domingo, 9 de setembro de 2018

Uma Bíblia do nosso tempo



I - A cama
Um paiJay, personagem principal - que segue um seminário sobre a Odisseia, realizado por um filho – Autor, Narrador, Dan – professor de estudos clássicos numa Universidade novaiorquina, entre Janeiro e Maio, com um cruzeiro de dez dias, em Junho, no Mediterrâneo, refazendo o percurso odisseico de Ulisses, no regresso deste a Ítaca, após o desastre de Tróia, matéria da Odisseia. Mas o navio do cruzeiro não pararia em Ítaca, ancoradouro final do herói homérico.
Um filho que, à semelhança de Telémaco em busca de notícias sobre seu pai, Ulisses, encontra o pai - de que se fora afastando na vida - e o recupera em compreensão e estima, pouco antes da morte deste – morte de que a não paragem do cruzeiro em Ítaca pareceu ser símbolo de previsão.
Uma vasta família de irmãos e sobrinhos, e amigos e alunos, idêntica a tantos grupos familiares que compõem as sociedades, uma visão de afecto e cordialidade, mau grado desavenças ocasionais, justificativas de afastamentos, que a doença e a proximidade da morte fazem, muitas vezes, eliminar, livro que, não fazendo a apologia da família, porque se limita a identificar a sua, nas suas originalidades ou especificidades, pode ser encarado como espécie de Bíblia muito bela dos afectos humanos da actualidade, numa sociedade a encaminhar-se, quantas vezes, para a “selva oscura” da introdução dantesca ao seu Inferno.
Um livro de confrontos, de paralelismos, de simbologias, que as próprias deduções etimológicas contribuem para enriquecer, à medida da evolução das intrigas em paralelo, de recuos e avanços numa estruturação circular, de confronto permanente. Um livro que se nos vai revelando como espécie de sinfonia em andamentos contínuos, de alternância e circularidade e paralelismos, em analepses e prolepses nos espaços e nos tempos, livro que nos enriquece culturalmente e moralmente, conduzindo-nos o espírito por uma original percepção da dimensão humana na sensibilidade e na mente, o ontem e o hoje, afinal, processando-se em idênticos espasmos de indecisões, de artimanhas e superação dos obstáculos, de desafios vencidos, de luta, de esforço de recuperação. Um livro de extrema harmonia e simplicidade, numa escrita educativa, analítica, livro didáctico e simultaneamente urdido com extrema perícia de enquadramentos e desmistificação do maravilhoso a comandar os destinos da criação clássica, na visualização contemporânea, mantendo embora a magia que a eternizou. Um livro sem rebuscamentos retóricos, verdadeiro, sincero, comezinho, espécie de bíblia dos novos tempos, numa sociedade em crise de valores, livro que se lê e relê, num retomar de esclarecimento, onde a etimologia das palavras-chave orienta sobre o simbolismo dos percursos humanosUMA ODISSEIA – UM PAI, UM FILHO E UMA EPOPEIA» de DANIEL MENDELSOHN.
Um professorDan - entusiasta do seu ofício, que nos ensina, a nós que o lemos, como ensina os seus alunos, indo ao cerne das questões, em apelo constante à interpretação daqueles – e nossa, numa técnica didáctica que se entrosa na literatura policial dos nossos tempos, na disciplina dedutiva das mentes detectivescas das novelas policiais. E as respostas dos alunos, como as de Jay ou as deduções do próprio professor, vão criando a empatia por esse mundo do caso referido, que, ao transpor o clássico na sua magia para o rigor da objectividade moderna, assente sobre os valores da psicologia – mais experiente a interpretação de Jay, ou mais sensível e por vezes estouvada, embora igualmente arguta, a dos alunos - constitui, para lá desse processo didáctico de tão extremo impacto pedagógico, uma constatação acerca da eterna semelhança do homem e dos casos humanos, os antigos como arquétipos, pese embora o universo mágico de que se revestem.
 E uma cama, como símbolo último de anagnórise (reconhecimento), usada como estratagema por Penélope, falando em deslocação do seu leito, para o repouso de Ulisses, naquele dia do morticínio dos pretendentes, para o desmascarar, fazendo-o explicar o segredo da cama inamovível, construída numa oliveira, à roda da qual se fizera a casa de Ítaca, ou palácio de Ulisses, e assim se denunciando à esposa, ao referir, com ternura, embora também com momentânea suspeita da infidelidade de Penélope, o segredo da sua fixidez, só de ambos conhecido. Paralelamente, também a cama da infância de Dan, construída pelo seu pai Jay, de uma porta servindo de estrado, ao qual Jay aparafusara rijos pés de madeira, cama que o filho transportara para a sua casa de Nova Iorque, onde o pai dormira muitas vezes durante o seminário sobre a Odisseia, e para onde o filho, regressado do hospital, por premências de trabalho, nesse último dia do pai na Terra, ao lançar sobre a cama da porta como segredo, os seus livros de estudo para o dia seguinte, compreendera, só então, a referência do pai, no hospital, na sua última palavra em vida - a “porta”, batendo com a mão no colchão da cama do hospital, denunciando assim, ao filho inquieto, a sua “ausência”, conquanto esclarecida, via-o então, nesse segredo divertido da “porta” de que ele dotara a cama do filho. Camas, pois, que guardam um segredo suspenso do passado,  segredo simbolizando a própria estabilidade da família, sendo essa, afinal, a grande lição desta obra de Daniel Mendelsohn, construída, em torno dos semas que procurou nos chavões etimológicos odisseicos, impregnados de simbologia, lição que converge para um conceito de universalidade e permanência das vidas humanas em redor das famílias, na travessia dos tempos.

