A crónica de João Miguel Tavares é, como sempre, impregnada de um bom senso
próprio de uma mentalidade aberta a todas as conquistas e novos ventos que a
Revolução trouxe à sociedade, contrariando os convencionalismos quantas vezes
mais aparentes do que reais, da sociedade de ontem, idênticos aos de hoje, e
que pertencem a uns como a outros, a todas as sociedades, brancas ou de outras
cores, mantendo as distanciações resultantes quer de ódios quer de diferenças
educacionais ou sociais. As imagens de agora, no que se refere ao desporto, por
exemplo, de camaradagem e ou de amizade entre negros e brancos, em nada diferem
das que colhíamos quando Eusébio era acarinhado ou, nas classes mais educadas,
Craveirinha respeitado como escritor, ou o Dr Torres da Académica era médico obstetra
no Hospital de Lourenço Marques, além dos colegas com quem acamaradei, cá e lá, sem comichões
racistas. Mas a pecha ficou, e de vez em quando retoma em fereza, atacando
todos os representantes dos convencionalismos segregacionistas quer de antanho
quer de agora, no ódio dos negros contra os brancos, o sonho de transformação
social de Luther King, mantendo-se com toda a acuidade, ainda, mau grado as
simpatias e amizades que tantas vezes se estabelecem entre uns e outros, como
acontece em todas as camadas sociais. Mas a rebeldia que se processa em alguns,
fruto das suas vaidades de conquistadores de êxitos, caso da tenista citada, logo
atrai os defensores dos oprimidos, num alarido maldoso e grotesco. João Miguel
Tavares esclarece-o bem, seguido de alguns comentadores. Eu recordo as
redondilhas camonianas a uma escrava negra, sua amada, que supera em doçura e
beleza o louro convencional das temáticas do amor clássico, a provar que o amor
existe desde sempre, e a escravatura também, contanto que muitas vezes dulcificada.
Pelo amor e pela beleza. Ontem como hoje. Apesar da cor divergente.
Endechas a
Bárcara escrava
Luís de
Camões
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo,
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que me tem cativo,
Porque nela vivo,
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.
Fosse mais formosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.
I -OPINIÃO: Serena Williams e o vício da
vitimização
O discurso anti-racista de hoje
é demasiado parecido com o discurso racista de antigamente.
PÚBLICO, 10 de Setembro de 2018
O comportamento de Serena Williams na final
do Open dos Estados Unidos está a dar muito que falar em todo o mundo e tem
recebido especial atenção entre nós, devido ao envolvimento do árbitro
português Carlos Ramos. Há questões que são para serem debatidas
pelos especialistas da modalidade – deve ou não o coaching ser
autorizado num jogo de ténis; foi ou não o árbitro português pouco tolerante na
sua primeira admoestação –, mas há uma outra questão, bem mais funda e
importante, que diz respeito a todos nós e àquilo que se está a tornar um
terrível tique social do século XXI: o vício da vitimização.
De
repente, a discussão não é simplesmente sobre se o comportamento desportivo de
Serena Williams é aceitável ou não, ou se a decisão do árbitro português foi ou
não a mais correcta. Aquilo
que o mundo discute é até que ponto o
comportamento de Serena se justifica por ela ter atrás de si uma
história de sofrimento e humilhação por ser negra num desporto maioritariamente
de brancos – e portanto aquele teria sido um grito compreensível de revolta
racial –, e se as decisões de Carlos Ramos não foram especialmente duras por
ela ser mulher – e portanto aquele teria sido um compreensível grito de revolta
sexual. Fosse Serena Williams lésbica e alguém já teria com certeza denunciado
Carlos Ramos por comportamento homofóbico, completando o bingo das políticas de
identidade, que no seu desejo descontrolado – e totalitário – pela igualdade
têm vindo a construir um mundo profundamente discriminatório, onde certas
características biológicas recuperam uma proeminência contra a qual as
correntes mais progressistas lutaram desde sempre.
Quando, em 1956, Althea Gibson (que ainda foi
treinadora de Venus e Serena Williams) se tornou a primeira tenista negra a
ganhar Roland Garros, ela certamente ambicionaria que a considerassem em
primeiro lugar uma tenista como qualquer outra, independentemente da sua cor.
