Longe
estamos dos tempos que António Aleixo
tanto criticou, quando acusava o regime de Salazar, lembrando dolo e corrupção
a dar com um pau, até mesmo no comércio de aldeia - aldeia onde tudo começou de
resto, como forja de caracteres que foram alastrando, desde os tempos aguerridos
de Viriato, outro pastor lutador e revoltado, e afinal atraiçoado, como o são
os Aleixos do nosso fabrico. Diz António Aleixo a definir-nos, nos subterfúgios
dos nossos arranjismos: “O meu merceeiro é um santo / E há quem diga
que ele é mau! / Digo-lhe só: – Dou mais tanto, / Já me arranja bacalhau” (in “Este Livro que vos deixo”).
E chegámos aqui, aos tempos do
nosso “merceeiro” de bom convívio, que sabe quanto se progride bem vendendo por
um preço superior o bacalhau faltoso, e logo adquirindo a reputação de
santidade junto de um povo apreciador de sesta e de bacalhau, na sua avidez
glutona e tranquila, glutonaria a que ele essencialmente provê, o nosso bom
Costa, arranjando-nos o bacalhau das nossas ambições. Por isso costumamos gritar
também - e essencialmente -: “Viva o Benfica”, ou viva outro qualquer clube que
nos esteja no goto. Vivam, pois, esses que nos governam e se mostram tão protectores
e simples e afáveis e eficientes, que jamais poderíamos gritar como a
criancinha de “O Rei vai nu”, porque
estes vão de facto nus, com a simplicidade da sua identificação connosco, nos
banhos e nas selfies da sua afabilidade democrática. Helena Garrido apressa-se, seriamente, a alertar-nos, no seu artigo
O
poder das elites e de António Costa /Premium, que
inúmeros comentadores comentam. Nem todos, é certo, na linha de preocupação de Helena Garrido, adeptos inegavelmente,
do bacalhau que por ele e o seu apoiante, M
le Président, nos é distribuído.
O poder das elites e de António Costa /premium
OBSERVADOR, 30/8/2018
Nunca como hoje se governou como
quis. Nem nos tempos das maiorias absolutas. Temos estabilidade e um Governo
que faz tudo. Os problemas dos últimos três anos revelam uma cumplicidade
histórica.
O que aconteceu em Portugal nos
últimos quase três anos é a todos os títulos extraordinário. Uma reviravolta de
180 graus, desmentindo todas as previsões baseadas em tendências e tornando a
realidade muito mais interessante do que qualquer ficção. O que se passou
recomenda ainda mais prudência nas antecipações que se queiram fazer do futuro.
Ou, como se aconselha a quem faz previsões económicas, se é preciso fazê-las,
que se façam muitas, já que alguma acertará. Há dois aspectos especialmente
interessantes: um, já bastante debatido, é o que diz respeito aos resultados
económicos e financeiros. O outro é a alteração significativa das avaliações
que partidos como o PCP e o BE fazem de acontecimentos que teriam provocado
criticas sem dó nem piedade no passado. Tudo isto se deve obviamente ao perfil
do primeiro-ministro António Costa, à convergência de interesses com o PCP e o
BE e, mais importante ainda, a uma elite política e económica ameaçada na era
de Pedro Passos Coelho.
Podemos dizer que a trajectória
económica é menos boa do que o desejável, ou mesmo do que seria possível com
outra política económica – nunca o saberemos, especialmente porque o
enquadramento político e social seria muito diferente se o PSD e o CDS tivessem
sido Governo. Um dos objectivos indiscutivelmente atingido, com a aliança do PS
ao PCP e ao BE, foi a estabilidade, não apenas na governação – obtida já com
Aníbal Cavaco Silva e José Sócrates – mas – e essa é a excepção – na sociedade.
Os números que temos para ilustrar essa estabilidade estão, por exemplo, nas
greves.
Em 2016, últimos dados disponíveis de acordo com a sistematização
feita pela Pordata usando
dados do Ministério do Trabalho, atingimos nesse ano o número mínimo de
trabalhadores em greve (sete mil). O número de paralisações pode dizer-se que
estabilizou – mais uma do que em 2015.