II – Uma estrutura articulada com a justificação etimológica
São seis as partes em que se divide a obra, considerando a última – Agradecimentos – com a identificação das personagens do seu enredo narrativo de tantos afectos – como fazendo parte também dessa estrutura de uma colossal “Bíblia dos nossos tempos”, com, para parafrasear as intenções didácticas do seu autor, a descodificação, de todos conhecida, da etimologia da palavra “Bíblia”, que deriva do grego “Biblos” – O Livro.
Transcrevo esses títulos, com as datas abrangendo a maior ou menor extensão dos factos narrados em torno da realidade :
1-      O PROÉMIO (INVOCAÇÃO), abrangendo as datas 1964 – 2011.
2-      TELEMAQUIA (EDUCAÇÃO) / Janeiro/ Fevereiro de 2011, subdividido:
         PAIDEUSIS – (Pais E Filhos)
         HOMOPHROSINÊ (MARIDOS E MULHERES)
        APÓLOGOI (AVENTURAS)
3-      NOSTOS (REGRESSO A CASA)
4-      ANAGNÓRISIS (RECONHECIMENTO), Maio
5-      SÊMA (O SINAL), 6 de Abril de 2012
E, finalmente, AGRADECIMENTOS, em demonstração de gratidão e de afectos, retomando as figuras reais do entrecho autobiográfico, que o ajudaram na demanda desse pai desconhecido, esclarecendo dúvidas ou traduzindo experiências dele desconhecidas, vindas desse passado, a própria família que construiu, incluída nesse rol das suas vivências de ternura.

