sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Alma até Almeida


  1. Dois textos de João Miguel Tavares demonstrativos de que, quando se trata de ganhar uns trocos, coragem não nos falta. Podemos falhar noutras circunstâncias da vida, até mesmo naquelas em que a defesa dos alicerces pátrios seria imprescindível, mas na questão dos proventos não perdemos pitada, e sabemos muito bem escudar-nos, criando baluartes de resistência e defesa dignos de mérito. O livro de Miguel Sousa Tavares, “Cebola crua com sal e broa” é bem explícito do facto, na revelação do comportamento de tantos seus comparsas da vida, habituados aos baixos salários e usando truques miseráveis para a contagem de horas extraordinárias, por exemplo, autênticas anedotas do seu convívio de repórter jornalístico, ou dos seus conhecimentos da diplomacia portuguesa. De resto, todo o historial em torno dos empréstimos estrangeiros envolveram negociatas fabulosas denunciadoras da nossa mediocridade de povo subjugado e manso e baixamente cativo de exploradores. E sem emenda. Que os casos de falcatrua e desejo de rápido enriquecimento são cada vez mais explícitos, brotando do chão, como tortulhos bem irrigados. João Miguel Tavares explica os casos mais recentes, outros muitos os precedem.
  2. I - A torre da corrupção e a lei do compadrio

