I - A cama
Um pai – Jay, personagem
principal - que segue um seminário sobre a Odisseia, realizado por um
filho – Autor, Narrador, Dan –
professor de estudos clássicos numa Universidade novaiorquina, entre Janeiro e
Maio, com um cruzeiro de dez dias, em Junho, no Mediterrâneo, refazendo o
percurso odisseico de Ulisses, no regresso deste a Ítaca, após o desastre de
Tróia, matéria da Odisseia. Mas o navio do cruzeiro não pararia em Ítaca,
ancoradouro final do herói homérico.
Um filho que, à semelhança de Telémaco em busca de notícias sobre
seu pai, Ulisses, encontra o pai - de que se fora afastando na vida - e o
recupera em compreensão e estima, pouco antes da morte deste – morte de que a
não paragem do cruzeiro em Ítaca pareceu ser símbolo de previsão.
Uma vasta família de irmãos e sobrinhos, e amigos e alunos,
idêntica a tantos grupos familiares que compõem as sociedades, uma visão de
afecto e cordialidade, mau grado desavenças ocasionais, justificativas de afastamentos,
que a doença e a proximidade da morte fazem, muitas vezes, eliminar, livro que,
não fazendo a apologia da família, porque se limita a identificar a sua, nas
suas originalidades ou especificidades, pode ser encarado como espécie de
Bíblia muito bela dos afectos humanos da actualidade, numa sociedade a
encaminhar-se, quantas vezes, para a “selva oscura” da introdução dantesca ao
seu Inferno.
Um livro de confrontos, de paralelismos, de simbologias, que as
próprias deduções etimológicas contribuem para enriquecer, à medida da evolução
das intrigas em paralelo, de recuos e avanços numa estruturação circular, de
confronto permanente. Um livro que se nos vai revelando como espécie de
sinfonia em andamentos contínuos, de alternância e circularidade e paralelismos,
em analepses e prolepses nos espaços e nos tempos, livro que nos enriquece
culturalmente e moralmente, conduzindo-nos o espírito por uma original
percepção da dimensão humana na sensibilidade e na mente, o ontem e o hoje,
afinal, processando-se em idênticos espasmos de indecisões, de artimanhas e
superação dos obstáculos, de desafios vencidos, de luta, de esforço de
recuperação. Um livro de extrema harmonia e simplicidade, numa escrita
educativa, analítica, livro didáctico e simultaneamente urdido com extrema
perícia de enquadramentos e desmistificação do maravilhoso a comandar os
destinos da criação clássica, na visualização contemporânea, mantendo embora a
magia que a eternizou. Um livro sem rebuscamentos retóricos, verdadeiro,
sincero, comezinho, espécie de bíblia dos novos tempos, numa sociedade em crise
de valores, livro que se lê e relê, num retomar de esclarecimento, onde a
etimologia das palavras-chave orienta sobre o simbolismo dos percursos humanos: “UMA ODISSEIA – UM PAI, UM FILHO
E UMA EPOPEIA» de DANIEL MENDELSOHN.
Um professor – Dan - entusiasta do seu ofício, que
nos ensina, a nós que o lemos, como ensina os seus alunos, indo ao cerne das
questões, em apelo constante à interpretação daqueles – e nossa, numa técnica
didáctica que se entrosa na literatura policial dos nossos tempos, na disciplina
dedutiva das mentes detectivescas das novelas policiais. E as respostas dos
alunos, como as de Jay ou as deduções do próprio professor, vão criando a
empatia por esse mundo do caso referido, que, ao transpor o clássico na sua
magia para o rigor da objectividade moderna, assente sobre os valores da
psicologia – mais experiente a interpretação de Jay, ou mais sensível e por
vezes estouvada, embora igualmente arguta, a dos alunos - constitui, para lá
desse processo didáctico de tão extremo impacto pedagógico, uma constatação
acerca da eterna semelhança do homem e dos casos humanos, os antigos como
arquétipos, pese embora o universo mágico de que se revestem.
E uma cama,
como símbolo último de anagnórise (reconhecimento), usada
como estratagema por Penélope, falando em deslocação do seu leito, para o
repouso de Ulisses, naquele dia do morticínio dos pretendentes, para o
desmascarar, fazendo-o explicar o segredo da cama inamovível, construída numa oliveira,
à roda da qual se fizera a casa de Ítaca, ou palácio de Ulisses, e assim se
denunciando à esposa, ao referir, com ternura, embora também com momentânea suspeita
da infidelidade de Penélope, o segredo da sua fixidez, só de ambos conhecido.
