- Dois textos de João Miguel Tavares demonstrativos de que, quando se trata de ganhar uns trocos, coragem não nos falta. Podemos falhar noutras circunstâncias da vida, até mesmo naquelas em que a defesa dos alicerces pátrios seria imprescindível, mas na questão dos proventos não perdemos pitada, e sabemos muito bem escudar-nos, criando baluartes de resistência e defesa dignos de mérito. O livro de Miguel Sousa Tavares, “Cebola crua com sal e broa” é bem explícito do facto, na revelação do comportamento de tantos seus comparsas da vida, habituados aos baixos salários e usando truques miseráveis para a contagem de horas extraordinárias, por exemplo, autênticas anedotas do seu convívio de repórter jornalístico, ou dos seus conhecimentos da diplomacia portuguesa. De resto, todo o historial em torno dos empréstimos estrangeiros envolveram negociatas fabulosas denunciadoras da nossa mediocridade de povo subjugado e manso e baixamente cativo de exploradores. E sem emenda. Que os casos de falcatrua e desejo de rápido enriquecimento são cada vez mais explícitos, brotando do chão, como tortulhos bem irrigados. João Miguel Tavares explica os casos mais recentes, outros muitos os precedem.
- I - A torre da corrupção e a lei do compadrio
A Lei do Compadrio é com
frequência acompanhada pela Lei do Sonso. Talvez lhe possamos passar a chamar
“Lei Medina”.
PÚBLICO,15 de Setembro de 2018
Há legítimas razões para
suspeitar que nesta terra não se faz uma única empreitada pública acima de três
milhões de euros, nem um prédio acima de quatro andares, sem que de alguma
forma esteja envolvido dinheiro sujo ou troca de favores. Chamemos-lhe a Lei do
Compadrio: “Em
qualquer negócio onde o envolvimento do Estado seja indispensável e os fundos
envolvidos relevantes, a probabilidade de alguém encher ilegitimamente os
bolsos aproxima-se dos 100.”
Eu escrevo três vezes por
semana nesta página e não me chegam os textos para falar de todas as suspeitas
credíveis que têm surgido em Portugal nos últimos anos. Mas não desesperemos,
que a partir daqui podemos olhar para o copo meio cheio ou meio vazio. Meio
vazio: o país está perdido e cada vez mais corrupto. Meio cheio: o país
sempre foi profundamente corrupto, mas a justiça tem hoje uma capacidade de
investigação e um desejo de escrutínio que não existia no passado. Eu sou um optimista, e opto pelo copo meio
cheio. Acredito que aquilo que tem acontecido nos últimos anos, muita à boleia
da tragédia socrática e de uma crise que tornou estes comportamentos particularmente
obscenos (o caso de Pedrógão é, nesse aspecto, exemplar), é uma atenção
redobrada à trafulhice, e a consciência de que a relação dos portugueses com o
Estado é de mútua predação: o Estado enche-se com os impostos de todos para
depois esvaziar parte para os bolsos de alguns.
Esta semana o semanário Sol e o
jornal i recuperaram uma história
antiga sobre o novo arranha-céus de Picoas. Notícias sobre o tema existem
há muito, incluindo uma invasão de terrenos públicos no decorrer da obra,
perante a compreensão da câmara – o que pareceu, desde logo, indiciar uma
relação de privilégio. Não admira. Durante mais de 20 anos, o dono do terreno
tentou obter o licenciamento de vários projectos, mas a volumetria aprovada
ficou sempre aquém das suas expectativas. Em 2011, conseguiu a aprovação de um
edifício de sete pisos. Entretanto, hipotecou o terreno ao BES por 15 milhões
de euros. Veio a crise e decidiu vendê-lo ao banco por um euro. Subitamente,
eis que se dá uma milagrosa mudança de PDM – e os pisos permitidos passaram de
sete para 17. Quanto terá valido essa decisão?
Fernando Medina esteve esta semana na SIC e o jornalista Bernardo
Ferrão fez-lhe a pergunta: “A Torre de Picoas está avaliada em cerca de 120
milhões de euros, e o terreno onde foi erguida era de um empresário que achava
que podia ali construir entre 12 a 14 mil metros quadrados. Foi-lhe dito que
não, que não o podia fazer. Ele acabou por vender o terreno ao BES por um euro,
e depois o PDM foi alterado. A capacidade de construção aumentou para 24 mil
metros quadrados e fez-se esta torre. Isto não é suspeito, Fernando Medina?”
Fernando Medina respondeu: “Não, não é suspeito.”
E pronto. Foram estas as (não)
explicações que o senhor presidente da câmara deu aos seus cidadãos. Sejamos
justos: Medina disse ainda ter estudado o caso “à exaustão desde muito antes
de estar na Câmara de Lisboa” (fiquei curioso sobre esse estudo, mas
ninguém aprofundou) e garantiu que tudo se passou de “forma totalmente
correcta, pública e transparente”. Só não explicou como, nem porquê. A Lei do Compadrio é com frequência
acompanhada pela Lei do Sonso: “Sobre qualquer negócio suspeito, a
probabilidade de alguém dar explicações correctas, públicas e transparentes
aproxima-se do zero.” Talvez lhe possamos passar a chamar “Lei Medina”.