Cada uma das partes sendo iniciada por um breve texto clarificador, transcrevo-os na sua sequência, que assim vai desbravando os caminhos dessas viagens que, partindo da Odisseia, se desdobra em pistas de um perfeito ajustamento com as evocações familiares que tanto traduzem de real afecto, pesem embora as cisões próprias da diversidade temperamental e outras que distinguem o universo humano:
Em PROÉMIO (INVOCAÇÃO), eis o texto, extraído da Poética de Aristóteles:
(1964-2011) – “Com efeito, o argumento da Odisseia não é longo: certo homem anda errante muitos anos fora do seu país, vigiado por Poséidon e sozinho, e, entretanto, em sua casa, os seus bens são desbaratados por pretendentes que conspiram também contra o seu filho. Então, chega ele, depois de sofrer uma tempestade e, dando-se a conhecer a alguns, ataca e salva-se, matando os seus inimigos. Isto é o enredo propriamente dito; tudo o mais, são episódios.”
Em TELEMAQUIA (EDUCAÇÃO) é o seguinte o texto introdutório, extraído de umComentador antigo a propósito da Odisseia, 1284 Vai, primeiro, a Pilos e interroga o divino Nestor»):
“(…) o pretexto para a viagem de Telémaco é a investigação acerca de seu pai, mas para Atena, que a aconselha, o objectivo é a educação. O filho não se teria tornado digno de seu pai, se não tivesse ouvido os companheiros de seu pai falar dos feitos deste; ele sabe como proceder para com seu pai, baseando-se nas histórias que ouviu contar acerca dele.”
Em APÓLOGOI (AVENTURAS), um trecho de PSEUDO HERÁCLITO, «Problemas Homéricos» (I Século d. C.):
Claramente, se alguém desejasse examinar de perto as errâncias de Ulisses, descobriria que são alegóricas”.
Em NOSTOS (REGRESSO A CASA), Abril: “(Nostos): Regresso; (nostoi), o regresso dos heróis de Tróia, título de vários poemas hoje perdidos. (nóstimos, o adjectivo derivado de nostos: «Semelhante a um nostos): essencial, valioso, perfeito, a melhor parte de qualquer coisa”. (Texto extraído de E. A. SOPHOCLES, Greek Lexicon of the Roman and Bizantine Periods – from B.C. 146 to A.D.1100)
Em ANAGNÓRISIS (RECONHECIMENTO) Maio, texto extraído da POÉTICA DE Aristóteles: “Um «reconhecimento», como o próprio termo implica, é uma mudança da ignorância para o conhecimento (…) quando reconhecimento é mais eficiente é quando coincide com uma reviravolta da fortuna.”
Em SÊMA (O SINAL), 6 de Abril de 2012 – (dia da morte do Pai), o texto é da própria Odisseia, 23 202 - 4:
«Assim te nomeio o sinal notável. Mas não sei, ó mulher,
Se a minha cama ainda está no sítio onde estava,
Ou se alguém a levou, cortando o tronco da oliveira (…)»-
Eis-nos pois, perante uma extraordinária obra, que, partindo de algo de comum nestes tempos onde existem esferas de cultura que tantos gostam ou gostariam de seguir, (como o fez o pai de Dan, que pôde frequentar um Seminário sem, certamente, seguir as vias normais de inscrição, e desejando recuperar estudos que interrompera em jovem), vai desbravando um livro clássico, numa espécie de simplificação e até banalização dos mundos humanos, pelo paralelismo, trazendo, embora, tanto enriquecimento cultural, em demonstrações de vária ordem, quer viageira, quer narrativa, quer interpretativa, quer literária, quer lexical, pelo desvendamento de tantos termos marcantes, de que apenas citarei alguns :

arkhê kakôn, por exemplo, significando “a origem de todos os males”,  é frequente na literatura grega, referindo causa de guerras - (na de Tróia, por exemplo, a fuga de Helena com Páris, ou da tragédia de Édipo, o assassínio do seu próprio pai, sem o saber, que o torna esposo da mãe) – étimos que aparecem em arcaico, arquétipo, cacophonia…). Ou a questão do “Ninguém” astucioso da identificação subtil de Ulisses junto de Polifemo, que, quando cegado por Ulisses e companheiros que lhe espetam uma estaca afiada no único olho, Polifemo responde aos vizinhos fora da caverna, que ele chamara em berros de dor: “Ninguém está a matar-me!”, o que os faz abalar, enganados pelo trocadilho, embora Daniel Mendelsohn demonstre seguidamente, pela decomposição dos termos gregos correspondentes, que ninguém pode significar igualmente alguém, tornando o trocadilho ainda mais enriquecido, pela denúncia de uma artimanha do astuto Ulisses, indicativa de um carácter orgulhoso, além da sua mente brilhante.
Outras palavras são desmontadas na sua etimologia e simbolismo, da mesma forma que nos vai presenteando com diferenciações entre os proémios de cada uma das epopeias clássicas, ou colocando aqui e além excertos delas, numa justificação cabal que apetece retomar, não só pelo aprofundamento literário, como filosófico, pela constatação da redução dos espaços de Tróia, Ogígia, e outros mais pontos da viagem odisseica, refeita durante o cruzeiro, espaços diminuídos na sua aparência, que não correspondem, seguramente, aos espaços descritos na Odisseia. Mas dessa viagem perduram, além da perfeita elegância e simpatia, de todos reconhecida, do um Jay desconhecido de Dan, a força de ânimo que este incute ao filho, levando-o a visitar a gruta de Ogígia, vencendo a resistência deste, de claustrofobia, pegando-lhe no braço, a pretexto de ser ele próprio a precisar de auxílio. E Ítaca, não seria visitada, por terem de apanhar o avião na Turquia, de regresso aos Estados Unidos. Um ano depois, dá-se a morte do Pai, cuja causa remota (“arkhê kakôn”) fora um coágulo no cérebro, ironia trágica, devido a uma queda num parque de estacionamento na Califórnia, num dia de reunião familiar, os filhos e respectivas famílias vindo visitar os pais, de várias partes dos Estados Unidos, em afectuosa demonstração de carinho pelos pais.

Um livro oferecido pela Mirene, minha sobrinha, em dia de anos, com um “Espero que esta Odisseia lhe seja de leitura agradável”. Foi muito agradável. Agradeço-lhe do fundo do coração.



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