Uma estrutura circular, em
termos de começo e retorno à infância, o primeiro capítulo passado numa terra
transmontana, o último, décimo sexto, numa praia algarvia, já na adolescência
do narrador-protagonista. Pelo meio, colhem-se viagens no país ou no mundo, a
propósito dos quais - mundo e país - se dão pormenores de uma realidade passada
ou presente, em que a figura central, como autobiografia que pretende ser, é o
próprio narrador-protagonista, e o seu país, o universo do seu amor pátrio,
nele assim saliente, fim e início abraçando um país do norte transmontano ao
sul algarvio, nos seus espaços, nos seus movimentos, nas suas gentes, mas as
recordações da infância e adolescência trazendo o eco das suas afeições
primeiras, mau grado tantos dos distúrbios sofridos na vida, provando que os
tempos primeiros foram fundamentais no fortalecer do carácter.
«Cebola
crua com sal e broa», o último
livro publicado por Miguel de Sousa Tavares, autobiografia de leitura absorvente,
não só pelo relato de acontecimentos que igualmente por nós passaram, como por
neles enfileirarem figuras políticas do nosso reconhecimento, coadas no crivo
de uma subjectividade iradamente anti-salazarista, conquanto igualmente anti-comunista,
e onde uma escrita enxuta e expressiva apela, como chamariz de leitura.
Li
o livro com muito interesse, ao reconhecer no narrador-protagonista um carácter
de desassombro e frontalidade resultantes, provavelmente também, das
circunstâncias de um nascimento ilustre – filho de um conhecido político refractário
ao regime anterior, e de uma poetisa lírica de relevância progressiva em oportuno
contexto de mudança histórica, de que eles próprios foram também fautores – o
que, aliado à sua escrita igualmente desassombrada, em clareza de percepção dos
factos vivenciados, nos revela uma notável capacidade crítica, proporcionando
um repassar aprazível de casos que por nós também passaram, sem, todavia, tão
expressiva percepção da sua urdidura, desmontada pelo narrador, participante ou
assistente de muitos deles, nas suas várias tarefas de jornalista, advogado ou
repórter viajante, como “enviado especial”, o seu sonho de sempre. E essa
condição ilustre, aliada a uma impetuosidade e destemor desde criança revelados,
foram-lhe abrindo as portas da notoriedade, para além de uma qualidade de
leitura e escrita que lhe permitiram superiorizar-se a tantos colegas da sua caminhada
na vida difícil de independente por que optaria - conquanto a independência não
se possa medir em termos de um absoluto, as nossas reservas mentais de ódios ou
simpatias ou aversões quantas vezes condicionadas por interesses ou factores
poderosos em que a subjectividade acaba por sempre intervir.
Uma
autobiografia sendo relato de vivência pessoal, tende naturalmente a enaltecer o
seu protagonista, ainda que referindo factos que aparentemente o menorizam,
como é o caso do narrador que, em criança, racha a cabeça do colega com uma
pedrada e que assume a culpa, o que lhe dá a aura de coragem e honestidade como
componentes primordiais do seu carácter, a transparecer ao longo da obra. O facto
é que, tão explícito no denunciar de vilezas de cobardia ou de míseras sacanices
nacionais nos modos trampolineiros de arrebanhar dinheiros de horas
extraordinárias, por exemplo, nas embaixadas da nossa novel experiência
europeia, ou tantas outras acusações propícias a um deslizar na intriga
revisteira, não deixa de revelar os seus entusiasmos e simpatias, que se
polarizam em torno de Mário Soares, como segurador – juntamente com o General
Eanes – de uma nau a precipitar-se nos abismos, em naufrágios superiores aos das
navegações de outrora, porque significativos de uma assustadora tropelia moral
e mental a longo prazo. Mas dessas consequências não trata o livro, que dá
conta dos motivos do ódio a Salazar, no cinzento de uma época que não tinha,
certamente, a explosão dos meios de diversão que hoje, felizmente, transmite, e
só recorda a figura que, através dos seus esbirros, lhe prendeu tantas vezes o
pai, naturalmente por razões políticas pertinentes, do ponto de vista do
ditador. Contudo, ao longo da sua descrição, nele transparece por vezes o
repúdio pela tessitura temperamental de mesquinhez grotesca, de um povo fechado
ao bulício cultural de outros povos europeus.
Mas
é um prazer ler um relato de feitos que por nós passaram, recuperados segundo
uma expressiva visão crítica com que de um modo geral, compactuamos. Mas a sua
narrativa, que se inicia na infância, para testemunhar das dificuldades que se
viviam nos tempos salazarentos que obrigavam, por vezes a separações das
famílias, distribuídos os filhos por pessoas de família prestáveis, é logo
aligeirada pelo descritivo amável, em torno do menino Miguel, transferido, logo
após os seus seis anos, para uma aldeia do Marão, para casa do Tio Manuel, onde
aprendeu coisas rudes e decisivas, como os banhos gelados no tanque grande e os
lanches de “cebola crua com sal e broa” que, juntamente com as crianças
descalças no rude frio transmontano, lhe deram a imagem do país mísero e do
ditador que o governava com mão de ferro, mas que igualmente ajudaram à
formação do seu carácter de afectos. Prova isso, o retorno final do enredo à
sua adolescência, numa praia do Algarve onde, entre outras experiências,
acompanhava o pescador José Afonso a
apanhar lulas “ao candeio”, à luz do
Petromax, que “cumpria uma tripla função:
aquecia-nos do frio intenso, que fazia numa pequena embarcação descoberta em
mar aberto e de noite, mesmo em Julho ou Agosto; alumiava a escuridão da noite,
excepto naquelas noites mágicas de luar, em que a espuma das ondas tinha
reflexos de prata e tudo ficava quieto em redor, apenas dois homens a bordo de
uma embarcação de quatro metros de comprimento, unidos pelo esplendor da lua sobre
o mar e uma solidão partilhada de amigos; e, finalmente, a sua função
principal: atraía as lulas lá do fundo para a superfície – mesmo assim, nunca
acima das cinquenta ou sessenta braças. Passávamos a noite inteira a fazer o
movimento monótono de dar sacões cadenciados à linha que estava amarrada à
toneira (uma chumbada com uma espécie de alfinetes espetados, onde a lula
ficava presa, quando reagia ao movimento, atirando-se de boca aberta sobre a
toneira). Não havia isco, nem anzol, nem nada mais: era só isto e eu
perguntava-me quem teria sido o cérebro que descobrira esta forma de pescar
lulas”
Um livro, pois, que, narrando feitos idos, o 25 de Abril como ponto-chave
de uma viragem salvadora dos orgulhosos colaboradores nela, nem por um momento
refere aqueles outros compatriotas vivendo nas terras que o tal ditador
defendia, por respeito à sua História – compatriotas que tiveram que fugir de
escantilhão dessas colónias desprezadas na altura, pelos falsos adeptos dos
marxismos, e condenando os africanos aos malefícios dos seus futuros governos
de força e abandono, bem mais trágico, como se tem visto, mas cinicamente silenciado,
do que o colonialismo paulatinamente formador de nações bem mais desenvoltas do
que as que figuram hoje nos mapas.
Sim, Miguel de Sousa Tavares é um escritor escorreito e firme. Mas
desprezador de alguns seus concidadãos, é inegável. Como sua concidadã, natural
de Moçambique, então pertencente à sua pátria, aponto a pequenez destes
cérebros que julgam tudo saber, e ignoram o essencial: os valores pátrios,
transmitidos na História, o respeito por esses que a fizeram grande, o desprezo
pelos que a encurtaram.
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