domingo, 23 de setembro de 2018

Porque será?


Que o espinho Pedro Passos Coelho, numa sugestão tão oportuna de leitura como só mesmo José Pacheco Pereira se compraz em fornecer, excelso letrado que é - no caso, a do livro 1984 - que esse espinho, a tanto tempo já de distância, não se desencasqueta do espírito rancoroso e decididamente extremista de JPP? Afinal, tanto conhecimento livresco em nada serviu para justificar os tais cortes/poupanças instituídos pela imposição de uma entrada da Troika – tal como aconteceu na Grécia – por esbanjamentos excessivos anteriores, a que não foram alheias a corrupção e a fraude que finge ignorar. Extraordinário é como se pode ser tão extremista nos comentários, de grande abertura para a compreensão aliteratada dos tempos, e de tanta oclusão facciosamente injusta quando se trata desse jovem que, menos culto do que ele, em todo o caso foi mais útil à sua pátria e mais corajoso do que ele, lançando mão de uma tarefa extraordinária, que lhe granjearia, certamente, muitos ódios, mas sem a qual o país estaria há muito caído na valeta. Extraordinário! E indecoroso também.
Por que é que devíamos estar todos a ler o 1984?
É hoje muito mais importante para ler nas democracias do que nas ditaduras, porque o que ele diz para as democracias, para a defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias de hoje, cada vez o sabemos menos.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 22 de Setembro de 2018
Poucos livros são tão importantes para os nossos dias do que o 1984, de George Orwell. É hoje muito mais importante para ler nas democracias do que nas ditaduras, porque o que ele diz sobre as ditaduras totalitárias já todos o sabemos (e o sabem os que lutam contra elas), mas o que diz para as democracias, para a defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias de hoje, cada vez o sabemos menos. O reducionismo do 1984 a um panfleto antiestalinista, ou mais genericamente anticomunista, e o seu esquecimento como uma distopia datada de há já quase 25 anos são um erro e reduzem o património escasso de grandes obras literárias e políticas, de que precisamos, mais do que nunca, nos dias de hoje.
Orwell percebeu o caminho para o mundo actual de fake news, de relativização da verdade e dos factos, da “verdade alternativa”, do tribalismo, do combate ao saber a favor da ignorância atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização da pressa, do tempo instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo afectivo, social e político. Orwell sabia que o Big Brother estaria feliz nos dias de hoje com o permanente ataque a toda a espécie de delegação de poder pelos procedimentos das democracias, ou pelas hierarquias da competência e do saber, a favor de um falso empowerment igualitário, que enfraquece os mais débeis, os mais incultos, e os mais pobres, mas dá mais poder aos poderosos, aos ricos, aos que estão colocados em lugares decisivos por nascimento, herança, ou amoralidade. Descreveu, pela primeira vez no 1984, o mundo da manipulação e geral degenerescência da linguagem, das palavras e das ideias. Um mundo onde quem manda reduz as palavras em circulação a uma linguagem gutural, a preto e branco, sem capacidade expressiva e criadora, mas também desprovida da capacidade de transportar raciocínios e argumentos lógicos, mas apenas banhar-nos em pathos. Ele escreveu uma distopia, nós vivemos nessa distopia. Uma das fontes do 1984 foi o conhecimento que tinha do totalitarismo comunista e em particular a sua experiência na Guerra Civil espanhola, que lhe serviu também para escrever Animal Farm. Mas a outra fonte importante do livro foi a sua experiência na BBC, na comunicação social em tempo de guerra e no papel que esta tinha na própria guerra como arma. Arma de propaganda, mas também arma de manipulação, através da chamada “propaganda negra” ou daquilo a que mais tarde os serviços soviéticos deram o nome de “desinformação”. Orwell conjugou estas duas fontes, de origem muito diversa, numa interpretação do valor da verdade, e da ideia de que quem controla as palavras controla as cabeças e o poder. A isto Orwell acrescentava algo que sabia estar ausente do mundo da ideologia, uma genuína compaixão pelos “danados da terra”, pelos que nada tinham, e é a eles que dá a capacidade de revolta: “If there is hope, it lies in the proles.”
Dois exemplos mostram a manipulação das palavras, que é hoje uma actividade especializada e lucrativa de agências de comunicação e publicidade, de assessores de imprensa e de outros amadores de feiticeiros na Internet, já para não falar dos serviços secretos: um, de há uma semana na América de Trump, o grande laboratório do Big Brother; e outro dos nossos anos do lixo, entre a troika e o Governo PSD-CDS. No primeiro caso, trata-se do interrogatório do candidato a juiz do Supremo Tribunal Ben Kavanaugh, em que as mesmas armas, espingardas de tiro automático ou semiautomático, são descritas como “armas de assalto” (“assault weapon”), pelos que defendem o seu controlo, ou como “espingardas de desporto modernas” (“modern sporting rifles”), como entendem os defensores da interpretação literal da Segunda Emenda, para quem o direito de ter, transportar e exibir armas é intangível.
O exemplo português é um entre muitos dos anos do Governo da troika-PSD-CDS, que começam a ser perigosamente esquecidos. Quando começaram os cortes em salários, pensões, reformas, despesas sociais, durante dois ou três dias, mesmo os membros do Governo usavam a expressão verdadeira de “cortes”. Depois, de um dia para o outro, e de forma concertada, deixaram de falar de “cortes” para falar em “poupanças”. O mais grave é que, como no mundo do Big Brother, a expressão começou a impregnar a linguagem comum, a começar pela da comunicação social, que nesses dias e nalguns casos até hoje mostrou uma especial capacidade de ser manipulada pelo “economês”. Leia-se pois o 1984, ou “releia-se”, que é a forma politicamente correcta de se dizer que se leu sem se ter lido, até porque é um livro que não engana ninguém logo à primeira frase: “Era um dia de Abril, frio e cheio de sol, e os relógios batiam as treze horas.”