Francisco Assis no congresso
do PS teve uma frase que sintetizou o que se tem passado.
Dirigindo-se a António Costa disse: “Anestesiaste muito o PCP e o Bloco e isso
foi muito bom para Portugal”. Terá sido?
Sendo impossível aceder à realidade paralela, podemos apenas
especular sobre como poderia ter sido se o PS, o PCP e o BE não se tivessem
entendido para que António Costa fosse primeiro-ministro. Se o PSD e o CDS
tivessem formado Governo não teríamos tido a estabilidade social e política de
que beneficiámos nestes últimos três anos. A política económica seria
seguramente diferente: em matéria de finanças públicas teria sido mais prudente
do que a seguida por António Costa. Teria melhores resultados? É difícil de
avaliar uma vez que a instabilidade social poderia “comer” os efeitos de
medidas mais conservadoras, nomeadamente em matéria de reversão dos cortes
salariais na função pública e especialmente dos cortes nas pensões mais altas.
E as elites económicas poderiam igualmente ser menos colaborantes.
O que conseguimos hoje perceber
melhor é que algumas elites dependentes do Estado não queriam mais o PSD de
Pedro Passos Coelho a governar o país. Era preciso que o Estado voltasse a ser
rapidamente o que tinha sido para todos aqueles que dependem dele. E não
estamos a falar dos funcionários públicos em geral, mas sim de uma elite
fundamentalmente lisboeta que vive à mesa do Orçamento – do lado da despesa ou
da receita – e que inclui também empresários.
É uma opinião, sim, controversa e difícil de provar com números.
Entre os melhores exemplos para apoiar essa tese, de que é da elite urbana que
vem o apoio à estratégia do PS, estão os professores, nomeadamente
universitários, e os reformados com pensões mais elevadas, alguns deles com
carreira na política. As reversões dos cortes salariais, o aumento extraordinário
das pensões baixas e a eliminação da sobretaxa criaram condições para que não
se reparasse nisso. O tempo nos dirá se entre essa elite não estão também os
grandes devedores da banca onde se incluem alguns “empresários”.
Mas é na reacção pública às
falhas governativas, aos problemas ou aos casos políticos – ou “casinhos”, como
lhe se queiram chamar – que se identificam as mais significativas diferenças em
relação ao passado. Ali se vê o efeito de ter o PCP e o BE “anestesiados” na
versão de Francisco Assis ou, o que é mais provável, alinhados pelos mesmos
interesses. A tudo isto junta-se um Presidente com o perfil de Marcelo Rebelo
de Sousa.
Nestes últimos três anos consegue-se identificar cinco grandes
conjuntos de acontecimentos que teriam merecido uma dramatização pública
profunda se o PCP e o BE estivessem fora do poder – sim, embora não o
reconheçam, têm uma aliança com o PS que tem sido até mais pacífica do que
aquela que o CDS teve com o PSD.
Elenquemos, pois, os casos: os
incêndios; o assalto a Tancos; as polémicas com ministros e secretários de
Estado assim como o mais recente episódio que envolveu a CP; a política da CGD
e a gestão orçamental.
Os incêndios de 2017, que levaram à morte de mais de 116 pessoas,
precedidos de grande instabilidade na Autoridade Nacional de Protecção Civil,
teriam gerado no passado as mais violentas críticas. PCP e BE não teriam
perdoado a ausência do primeiro-ministro em férias no primeiro incêndio e,
justa ou injustamente, a então ministra ter-se-ia demitido bastante mais cedo.
Se o primeiro incêndio de Junho, em Pedrógão, já reunia
factos bastantes para uma violenta critica ao Governo, mais ainda se
justificava quando uma tragédia semelhante ocorreu em Outubro, com 48 mortes.
Mas nada aconteceu, como bem sabemos. Responsáveis não existem, com excepção da
queda da ministra. Assistiu-se, aliás, a uma espécie de censura, com acusações
de “politiquice” ou de “populismo” a quem se atrevesse a criticar a
incompetência do Governo. Este ano, o incêndio de Monchique seguiu o mesmo
padrão. E não é apenas o
comportamento do PCP e do BE que mudou, é o próprio PS que se desresponsabiliza
contrastando, por exemplo, com o que se passou quando caiu a ponte de
Entre-os-Rios caiu e Jorge Coelho se demitiu.