A Lei do Compadrio é com frequência acompanhada pela Lei do Sonso. Talvez lhe possamos passar a chamar “Lei Medina”.
PÚBLICO,15 de Setembro de 2018
Há legítimas razões para suspeitar que nesta terra não se faz uma única empreitada pública acima de três milhões de euros, nem um prédio acima de quatro andares, sem que de alguma forma esteja envolvido dinheiro sujo ou troca de favores. Chamemos-lhe a Lei do Compadrio: “Em qualquer negócio onde o envolvimento do Estado seja indispensável e os fundos envolvidos relevantes, a probabilidade de alguém encher ilegitimamente os bolsos aproxima-se dos 100.”
Eu escrevo três vezes por semana nesta página e não me chegam os textos para falar de todas as suspeitas credíveis que têm surgido em Portugal nos últimos anos. Mas não desesperemos, que a partir daqui podemos olhar para o copo meio cheio ou meio vazio. Meio vazio: o país está perdido e cada vez mais corrupto. Meio cheio: o país sempre foi profundamente corrupto, mas a justiça tem hoje uma capacidade de investigação e um desejo de escrutínio que não existia no passado. Eu sou um optimista, e opto pelo copo meio cheio. Acredito que aquilo que tem acontecido nos últimos anos, muita à boleia da tragédia socrática e de uma crise que tornou estes comportamentos particularmente obscenos (o caso de Pedrógão é, nesse aspecto, exemplar), é uma atenção redobrada à trafulhice, e a consciência de que a relação dos portugueses com o Estado é de mútua predação: o Estado enche-se com os impostos de todos para depois esvaziar parte para os bolsos de alguns.
Esta semana o semanário Sol e o jornal i recuperaram uma história antiga sobre o novo arranha-céus de Picoas. Notícias sobre o tema existem há muito, incluindo uma invasão de terrenos públicos no decorrer da obra, perante a compreensão da câmara – o que pareceu, desde logo, indiciar uma relação de privilégio. Não admira. Durante mais de 20 anos, o dono do terreno tentou obter o licenciamento de vários projectos, mas a volumetria aprovada ficou sempre aquém das suas expectativas. Em 2011, conseguiu a aprovação de um edifício de sete pisos. Entretanto, hipotecou o terreno ao BES por 15 milhões de euros. Veio a crise e decidiu vendê-lo ao banco por um euro. Subitamente, eis que se dá uma milagrosa mudança de PDM – e os pisos permitidos passaram de sete para 17. Quanto terá valido essa decisão?  
Fernando Medina esteve esta semana na SIC e o jornalista Bernardo Ferrão fez-lhe a pergunta: “A Torre de Picoas está avaliada em cerca de 120 milhões de euros, e o terreno onde foi erguida era de um empresário que achava que podia ali construir entre 12 a 14 mil metros quadrados. Foi-lhe dito que não, que não o podia fazer. Ele acabou por vender o terreno ao BES por um euro, e depois o PDM foi alterado. A capacidade de construção aumentou para 24 mil metros quadrados e fez-se esta torre. Isto não é suspeito, Fernando Medina?” Fernando Medina respondeu: “Não, não é suspeito.”
E pronto. Foram estas as (não) explicações que o senhor presidente da câmara deu aos seus cidadãos. Sejamos justos: Medina disse ainda ter estudado o caso “à exaustão desde muito antes de estar na Câmara de Lisboa” (fiquei curioso sobre esse estudo, mas ninguém aprofundou) e garantiu que tudo se passou de “forma totalmente correcta, pública e transparente”. Só não explicou como, nem porquê. A Lei do Compadrio é com frequência acompanhada pela Lei do Sonso: “Sobre qualquer negócio suspeito, a probabilidade de alguém dar explicações correctas, públicas e transparentes aproxima-se do zero.” Talvez lhe possamos passar a chamar “Lei Medina”.
COMENTÁRIOS:
Gustavo Garcia 17.09.2018 “Em qualquer negócio onde o envolvimento do Estado seja indispensável e os fundos envolvidos relevantes, a probabilidade de alguém encher ilegitimamente os bolsos aproxima-se dos 100%.” - Realmente, JMT é um optimista. Isto porque, se o não fosse, se fosse um realista, formularia esta lei de outra forma, bem mais próxima do real: “Em Portugal, em qualquer negócio com fundos envolvidos, a probabilidade de alguém encher ilegitimamente os bolsos aproxima-se dos 100% na mesma medida em que esses fundos crescem.” Não é preciso o estado estar envolvido para nada. A natureza aldrabona e chico-esperta do povo Português manifesta-se de forma assustadoramente frequente desde que haja dinheiro envolvido. Basta andar com os olhos abertos para o ver.
Maria Rita,  16.09.2018: De facto o título da notícia está muito bem posto e é sugestivo. Esta operação urbanística, está envolta em falta de transparência, Quer o senhor Presidente da CML, queira, quer não queira. Desde logo, na forma, como quem construiu se apoderou do terreno; na forma rocambolesca, como foi permitido demolir o que foi demolido; na forma atabalhoada como se processou o licenciamento e depois a execução da obra. Ou seja para que este edifício pudesse ser licenciado, os objectivos estratégicos do PDM, foram postos na gaveta, há um corte abrupto com a envolvente edificada, sem existir qualquer preocupação de articulação entre os vários tecidos urbanos. A forma como o construtor se apoderou do terreno municipal, entre outras barbaridades urbanísticas. E tudo para dar lucro fácil a alguém.
II - Taxa Robles: o que há num nome?
O CDS fez uma coisa muito simples, mas brutalmente eficaz: baptizou a proposta com o nome da pessoa que a proposta queria fazer esquecer.
PúBLICO, 18 de Setembro de 2018
Talvez pelas suas origens cristãs, o CDS é bom a baptizar coisas. Já lhe devemos a palavra “geringonça” (quem a usou pela primeira vez em contexto político foi Vasco Pulido Valente, mas para retratar a guerra entre Costa e Seguro pela liderança do PS – quem a popularizou no Parlamento para designar a actual solução de governo foi Paulo Portas), e agora acertaram mais um tiro no porta-aviões com o viperino baptismo da “Taxa Robles”. O senhor Shakespeare perguntava “what’s in a name?” num dos diálogos mais românticos de Romeu e Julieta, já que “uma rosa com outro nome cheiraria igualmente bem”. Mas como Romeu Montecchio aprendeu à custa da própria vida, um nome conta mesmo muito, e não há como desembaraçarmo-nos dele. Por causa disso, Romeu morreu, a taxa Robles também, e o Bloco de Esquerda já viu melhores dias.
Para quem aprecia política, é educativo ver como duas simples palavras escolhidas com precisão podem arrasar um projecto e fazer implodir toda uma estratégia. O CDS fez uma coisa muito simples, mas brutalmente eficaz: baptizou a proposta com o nome da pessoa que a proposta queria fazer esquecer. O nome pegou de imediato, não só à direita mas também à esquerda, e assim os outros partidos voltaram a ridicularizar o pobre Bloco, que não acerta uma, mesmo quando munido da pia intenção de tentar penitenciar-se pelos erros cometidos. Não é possível saber o quanto este caso vai penalizar eleitoralmente o partido de Catarina Martins, mas a facilidade com que a sua antiga superioridade moral é agora desmontada não augura nada de bom.
Vejam a entrevista que Mariana Mortágua deu ao Expresso. Ela não poderia ter sido mais violenta para com Ricardo Robles. “Este caso mostrou que o BE tem enormes padrões de exigência. E os seus representantes têm a grande responsabilidade de estar à altura dessas exigências que são legais e éticas, mas também de coerência. O Ricardo Robles não esteve à altura dessas exigências.” O problema é que não foi só Ricardo Robles. Na altura em que o Bloco ainda estava a proteger o seu vereador, Mariana Mortágua foi à SIC Notícias defendê-lo muito para lá do que seria aceitável, num debate com Adolfo Mesquita Nunes. E Francisco Louçã afirmou no mesmo canal que Robles tinha tido “a sorte da sua vida” por o PSD estar a exigir a demissão, classificando o caso como “uma forma de entretenimento de fim de Julho”. Na sexta-feira em que foram prestadas estas declarações, dia 27 de Julho, o Bloco perdeu para sempre a mais-valia da sua integridade ética.
As palavras têm grande importância no mundo da política, como é óbvio, mas elas são particularmente fundamentais em partidos estruturados em cima da retórica. Ao contrário de todos os outros partidos parlamentares (com a ilustre excepção do PAN), o Bloco não tem uma história de acção política, no sentido de meter as mãos na massa para tomar decisões executivas sobre a vida das pessoas. O PCP teve o PREC e tem as câmaras da Margem Sul. O PS, o PSD e o CDS já foram várias vezes partidos de governo. O Bloco nunca teve nada disso, excepto uma câmara (Salvaterra de Magos) que não correu especialmente bem. Desde sempre, a única coisa que o Bloco tem para mostrar é a destreza da sua língua. O caso Robles, e agora a taxa Robles, doem muito mais por causa disso. Como a acção do partido se resume ao discurso, quando a acção contradiz o discurso sobra muito pouco. Daí esta dificuldade imensa em reencontrar o caminho, após o mais quente dos seus Verões.


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