere fazer crer que se trata apenas da aplicação automática de uma regra que impediria os procuradores-gerais de acumular outro mandato. Não vale a pena sequer discutir o caso nesses termos. O que está em causa não é um segundo mandato da Procuradora Geral da República, mas a independência de uma instituição que, neste momento, só esse segundo mandato pode efectivamente garantir. E não apenas por causa da Dra. Joana Marques Vidal, mas também por causa daqueles, entre os seus antecessores, que tão bem se adaptaram ao costume de não deixar investigações incomodar quem mandava no país. Daí a diferença que fez a actual Procuradora Geral da República. Daí, também, a diferença que pode fazer a sua substituição.
Nos últimos quatro anos, a crer na acusação da Operação Marquês, a justiça portuguesa não descobriu apenas duas ou três maçãs podres no cesto: desmantelou um mecanismo que, no tempo do governo socialista de José Sócrates, terá unido o poder político e o poder financeiro numa conspiração para subverter o regime democrático e a economia portuguesa. Na sequência dessa conspiração, o país perdeu bancos e empresas. É preciso que a justiça portuguesa possa agora julgar esse caso, sem que sob esse julgamento recaia a pressão indirecta que poderia resultar do afastamento dos responsáveis pelos organismos que conduziram a investigação. É isso que está em causa na recondução da Dra. Joana Marques Vidal, e não quantos mandatos um procurador deve ou não servir.
Mas digamos tudo: o problema é mais grave porque Portugal é, neste momento, governado por aqueles que estiveram com José Sócrates no seu governo quando o então primeiro-ministro cometeu os crimes de que é acusado. Não vale a pena dizer que Sócrates se afastou do PS: o PS continua a ser dirigido pelos seus antigos ministros, secretários de Estado e assessores. Se nada tiveram a ver com a conspiração socrática, tal como descrita pela justiça, seria agora do seu maior interesse que nada tivessem também a ver com o respectivo processo judicial. Mas tal como a mulher de César, não lhes basta aqui serem honestos: têm também de o parecer, e nada como absterem-se de opções que, independentemente de estarem ou não dentro das suas prerrogativas, possam ser interpretadas como interferências.
É verdade que quase todos os partidos têm antigos dirigentes entre os arguidos, acusados e condenados dos últimos anos — pelas mais variadas razões (no PSD, houve Oliveira Costa, Miguel Macedo e agora os caciques locais da Operação Tutti Frutti). Mas o saneamento da actual Procuradora Geral reforçaria fatalmente a impressão de que, apesar das faltas serem gerais, só esta direcção do PS tem de facto o que se pode chamar “um problema com a justiça”.
O lugar de Joana Marques Vidal depende do governo, mas o governo não se deve esquecer que a sua credibilidade depende de Joana Marques Vidal. A pedra que afastar será a pedra angular.

As cidades capturadas /premium
13/9/2018
Um dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará as portas, o Monte de São Michel soçobrará, Roma sucumbirá. E Florença talvez já tenha colapsado sem que ainda não se tenha dado por isso.
1. Ainda a manhã ia cedo e já não sabia onde pôr os pés, as multidões ululavam em todas as direcções, o calor era selvático. Tudo exigia um combate corpo a corpo com tudo. A surpresa foi devastadora: aquilo era Florença? Era. Capturada.
E agora? Ficar ou fugir? Insistir ou desistir? Aguentar ou chorar sobre tanto leite derramado?
2. Florença capturada. Erro meu que não previ a dimensão do flagelo, partindo na primavera para lá, sozinha e com admirável ligeireza.
Flagelo e cerco: por todo o lado, gente e mais gente, turistas arrastando malas ruidosamente pelo empedrado do chão, turistas de muletas, turistas em cadeira de rodas, carabinieri fumando, carteiristas, angariadores de restaurantes, sem abrigos, devoradores de gelados, famílias com crianças de três, quatro anos, pela mão, bebés (já desidratados?) entalados em mochilas presas às costas cansadas dos progenitores, alunos em fila saindo de museus, italianos falando alto, fala-se sempre alto em Itália. Bicicletas, como gatos silenciosos, deslizavam-me felinas pela perna que não cabia nos acanhados passeios, buzinas de toda a sorte de veículos azoinavam espíritos e mentes, filas de “follow-me” tudo entupiam, seguindo a bandeirola de um guia esbaforidamente suado; dezenas de barracas oferecendo assustadora quinquilharia e duvidoso artesanato, logo comprados pelas hordas do ocupante, tudo enfim compunha um quadro desoladoramente feio.
E era isto de sol a sol.
Tornando operacionalmente impossível o júbilo do regresso a uma das mais belas cidades do mundo. O ver ou rever; a descoberta, a pausa solitária entre duas telas, dois altares, dois frescos, duas esquinas.
3. Tornando sobretudo impossível o que está para “lá”. O mais recôndito e mais escondido do génio. O que nos reclama um silêncio recolhido para se deixar desvendar. Para se dar a ver ao olhar mais deslumbradamente atento ou à observação mais rendida e que é o insondável mistério da criação. O dom da beleza. O toque da graça, o sopro do transcendente, o sorriso de Deus.