Fica uma pergunta sem resposta:
até que ponto toda esta ausência de crítica, exigência e oposição está a
contribuir para os problemas que temos tido neste domínio mas também noutros?
O assalto ao quartel de Tancos é outro dos casos que, noutros
tempos, teria ditado a demissão do ministro e de chefias militares. É talvez o
exemplo mais completo da indiferença que já tudo nos merece, quando vemos uma
instituição como a militar a tratar este assunto com a irresponsabilidade
pública com que o fez, ao mesmo tempo que o Governo e o Presidente da República
se limitam basicamente a declarações públicas ou a definição de calendários.
Estes foram os dois mais graves
problemas. No caso dos
incêndios, além da tragédia ficou afectada a confiança no Estado – o grave
episódio da reacção de pânico no incêndio em Setúbal com automobilistas a
fazerem inversão de marcha numa auto-estrada é bem o exemplo dessa falta de
confiança. No caso de Tancos é impossível que se tenha mantido o mesmo respeito
pela instituição militar.
Temos depois um grupo de episódios reveladores de uma
cultura de desleixo, sentimento próprio de impunidade ou falta de sentido de
Estado, uns com consequências políticas, outros sem elas. Com efeitos que
resultaram em demissões temos o caso dos bilhetes para o futebol, não sem que
se tivesse tentado que nada acontecesse, ao definir como normal um governante
receber ofertas de empresas – recorde-se que um deles era o então secretário de
Estado dos Assuntos Fiscais. Sem qualquer consequência temos o caso do ministro Pedro Siza
Vieira, um advogado de referência, que criou uma empresa um dia
antes de entrar no Governo e manteve-se como gerente durante dois meses dizendo
que assim o fez porque não sabia que tal era incompatível com um cargo
governativo.
O mais recente caso é o do comboio fretado pelo PS à CP para
transportar os militantes do Pinhal Novo até à festa da rentrée socialista em
Caminha. Não existiria nenhum problema e, pelo contrário, a CP estaria a
aumentar as suas receitas se, por causa desse negócio, não atrasasse outro
comboio e eliminasse outro serviço.
O objectivo central da CP é servir o
transporte público de passageiros e não fretar comboios. Mas nada disto foi
importante nem para o primeiro-ministro nem para os partidos que o apoiam, o
PCP e o BE. Sacrificar o serviço público para garantir uma área de negócio que
não é nem pode ser central na CP passou a ser uma normalidade.
No sector bancário, se
conseguirmos limpar o nevoeiro de decisões populistas, aquilo que vemos é uma
fuga generalizada da classe política ao apuramento de responsabilidades no caso
da CGD. No processo da Caixa, a conclusão que podemos tirar é que não há um único
partido com representação parlamentar que esteja realmente preocupado em
encontrar os culpados, entre administradores e grandes devedores que não
pagaram, da situação a que chegou o banco público. Um bom exemplo de
cumplicidades transversais no regime. Quem paga por essa falta de esforço em
recuperar as dívidas da Caixa? Os clientes, especialmente os mais idosos e
desfavorecidos. A suprema ironia do destino é o banco público assumir,
explicitamente e na prática, uma política com critérios estritamente privados
na era em que temos um governo do PS apoiado pelo PCP e o BE. Os clientes mais
velhos desorientam-se com as mudanças e os trabalhadores têm de ouvir que
beneficiam de mais regalias que as dos outros bancos – coisa que ouviram com
certeza na era da troika, altura em que os salários acabaram por ser repostos por decisão do
Tribunal Constitucional.
Há ainda o sucesso dos resultados
orçamentais que terá de passar pelo teste de uma recessão. Mas neste momento os
números já mostram que nenhum outro Governo no passado se atreveu a fazer os
cortes na despesa, por via de cativações, que António Costa já concretizou. O
PCP, que sempre foi o partido da oposição que melhor acompanhou as contas
públicas, fingiu que não percebeu, o mesmo fez o Bloco de Esquerda. Acordaram
em finais do ano passado, mas nem as exigências que fizeram têm impedido que a
estratégia se mantenha, como se pode
ler no artigo de Nuno André Martins, em que se conclui que há
congelamentos feitos à margem do Orçamento. É fazer gestão orçamental, sem
dúvida. Mas nunca teria sido aceite com esta passividade no passado e são
muitas as dúvidas não desfeitas sobre os efeitos nos serviços públicos.
