segunda-feira, 24 de setembro de 2018

A propósito do último livro de Miguel de Sousa Tavares



Uma estrutura circular, em termos de começo e retorno à infância, o primeiro capítulo passado numa terra transmontana, o último, décimo sexto, numa praia algarvia, já na adolescência do narrador-protagonista. Pelo meio, colhem-se viagens no país ou no mundo, a propósito dos quais - mundo e país - se dão pormenores de uma realidade passada ou presente, em que a figura central, como autobiografia que pretende ser, é o próprio narrador-protagonista, e o seu país, o universo do seu amor pátrio, nele assim saliente, fim e início abraçando um país do norte transmontano ao sul algarvio, nos seus espaços, nos seus movimentos, nas suas gentes, mas as recordações da infância e adolescência trazendo o eco das suas afeições primeiras, mau grado tantos dos distúrbios sofridos na vida, provando que os tempos primeiros foram fundamentais no fortalecer do carácter.
«Cebola crua com sal e broa», o último livro publicado por Miguel de Sousa Tavares, autobiografia de leitura absorvente, não só pelo relato de acontecimentos que igualmente por nós passaram, como por neles enfileirarem figuras políticas do nosso reconhecimento, coadas no crivo de uma subjectividade iradamente anti-salazarista, conquanto igualmente anti-comunista, e onde uma escrita enxuta e expressiva apela, como chamariz de leitura.
Li o livro com muito interesse, ao reconhecer no narrador-protagonista um carácter de desassombro e frontalidade resultantes, provavelmente também, das circunstâncias de um nascimento ilustre – filho de um conhecido político refractário ao regime anterior, e de uma poetisa lírica de relevância progressiva em oportuno contexto de mudança histórica, de que eles próprios foram também fautores – o que, aliado à sua escrita igualmente desassombrada, em clareza de percepção dos factos vivenciados, nos revela uma notável capacidade crítica, proporcionando um repassar aprazível de casos que por nós também passaram, sem, todavia, tão expressiva percepção da sua urdidura, desmontada pelo narrador, participante ou assistente de muitos deles, nas suas várias tarefas de jornalista, advogado ou repórter viajante, como “enviado especial”, o seu sonho de sempre. E essa condição ilustre, aliada a uma impetuosidade e destemor desde criança revelados, foram-lhe abrindo as portas da notoriedade, para além de uma qualidade de leitura e escrita que lhe permitiram superiorizar-se a tantos colegas da sua caminhada na vida difícil de independente por que optaria - conquanto a independência não se possa medir em termos de um absoluto, as nossas reservas mentais de ódios ou simpatias ou aversões quantas vezes condicionadas por interesses ou factores poderosos em que a subjectividade acaba por sempre intervir.
Uma autobiografia sendo relato de vivência pessoal, tende naturalmente a enaltecer o seu protagonista, ainda que referindo factos que aparentemente o menorizam, como é o caso do narrador que, em criança, racha a cabeça do colega com uma pedrada e que assume a culpa, o que lhe dá a aura de coragem e honestidade como componentes primordiais do seu carácter, a transparecer ao longo da obra. O facto é que, tão explícito no denunciar de vilezas de cobardia ou de míseras sacanices nacionais nos modos trampolineiros de arrebanhar dinheiros de horas extraordinárias, por exemplo, nas embaixadas da nossa novel experiência europeia, ou tantas outras acusações propícias a um deslizar na intriga revisteira, não deixa de revelar os seus entusiasmos e simpatias, que se polarizam em torno de Mário Soares, como segurador – juntamente com o General Eanes – de uma nau a precipitar-se nos abismos, em naufrágios superiores aos das navegações de outrora, porque significativos de uma assustadora tropelia moral e mental a longo prazo. Mas dessas consequências não trata o livro, que dá conta dos motivos do ódio a Salazar, no cinzento de uma época que não tinha, certamente, a explosão dos meios de diversão que hoje, felizmente, transmite, e só recorda a figura que, através dos seus esbirros, lhe prendeu tantas vezes o pai, naturalmente por razões políticas pertinentes, do ponto de vista do ditador. Contudo, ao longo da sua descrição, nele transparece por vezes o repúdio pela tessitura temperamental de mesquinhez grotesca, de um povo fechado ao bulício cultural de outros povos europeus.
Mas é um prazer ler um relato de feitos que por nós passaram, recuperados segundo uma expressiva visão crítica com que de um modo geral, compactuamos. Mas a sua narrativa, que se inicia na infância, para testemunhar das dificuldades que se viviam nos tempos salazarentos que obrigavam, por vezes a separações das famílias, distribuídos os filhos por pessoas de família prestáveis, é logo aligeirada pelo descritivo amável, em torno do menino Miguel, transferido, logo após os seus seis anos, para uma aldeia do Marão, para casa do Tio Manuel, onde aprendeu coisas rudes e decisivas, como os banhos gelados no tanque grande e os lanches de “cebola crua com sal e broa” que, juntamente com as crianças descalças no rude frio transmontano, lhe deram a imagem do país mísero e do ditador que o governava com mão de ferro, mas que igualmente ajudaram à formação do seu carácter de afectos. Prova isso, o retorno final do enredo à sua adolescência, numa praia do Algarve onde, entre outras experiências, acompanhava o pescador José Afonso a apanhar lulas “ao candeio”, à luz do Petromax, que “cumpria uma tripla função: aquecia-nos do frio intenso, que fazia numa pequena embarcação descoberta em mar aberto e de noite, mesmo em Julho ou Agosto; alumiava a escuridão da noite, excepto naquelas noites mágicas de luar, em que a espuma das ondas tinha reflexos de prata e tudo ficava quieto em redor, apenas dois homens a bordo de uma embarcação de quatro metros de comprimento, unidos pelo esplendor da lua sobre o mar e uma solidão partilhada de amigos; e, finalmente, a sua função principal: atraía as lulas lá do fundo para a superfície – mesmo assim, nunca acima das cinquenta ou sessenta braças. Passávamos a noite inteira a fazer o movimento monótono de dar sacões cadenciados à linha que estava amarrada à toneira (uma chumbada com uma espécie de alfinetes espetados, onde a lula ficava presa, quando reagia ao movimento, atirando-se de boca aberta sobre a toneira). Não havia isco, nem anzol, nem nada mais: era só isto e eu perguntava-me quem teria sido o cérebro que descobrira esta forma de pescar lulas”
Um livro, pois, que, narrando feitos idos, o 25 de Abril como ponto-chave de uma viragem salvadora dos orgulhosos colaboradores nela, nem por um momento refere aqueles outros compatriotas vivendo nas terras que o tal ditador defendia, por respeito à sua História – compatriotas que tiveram que fugir de escantilhão dessas colónias desprezadas na altura, pelos falsos adeptos dos marxismos, e condenando os africanos aos malefícios dos seus futuros governos de força e abandono, bem mais trágico, como se tem visto, mas cinicamente silenciado, do que o colonialismo paulatinamente formador de nações bem mais desenvoltas do que as que figuram hoje nos mapas.
Sim, Miguel de Sousa Tavares é um escritor escorreito e firme. Mas desprezador de alguns seus concidadãos, é inegável. Como sua concidadã, natural de Moçambique, então pertencente à sua pátria, aponto a pequenez destes cérebros que julgam tudo saber, e ignoram o essencial: os valores pátrios, transmitidos na História, o respeito por esses que a fizeram grande, o desprezo pelos que a encurtaram.


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