Paralelamente, também a cama da infância de Dan, construída pelo seu pai Jay, de uma porta servindo de estrado, ao qual Jay aparafusara rijos pés de
madeira, cama que o filho transportara para a sua casa de Nova Iorque, onde o
pai dormira muitas vezes durante o seminário sobre a Odisseia, e para onde o filho, regressado do hospital, por
premências de trabalho, nesse último dia do pai na Terra, ao lançar sobre a cama da porta como segredo, os seus livros de estudo para o dia seguinte, compreendera, só então, a
referência do pai, no hospital, na sua última palavra em vida - a “porta”, batendo com a mão no colchão da cama
do hospital, denunciando assim, ao filho inquieto, a sua “ausência”, conquanto
esclarecida, via-o então, nesse segredo divertido da “porta” de que ele dotara a cama do
filho. Camas, pois, que guardam um segredo suspenso do passado, segredo simbolizando a própria estabilidade da
família, sendo essa, afinal, a grande
lição desta obra de Daniel
Mendelsohn, construída, em torno dos semas
que procurou nos chavões etimológicos odisseicos, impregnados de simbologia, lição que converge para um conceito de
universalidade e permanência das vidas humanas em redor das famílias, na
travessia dos tempos.
II – Uma estrutura articulada com a
justificação etimológica
São seis as partes em que se divide a obra, considerando a última – Agradecimentos – com a identificação
das personagens do seu enredo narrativo de tantos afectos – como fazendo parte
também dessa estrutura de uma colossal “Bíblia dos nossos tempos”, com, para
parafrasear as intenções didácticas do seu autor, a descodificação, de todos
conhecida, da etimologia da palavra “Bíblia”, que deriva do grego “Biblos” – O Livro.
Transcrevo esses títulos, com as datas abrangendo a maior ou menor
extensão dos factos narrados em torno da realidade :
1- O
PROÉMIO (INVOCAÇÃO), abrangendo
as datas 1964 – 2011.
2- TELEMAQUIA
(EDUCAÇÃO) / Janeiro/ Fevereiro de 2011, subdividido:
PAIDEUSIS – (Pais E Filhos)
HOMOPHROSINÊ (MARIDOS E MULHERES)
APÓLOGOI (AVENTURAS)
3- NOSTOS
(REGRESSO A CASA)
4- ANAGNÓRISIS
(RECONHECIMENTO), Maio
5- SÊMA
(O SINAL), 6 de Abril de 2012
E, finalmente, AGRADECIMENTOS, em demonstração de gratidão e de afectos, retomando
as figuras reais do entrecho autobiográfico, que o ajudaram na demanda desse
pai desconhecido, esclarecendo dúvidas ou traduzindo experiências dele desconhecidas,
vindas desse passado, a própria família que construiu, incluída nesse rol das
suas vivências de ternura.
Cada uma das partes sendo iniciada por um
breve texto clarificador, transcrevo-os na sua sequência, que assim vai
desbravando os caminhos dessas viagens que, partindo da Odisseia, se desdobra em pistas de um perfeito ajustamento com as
evocações familiares que tanto traduzem de real afecto, pesem embora as cisões
próprias da diversidade temperamental e outras que distinguem o universo
humano:
Em PROÉMIO (INVOCAÇÃO), eis o texto, extraído da Poética
de Aristóteles:
(1964-2011) – “Com efeito, o argumento da
Odisseia não é longo: certo homem anda errante muitos anos fora do seu país,
vigiado por Poséidon e sozinho, e, entretanto, em sua casa, os seus bens são
desbaratados por pretendentes que conspiram também contra o seu filho. Então,
chega ele, depois de sofrer uma tempestade e, dando-se a conhecer a alguns,
ataca e salva-se, matando os seus inimigos. Isto é o enredo propriamente dito;
tudo o mais, são episódios.”
Em TELEMAQUIA (EDUCAÇÃO)
é o seguinte o texto
introdutório, extraído de um “Comentador antigo a propósito da Odisseia, 1284 («Vai, primeiro, a Pilos e
interroga o divino Nestor»):
“(…) o pretexto para a viagem de Telémaco é a
investigação acerca de seu pai, mas para Atena, que a aconselha, o objectivo é
a educação. O filho não se teria tornado digno de seu pai, se não tivesse ouvido
os companheiros de seu pai falar dos feitos deste; ele sabe como proceder para
com seu pai, baseando-se nas histórias que ouviu contar acerca dele.”
Em APÓLOGOI (AVENTURAS), um trecho
de PSEUDO HERÁCLITO, «Problemas Homéricos» (I Século d. C.):
“Claramente, se alguém desejasse examinar de
perto as errâncias de Ulisses, descobriria que são alegóricas”.