COMENTÁRIOS:
fernando ferreira franco, 22.09.2018 - P.P. não deve ter lido o mesmo 1984 que eu li já nos idos anos 70 do século passado. É certo que em Paris a leitura dos factos não era a mesma que em Portugal, mas P.P. está a escrever hoje, o que, no mínimo, lhe permite consultar pontos de vista. Ninguém naquela altura ficou com a ideia de que Orwel escrevia sobre o comunismo, não, o Winston era cada um de nós sob a hegemonia, já mais que evidente, da tecnologia sobre o discernimento, já se lia Jacques Ellul, Fred Hirsch e muito antes de Orwel já Aldous Huxley nos tinha transportado para essa distopia, tal como Zamiatine.
Orwel diz (pag. 274 da edição de 1975 em francês) “O progresso tecnológico só acontece quando, de algum modo, serve para reduzir a liberdade do ser humano”. Huxley já antes afirmararestam-nos duas hipóteses, ou a guerra total (a da bomba atómica) inerente ao fim da civilização ou, em guerras circunscritas, o totalitarismo supranacional, suscitado pelo caos social resultante do progresso tecnológico”. Incrível como Huxley consegue prever (quase um século antes) o que que se passa nos dias de hoje. Julgo perceber que P.P. está a atravessar um pesadelo, o de uma direita fóssil, sem cultura de percepção, da qual se quer livrar. Saúdo a sua chegada ao mundo dos vivos, mas aconselho-o a não se servir da cultura geral que, de tão fossilizada, se apresenta como a pior das iliteracias.
Nuno Silva, 22.09.2018: E o flagrante da manipulação mediática da guerra da Síria, incluindo o conhecimento dos serviços secretos europeus, de que estavam a ser recrutados fundamentalistas aos magotes, nas ruas e na internet, para espalhar a 'democracia e a liberdade' naquele país, que é uma ditadura em mudança, mas ao mesmo tempo um dos mais avançados na região (superior ao apartheid de Israel). E que ainda continua, quer na protecção aos piores e mais sanguinários terroristas cercados em Idlib, que usam civis escudos humanos, quer na recusa de apoio à reconstrução, que eles ajudaram a destruir, impedindo o regresso dos refugiados.
Ceratioidei,  Oceanos 22.09.2018 Excelente PP. Há pouco tempo, preocupado com o impacto que este livro de leitura obrigatória no penúltimo ano do Gymnasium teria nos sobrinhos netos, tentei conversar mas fui interrompido. Senta-te aqui, tio. Quem controla o passado controla o futuro e quem controla o presente controla o passado. Tu leste, nós estamos a ver em tempo real. Sentado em frente dos laptops mostraram-me exemplos sobre a manipulação da linguagem e das ideias. Fábricas de fakes, o método da desinformação, o financiamento, os objectivos, os trolls, com risos sarcásticos, olha este, e este, he’s a pranker, bro. Fiquei chocado com a facilidade com que lidam com isto, impressionado com a exactidão, veracidade e qualidade dos exemplos escolhidos. Agradeci dizendo ter aprendido alguma coisa, riram-se, não acreditaram.
DCM, charneca de caparica 22.09.2018 …: "quem controla as palavras controla as cabeças e o poder"... Seja na Venezuela, nas arábias, na Rússia, na China ou nos EUA. A diferença está na força ou fraqueza das oposições que também mais não pretendem do que impor o seu domínio, com mais ou menos compaixão pelos "danados da terra" agarrados à sua última réstia de esperança que lhes permite imaginar uma luz ao fundo do túnel ainda que muito ténue .




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