Que o espinho Pedro Passos Coelho,
numa sugestão tão oportuna de leitura como só mesmo José Pacheco Pereira se compraz em fornecer, excelso letrado que é
- no caso, a do livro 1984 -
que esse espinho, a tanto tempo já de distância, não se desencasqueta do
espírito rancoroso e decididamente extremista de JPP? Afinal, tanto
conhecimento livresco em nada serviu para justificar os tais cortes/poupanças
instituídos pela imposição de uma entrada da Troika – tal como aconteceu na
Grécia – por esbanjamentos excessivos anteriores, a que não foram alheias a
corrupção e a fraude que finge ignorar. Extraordinário é como se pode ser tão
extremista nos comentários, de grande abertura para a compreensão aliteratada
dos tempos, e de tanta oclusão facciosamente injusta quando se trata desse jovem que,
menos culto do que ele, em todo o caso foi mais útil à sua pátria e mais corajoso do que ele,
lançando mão de uma tarefa extraordinária, que lhe granjearia, certamente, muitos ódios, mas sem a qual o país estaria há muito caído na valeta. Extraordinário!
E indecoroso também.
Por que é que devíamos estar todos a ler
o 1984?
É hoje muito mais importante para
ler nas democracias do que nas ditaduras, porque o que ele diz para as
democracias, para a defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias
de hoje, cada vez o sabemos menos.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 22 de Setembro de 2018
Poucos livros são tão
importantes para os nossos dias do que o 1984, de George
Orwell. É hoje muito mais importante para ler nas democracias do que nas ditaduras,
porque o que ele diz sobre as ditaduras totalitárias já todos o sabemos (e o
sabem os que lutam contra elas), mas o que diz para as democracias, para a
defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias de hoje, cada vez o
sabemos menos. O
reducionismo do 1984 a um panfleto antiestalinista, ou mais genericamente anticomunista,
e o seu esquecimento como uma distopia datada de há já quase 25 anos são um
erro e reduzem o património escasso de grandes obras literárias e políticas, de
que precisamos, mais do que nunca, nos dias de hoje.
Orwell percebeu o caminho para o mundo actual de fake news,
de relativização da verdade e dos factos,
da “verdade alternativa”, do tribalismo, do combate ao saber a favor
da ignorância atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização da pressa, do tempo
instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da
pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo
afectivo, social e político. Orwell sabia que o Big
Brother estaria feliz nos dias de hoje com o permanente ataque a toda a espécie de delegação de
poder pelos procedimentos das democracias, ou pelas
hierarquias da competência e do saber, a favor de um falso empowerment igualitário,
que enfraquece os mais débeis, os mais incultos, e os mais pobres, mas dá mais
poder aos poderosos, aos ricos, aos que estão colocados em lugares decisivos
por nascimento, herança, ou amoralidade. Descreveu, pela primeira vez
no 1984, o mundo da manipulação e geral
degenerescência da linguagem, das palavras e das ideias. Um mundo onde quem
manda reduz as palavras em circulação a uma linguagem gutural, a preto e
branco, sem capacidade expressiva e criadora, mas também desprovida da
capacidade de transportar raciocínios e argumentos lógicos, mas apenas
banhar-nos em pathos. Ele escreveu uma distopia,
nós vivemos nessa distopia. Uma das fontes do 1984 foi o conhecimento que tinha do totalitarismo comunista e em
particular a sua experiência na Guerra
Civil espanhola, que lhe serviu também para escrever Animal
Farm. Mas a outra
fonte importante do livro foi a sua
experiência na BBC, na comunicação social em tempo de guerra e no papel que
esta tinha na própria guerra como arma. Arma de propaganda, mas também arma
de manipulação, através da chamada “propaganda negra” ou daquilo a que mais
tarde os serviços soviéticos deram o nome de “desinformação”. Orwell conjugou estas duas fontes, de origem muito
diversa, numa interpretação do valor da verdade, e da ideia de que quem controla as palavras controla as cabeças e o
poder. A isto Orwell
acrescentava algo que sabia estar ausente do mundo da ideologia, uma genuína compaixão pelos “danados da terra”,
pelos que nada tinham, e é a eles que dá a capacidade de revolta: “If
there is hope, it lies in the proles.”
Dois exemplos mostram a manipulação das palavras, que é hoje uma
actividade especializada e lucrativa de agências de comunicação e publicidade,
de assessores de imprensa e de outros amadores de feiticeiros na Internet, já
para não falar dos serviços secretos:
um, de há uma semana na América de Trump, o grande laboratório do Big
Brother; e outro dos nossos anos do lixo, entre
a troika e o Governo PSD-CDS. No primeiro caso, trata-se do
interrogatório do candidato a juiz do Supremo Tribunal Ben Kavanaugh, em que as
mesmas armas, espingardas de tiro automático ou semiautomático, são descritas
como “armas de assalto” (“assault
weapon”), pelos que defendem
o seu controlo, ou como “espingardas de desporto modernas” (“modern sporting rifles”), como entendem os defensores da
interpretação literal da Segunda Emenda, para quem o direito de ter,
transportar e exibir armas é intangível.