COMENTÁRIOS:
Gustavo
Garcia 17.09.2018 “Em qualquer negócio onde o envolvimento do
Estado seja indispensável e os fundos envolvidos relevantes, a probabilidade de
alguém encher ilegitimamente os bolsos aproxima-se dos 100%.” - Realmente, JMT
é um optimista. Isto porque, se o não fosse, se fosse um realista, formularia
esta lei de outra forma, bem mais próxima do real: “Em Portugal, em qualquer
negócio com fundos envolvidos, a probabilidade de alguém encher ilegitimamente
os bolsos aproxima-se dos 100% na mesma medida em que esses fundos crescem.”
Não é preciso o estado estar envolvido para nada. A natureza aldrabona e
chico-esperta do povo Português manifesta-se de forma assustadoramente
frequente desde que haja dinheiro envolvido. Basta andar com os olhos abertos
para o ver.
Maria Rita, 16.09.2018:
De facto o título da notícia está muito bem posto e é sugestivo. Esta
operação urbanística, está envolta em falta de transparência, Quer o senhor
Presidente da CML, queira, quer não queira. Desde logo, na forma, como quem
construiu se apoderou do terreno; na forma rocambolesca, como foi permitido
demolir o que foi demolido; na forma atabalhoada como se processou o
licenciamento e depois a execução da obra. Ou seja para que este edifício pudesse
ser licenciado, os objectivos estratégicos do PDM, foram postos na gaveta, há
um corte abrupto com a envolvente edificada, sem existir qualquer preocupação
de articulação entre os vários tecidos urbanos. A forma como o construtor se
apoderou do terreno municipal, entre outras barbaridades urbanísticas. E tudo
para dar lucro fácil a alguém.
II - Taxa Robles: o que há num nome?
O CDS fez uma coisa muito simples, mas
brutalmente eficaz: baptizou a proposta com o nome da pessoa que a proposta
queria fazer esquecer.
PúBLICO, 18 de Setembro de 2018
Talvez pelas suas origens
cristãs, o CDS é bom a baptizar coisas. Já lhe devemos a palavra “geringonça”
(quem a usou pela primeira vez em contexto político foi Vasco Pulido Valente,
mas para retratar a guerra entre Costa e Seguro pela liderança do PS – quem a
popularizou no Parlamento para designar a actual solução de governo foi Paulo Portas), e agora acertaram mais
um tiro no porta-aviões com o viperino baptismo da “Taxa Robles”. O senhor Shakespeare perguntava “what’s
in a name?” num dos diálogos mais românticos de Romeu e
Julieta, já que “uma rosa com outro nome cheiraria igualmente bem”. Mas como
Romeu Montecchio aprendeu à custa da própria vida, um nome conta mesmo muito, e
não há como desembaraçarmo-nos dele. Por causa disso, Romeu morreu, a taxa
Robles também, e o Bloco de Esquerda já viu melhores dias.
Para quem aprecia política, é
educativo ver como duas simples palavras escolhidas com precisão podem arrasar
um projecto e fazer implodir toda uma estratégia. O CDS fez uma coisa muito simples, mas brutalmente eficaz: baptizou a
proposta com o nome da pessoa que a proposta queria fazer esquecer. O
nome pegou de imediato, não só à direita mas também à esquerda, e assim os
outros partidos voltaram a ridicularizar o pobre Bloco, que não acerta uma,
mesmo quando munido da pia intenção de tentar penitenciar-se pelos erros
cometidos. Não é possível saber o quanto este caso vai penalizar eleitoralmente
o partido de Catarina Martins, mas a facilidade com que a sua antiga
superioridade moral é agora desmontada não augura nada de bom.
Vejam a entrevista que
Mariana Mortágua deu ao Expresso.
Ela não poderia ter sido mais violenta para com Ricardo Robles. “Este caso
mostrou que o BE tem enormes padrões de exigência. E os seus representantes têm
a grande responsabilidade de estar à altura dessas exigências que são legais e
éticas, mas também de coerência. O Ricardo Robles não esteve à altura dessas
exigências.” O problema é que não foi só Ricardo Robles.
Na altura em que o Bloco ainda estava a proteger o seu vereador, Mariana
Mortágua foi à SIC Notícias defendê-lo muito para lá do que seria aceitável,
num debate com Adolfo Mesquita Nunes. E Francisco Louçã afirmou no mesmo
canal que Robles tinha tido “a sorte da sua vida” por o PSD estar a exigir a
demissão, classificando o caso como “uma forma de entretenimento de fim de
Julho”. Na sexta-feira em que foram prestadas estas declarações, dia 27 de
Julho, o Bloco perdeu para sempre a mais-valia da sua integridade ética.
As palavras têm grande
importância no mundo da política, como é óbvio, mas elas são particularmente
fundamentais em partidos estruturados em cima da retórica. Ao contrário de
todos os outros partidos parlamentares (com a ilustre excepção do PAN), o Bloco
não tem uma história de acção política, no sentido de meter as mãos na massa
para tomar decisões executivas sobre a vida das pessoas. O PCP teve o PREC e
tem as câmaras da Margem Sul. O PS, o PSD e o CDS já foram várias vezes
partidos de governo. O Bloco nunca teve nada disso, excepto uma câmara
(Salvaterra de Magos) que não correu especialmente bem. Desde sempre, a única
coisa que o Bloco tem para mostrar é a destreza da sua língua. O caso Robles, e
agora a taxa Robles, doem muito mais por causa disso. Como a acção do partido
se resume ao discurso, quando a acção contradiz o discurso sobra muito pouco.
Daí esta dificuldade imensa em reencontrar o caminho, após o mais quente dos
seus Verões.
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