De facto, as estrelas
alinharam-se para um governo minoritário do PS governar como nunca conseguiu
governar sequer um maioritário. Com Aníbal Cavaco Silva, como demonstram os
gráficos sobre as greves, a contestação social era enorme e as criticas a José
Sócrates nunca se deixaram de ouvir bastante violentas, no Parlamento, pela
boca do PCP e do BE. Nunca como hoje tivemos tanta estabilidade política,
social e económica por total ausência de contestação quer de patrões, quer de
trabalhadores. O PSD está sem capacidade de influência, o CDS tem a dimensão
que tem e todos os que se atrevam a criticar fora do mundo dos partidos são
imediatamente classificados e insultados com rótulos de uma lista que inclui
invariavelmente epítetos como “fascista”, “direitista”, “queres é destruir o
serviço público” ou “queres é privatizar”.
A completar este cenário temos um Presidente da República a quem
tudo é permitido graças à popularidade que granjeou. Marcelo Rebelo de Sousa
vai estabelecendo prazos para ver os diferentes assuntos esclarecidos – dos
incêndios ao assalto a Tancos – e os prazos passam sem que se dê qualquer
importância ao facto de não se dar importância nenhuma aos prazos do
Presidente.
Se tudo isto é possível só temos
de concluir que as elites assim o querem. António Costa, o PCP e o BE
conquistaram as elites portuguesas depois do susto que apanharam na era da
troika. O problema agora já não é perdermos a esperança de ter um país com uma
gestão política, económica e financeira mais desenvolvida, igualitária e
exigente. Neste momento podemos mesmo recear muitos mais. Podemos estar a
assistir à degradação dos valores – “se eles fazem porque não eu também?”.
Podemos estar a assistir à indiferença e incapacidade de nos indignarmos com a
incoerência e a injustiça – para além do impulso irritado nas redes sociais.
Podemos já estar na fase da aceitação conformada de que seremos sempre assim,
dependentes de uma elite que tudo aceita desde que lhe garantam lugar na mesa
do poder ou do orçamento.
Dois COMENTÁRIOS (Entre os 182)
Paulo Alves: Excelente análise da Dra. Helena Garrido. E
tristes conclusões. Só mesmo um néscio não se apercebe da degradação ética e
moral de um povo e dos seus governantes, através de uma "pacificação
social" absolutamente amoral e irresponsável.
José Filipe Fernandes: Mais
um excelente artigo, na sequência do dia 19 do mês passado. Este é o verdadeiro
estado da Nação, infelizmente. Atrevo-me a acrescentar que esta Geringonça
começou com a mentira da administração da CGD. Só por isto o ministro devia ser
demitido; onde está ele agora? Depois foram todas as
"confusões/intrujices" de diversos governantes. Tirando a triste
Constança, onde estão eles agora? Esta situação só acontece por 3 razões:
1ª. Um
presidente da república ( as minúsculas são de propósito e diretamente
proporcionais ) patético na sua atuação, agora a falar de assuntos do país em
tronco nu e provavelmente a promulgar o OE19 quando estiver na retrete, tudo permite
a este (des)governo apoiando-o. 2ª. Uma oposição que ainda não
aprendeu que em Portugal só faz efeito quando fizer obstrução e com apoio dos
sindicatos. 3ª. Por fim e mais importante, só com a
comunicação social do seu lado é que consegue transmitir as suas ideias e
alternativas.
E é precisamente por isto que a
Geringonça tem êxito mais as cativações e o turismo (hipócritas como são, devem estar a rezar a todos os santinhos para que
nenhum dos GIPS´s morra; se ficarem queimados não há problema que com a
burocracia esquece-se tudo - NOTÁVEL mais uma vez). Restam-nos estas
opiniões livres e certeiras que vão crescendo e aumentando de tom, para que os
portugueses deixem de ser bois mansos e vacas chocas.
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