O exemplo português é um entre
muitos dos anos do Governo da troika-PSD-CDS,
que começam a ser perigosamente esquecidos. Quando começaram os cortes em
salários, pensões, reformas, despesas sociais, durante dois ou três dias, mesmo
os membros do Governo usavam a expressão verdadeira de “cortes”. Depois, de um
dia para o outro, e de forma concertada, deixaram de falar de “cortes” para
falar em “poupanças”. O mais grave é que, como no mundo do Big
Brother, a expressão começou a impregnar a
linguagem comum, a começar pela da comunicação social, que nesses dias e
nalguns casos até hoje mostrou uma especial capacidade de ser manipulada pelo
“economês”. Leia-se pois o 1984, ou “releia-se”, que é a forma politicamente
correcta de se dizer que se leu sem se ter lido, até porque é um livro que não
engana ninguém logo à primeira frase: “Era um dia de Abril, frio e cheio de
sol, e os relógios batiam as treze horas.”
COMENTÁRIOS:
fernando
ferreira franco, 22.09.2018 - P.P. não deve ter lido o mesmo 1984 que eu li já nos idos anos 70 do
século passado. É certo que em Paris a leitura dos factos não era a mesma que
em Portugal, mas P.P. está a escrever hoje, o que, no mínimo, lhe permite
consultar pontos de vista. Ninguém naquela altura ficou com a ideia de que
Orwel escrevia sobre o comunismo, não, o Winston era cada um de nós sob a
hegemonia, já mais que evidente, da tecnologia sobre o discernimento, já se lia
Jacques Ellul, Fred Hirsch e muito antes de Orwel já Aldous Huxley nos tinha
transportado para essa distopia, tal como Zamiatine.
Orwel diz (pag. 274 da edição de 1975 em francês) “O progresso tecnológico só acontece quando,
de algum modo, serve para reduzir a liberdade do ser humano”. Huxley já
antes afirmara “restam-nos duas hipóteses, ou a guerra total (a da bomba
atómica) inerente ao fim da civilização ou, em guerras circunscritas, o
totalitarismo supranacional, suscitado pelo caos social resultante do progresso
tecnológico”. Incrível como Huxley consegue
prever (quase um século antes) o que que se passa nos dias de hoje. Julgo perceber que P.P. está a atravessar
um pesadelo, o de uma direita fóssil, sem cultura de percepção, da qual se quer
livrar. Saúdo a sua chegada ao mundo dos vivos, mas aconselho-o a não se servir
da cultura geral que, de tão fossilizada, se apresenta como a pior das
iliteracias.
Nuno Silva,
22.09.2018: E o flagrante
da manipulação mediática da guerra da Síria, incluindo o conhecimento dos
serviços secretos europeus, de que estavam a ser recrutados fundamentalistas
aos magotes, nas ruas e na internet, para espalhar a 'democracia e a liberdade'
naquele país, que é uma ditadura em mudança, mas ao mesmo tempo um dos mais
avançados na região (superior ao
apartheid de Israel). E que ainda continua, quer na protecção aos piores e mais sanguinários terroristas cercados
em Idlib, que usam civis escudos humanos, quer na recusa de apoio à reconstrução,
que eles ajudaram a destruir, impedindo o regresso dos refugiados.
Ceratioidei,
Oceanos 22.09.2018 Excelente
PP. Há pouco tempo, preocupado com o impacto que este livro de leitura
obrigatória no penúltimo ano do Gymnasium teria nos sobrinhos netos, tentei
conversar mas fui interrompido. Senta-te aqui, tio. Quem controla o passado
controla o futuro e quem controla o presente controla o passado. Tu leste, nós estamos
a ver em tempo real. Sentado em frente dos laptops mostraram-me exemplos sobre
a manipulação da linguagem e das ideias. Fábricas de fakes, o método da
desinformação, o financiamento, os objectivos, os trolls, com risos
sarcásticos, olha este, e este, he’s a pranker, bro. Fiquei chocado com a
facilidade com que lidam com isto, impressionado com a exactidão, veracidade e
qualidade dos exemplos escolhidos. Agradeci dizendo ter aprendido alguma coisa,
riram-se, não acreditaram.
DCM,
charneca de caparica 22.09.2018 …: "quem
controla as palavras controla as cabeças e o poder"... Seja na
Venezuela, nas arábias, na Rússia, na China ou nos EUA. A diferença está na força
ou fraqueza das oposições que também mais não pretendem do que impor o seu
domínio, com mais ou menos compaixão pelos "danados da terra"
agarrados à sua última réstia de esperança que lhes permite imaginar uma luz ao
fundo do túnel ainda que muito ténue .
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