Em NOSTOS
(REGRESSO A CASA), Abril: “(Nostos): Regresso;
(nostoi), o regresso dos heróis de Tróia, título de vários poemas hoje perdidos. (nóstimos, o adjectivo derivado de nostos:
«Semelhante a um nostos): essencial,
valioso, perfeito, a melhor parte de qualquer coisa”. (Texto extraído de E.
A. SOPHOCLES, Greek Lexicon of the Roman
and Bizantine Periods – from B.C. 146 to A.D.1100)
Em ANAGNÓRISIS (RECONHECIMENTO) Maio,
texto extraído da POÉTICA DE Aristóteles: “Um «reconhecimento», como o
próprio termo implica, é uma mudança da ignorância para o conhecimento (…)
quando reconhecimento é mais eficiente é quando coincide com uma reviravolta da
fortuna.”
Em SÊMA (O SINAL), 6 de Abril de 2012 – (dia
da morte do Pai), o texto é da
própria Odisseia, 23 202 - 4:
«Assim
te nomeio o sinal notável. Mas não sei, ó mulher,
Se a
minha cama ainda está no sítio onde estava,
Ou se
alguém a levou, cortando o tronco da oliveira (…)»-
Eis-nos pois, perante uma extraordinária
obra, que, partindo de algo de comum nestes tempos onde existem esferas de
cultura que tantos gostam ou gostariam de seguir, (como o fez o pai de Dan, que
pôde frequentar um Seminário sem, certamente, seguir as vias normais de
inscrição, e desejando recuperar estudos que interrompera em jovem), vai
desbravando um livro clássico, numa espécie de simplificação e até banalização dos
mundos humanos, pelo paralelismo, trazendo, embora, tanto enriquecimento
cultural, em demonstrações de vária ordem, quer viageira, quer narrativa, quer
interpretativa, quer literária, quer lexical, pelo desvendamento de tantos
termos marcantes, de que apenas citarei alguns :
arkhê
kakôn, por exemplo,
significando “a origem de todos os males”,
é frequente na literatura grega, referindo
causa de guerras - (na de Tróia, por exemplo, a fuga de Helena com Páris, ou da
tragédia de Édipo, o assassínio do seu próprio pai, sem o saber, que o torna
esposo da mãe) – étimos que aparecem em arcaico,
arquétipo, cacophonia…). Ou a questão do “Ninguém” astucioso da identificação subtil de Ulisses junto de
Polifemo, que, quando cegado por Ulisses e companheiros que lhe espetam uma
estaca afiada no único olho, Polifemo responde aos vizinhos fora da caverna,
que ele chamara em berros de dor: “Ninguém está a matar-me!”, o que os faz abalar, enganados pelo trocadilho,
embora Daniel Mendelsohn demonstre
seguidamente, pela decomposição dos termos gregos correspondentes, que ninguém pode significar igualmente alguém, tornando o trocadilho ainda mais
enriquecido, pela denúncia de uma artimanha do astuto Ulisses, indicativa de um
carácter orgulhoso, além da sua mente brilhante.
Outras palavras são desmontadas na sua
etimologia e simbolismo, da mesma forma que nos vai presenteando com diferenciações
entre os proémios de cada uma das epopeias clássicas, ou colocando aqui e além
excertos delas, numa justificação cabal que apetece retomar, não só pelo
aprofundamento literário, como filosófico, pela constatação da redução dos
espaços de Tróia, Ogígia, e outros mais pontos da viagem odisseica, refeita
durante o cruzeiro, espaços diminuídos na sua aparência, que não correspondem,
seguramente, aos espaços descritos na Odisseia. Mas dessa viagem perduram, além
da perfeita elegância e simpatia, de todos reconhecida, do um Jay desconhecido
de Dan, a força de ânimo que este incute ao filho, levando-o a visitar a gruta
de Ogígia, vencendo a resistência deste, de claustrofobia, pegando-lhe no
braço, a pretexto de ser ele próprio a precisar de auxílio. E Ítaca, não seria
visitada, por terem de apanhar o avião na Turquia, de regresso aos Estados
Unidos. Um ano depois, dá-se a morte do Pai, cuja causa remota (“arkhê kakôn”) fora um coágulo no
cérebro, ironia trágica, devido a uma queda num parque de estacionamento na
Califórnia, num dia de reunião familiar, os filhos e respectivas famílias vindo
visitar os pais, de várias partes dos Estados Unidos, em afectuosa demonstração
de carinho pelos pais.
Um
livro oferecido pela Mirene,
minha sobrinha, em dia de anos, com um “Espero
que esta Odisseia lhe seja de leitura agradável”. Foi muito agradável.
Agradeço-lhe do fundo do coração.
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