Tudo isso Florença respira, de tudo isso Florença nos fala, tudo isso ela nos oferece. (Ou oferecia?)
4. Em plena catástrofe lembrei-me de um texto que lera há tempos no suplemento “Babelia” (El Pais) onde se dava conta de ensaios recentes de antropólogos, filósofos, arquitectos, sobre “modelos de cidade” e concretamente sobre o lugar do espaço público nas grandes urbes. Esse “lugar que reflecte a convivência e o conflito, onde se faz história e onde às vezes se planifica, outras se improvisa” (boa definição).
Conhecemos cidades hoje de tal modo feridas de morte pela indústria turística que um dos autores destes ensaios ousava concordar com o economista Alfredo Acosta na sua comparação entre colonialismo e turismo: “tal como o colonialismo, o turismo produz dependência económica ao centrar toda a actividade numa única fonte de receita, gera riqueza rápida e pobreza a longo prazo, não calcula o valor do que destrói, cria “zonas de excepção” jurídica e urbana e acaba com a diversidade social.” Comparação deslocada? Relida agora e aqui, talvez. Vivida porém há três meses “in loco” e ao vivo em Florença e depois em Roma, quem sabe se não teria assinado por baixo uma comparação com a qual discordo? Seja como for estamos a anos luz de poder compreender – na pele da nossa vida quotidiana – a dimensão e a natureza transtornante desta massificação turística. Basta pensar – e eis um mero exemplo – no que será a tentativa normal de um cidadão florentino para conhecer ou rever os Uffizzi. Não consegue: estão sob ocupação estrangeira. Se “leigamente” me surge como quase impossível (e quem sabe se a realidade não virá provar um dia ser mesmo impossível) solucionar, debelar ou sequer domesticar esta cavalgada selvagem, não deixo de estranhar que a questão não seja objecto de muito maior ponderação. E de uma aflição que ultrapasse medidas pontuais ou frágeis panaceias. Como parece. Qualquer dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará as portas, o Monte de São Michel soçobrará de vez na subida da maré turística, Roma sucumbirá. E Florença talvez já tenha sucumbido sem que ainda não se tenha dado totalmente por isso.
5. Por isso um dia agarrei nas pernas e parti à procura de “outra” Florença. Menos sitiada e por isso mais amável. Encontrei-a pela mão do meu generoso (e sábio!) amigo Anisio Franco, conservador do Museu de Arte Antiga. Antes de partir pedira-lhe um papelinho com lugares escondidos dos predadores.
Anisio conhece-os e eu fui. Fui pela Capela Brancacci, no convento de Santa Maria del Carmine, do outro lado do Arno. Fica numa praça branca, havia pouca gente e corria uma brisa. Dentro do convento, na capela Brancacci, doze telas de Masaccio, Masolino e Filippino Lippi oferecem-nos o inicio do Renascimento na pintura. Glorioso e inesquecível. Se eu pudesse não teria saído de lá.
Fui por outra pequena capela, na Igreja de Santa Felicita, logo após passar a ponte Vecchio. Multidões na travessia da ponte, poucos mortais diante da capela Barbadori – Capponi onde é preciso pôr uma moeda para ter acesso ao paraíso: num relâmpago celestial, jorra diante dos nossos olhos incrédulos, o relevo admirável da pintura de Pontorrno (1494­-1557) um génio maneirista da escola de Florença.
Fui pelos Jardins dei Boboli e nunca será de mais louvar o doce, delicado efeito de um jardim sobre alguém com os olhos turvados pelo deslumbramento.
Procurei a desoras a Santíssima Anunciata e a Santa Crocce e subi até San Miniato al Monte. Havia autocarros e filas de gente, mas fiquei com os ciprestes do caminho, a luz fulgurante do princípio da tarde, a geometria clara da quase inteira Florença que daquela colina se pode alcançar. E, claro, com a capela do cardeal português D. Jaime (1433-1459), entrevista na penumbra deserta do convento beneditino de San Miniato. Jaime, de extraordinária e brevíssima vida (morreu em Florença aos vinte a cinco anos), era neto de D. João I e filho de D. Pedro, o mais viajado dos príncipes da ínclita geração. Tinha, em suma, a quem sair brilhante.
6. E a verdade é que me valeram também os próprios florentinos. O riso aberto e o verbo sonoro quando finalmente as multidões recolhiam aos seus dormitórios e a cidade se humanizava, tornando possível a circulação da vida. Era quando a noite se deixava cair na doçura quente da primavera e começava a festa, a deles: nas ruas, nos passeios, nos bairros onde os moradores se entretinham ao relento com o jogo da bisca ou da bola; nos restaurantes onde a pizza e a pasta se saboreavam sempre em voz audível; nos terrraços, onde se discutiam as coisas da vida e o vinho escorria sem pressa (e felizmente também com fartura).
Ah Itália, “segunda pátria de toda a gente” na mais feliz das expressões que conheço para definir este país tão, tão abençoado pelos deuses (mesmo que agora pareça que eles se distraíram a tomar conta dele.)



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