Mas hoje em dia, mais de 60 anos depois, Serena Williams está condenada a ser
em primeiro lugar uma mulher negra, e só depois tenista. É mesmo este o
mundo em que queremos viver? Durante séculos, senão milénios, os negros
lutaram para que a sua cor de pele não fosse relevante; as mulheres lutaram
para que o seu sexo não fosse motivo de opressão; os gays lutaram para que as suas preferências
sexuais dissessem respeito só a eles. E no momento em que vivemos no mundo mais
igualitário de sempre – certamente não tão igualitário como gostaríamos, mas
indiscutivelmente igualitário como nunca antes foi –, eis que os alegados
progressistas do século XXI vêm garantir-nos que, afinal, a cor da pele, o
género ou a preferência sexual são as principais características identitárias
dos seres humanos. O discurso anti-racista de hoje é demasiado parecido com o
discurso racista de antigamente.
Daí decorre o vício da vitimização. Serena
Williams não é apenas uma tenista que não soube perder. Agora ela é uma vítima.
Vítima por ser mulher. E vítima por ser negra. O valor da vitimização supera o
valor do próprio desportivismo. Antigamente, desportivismo era sinónimo de
saber perder (mesmo quando a derrota era injusta), aceitar a decisão de um
árbitro (mesmo quando essa decisão estivesse errada), aprender a lidar em campo
com a injustiça (por muito que isso nos custasse). Eu não sei quando é que
aquilo que era sinónimo de força interior passou a ser um sintoma de fraqueza.
Mas sei que antes estávamos certos, e agora estamos errados.
Um comentário:
João
Borges Porto 10.09.2018:
Viu-se uma tenista desesperada
e mal educada (e encarada) que não esperava o desempenho da adversária e
descarregou a bílis em cima do árbitro (onde é que já vimos isto?). O resto vem
depois....
Mas leiamos,
do mesmo jornal, para amenizar, a breve crónica de Miguel Esteves Cardoso, despretensiosa e leve, descrevendo uma
linda cidade onde também já vivi. Sem dinheiro, contudo, para comprar os ovos
moles da minha tentação…
PÚBLICO, 10/9/18
Também
os ovos estão melhores, não sei como porque já eram perfeitos. Não são um
produto turístico, fazem parte do dia-a-dia dos habitantes. São como Aveiro.
Já
me tinha acontecido em Évora: vinte anos depois, encontrei a cidade ainda mais
bonita do que era. Agora aconteceu com Aveiro, já tão bonita há vinte anos
atrás. Recuperaram muitíssimos edifícios e aqueles que ainda não foram
restaurados estão tal e qual como estavam quando foram construidos, arruinados
mas com a cara intacta com que nasceram.
Mas
os edifícios só não chegam. É o tamanho de Aveiro que está exactamente à escala
humana: maior que Aveiro é grande demais, mais pequeno que Aveiro é pequeno
demais. É a maneira como passeiam as pessoas num sábado à noite. Não há
enchentes nem desertos. Um festival de jazz ao ar livre decorre com duas
centenas de espectadores: está cheio mas há sempre lugar para mais dois. Não há
nervos. Não há medo. Não há pressão.
A
disposição de Aveiro à volta da ria é encantadora porque vive-se com duas
margens facilmente transponíveis. As pessoas têm tempo para conversar mas não é
uma cidade pachorrenta. É - não acredito que vou dizer isto - jovem e dinâmica.
Na
loja da Maria da Apresentação compramos ovos moles divinos, de formas
elegantes, a 85 cêntimos. Uma barrica de porcelana, lindamente pintada e cheia
de ovos moles, custa 8 euros. Como é que conseguem? Juntamo-nos às famílias
aveirenses que fazem fila para comprá-los. Comemos enquanto compramos. Falamos.
Despachamo-nos num instante. É um prazer.
Também
os ovos estão melhores, não sei como porque já eram perfeitos. Não são um
produto turístico, fazem parte do dia-a-dia dos habitantes. São como Aveiro.
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